terça-feira, 30 de outubro de 2012

As metamorfoses



 

 

 

II
As metamorfoses

Vidi ego, quod fuerat quondam solidissima tellus, Esse fretum; vidi fractas œquore terras,
Et procul a pelago conchœ jacuere marinœ,
Et vetus inventa est in montibus anchora summis.

OVIDIUS, Metamorph. XV 262.

Conhecida é a lenda do Árabe Kazwini, contada por um viajante do século XIII, que não tinha, portanto, qualquer noção de longevidade das épocas da natureza.
“Passando certo dia – diz ele – por uma cidade antiqüíssima e muito populosa, perguntei a um de seus habitantes quantos anos contava a sua fundação.
“– De fato – respondeu –, é uma cidade importante, esta, mas nós não lhe sabemos a idade e os nossos antepassados eram, neste particular, tão ignorantes quantos nós.
“Cinco séculos mais tarde, passava eu pelo mesmo sítio e não pude perceber nenhum vestígio da cidade. Perguntei a um camponês, entretido a colher lenha, se era ali que demorava a antiga cidade e, no caso afirmativo, há quanto tempo fora destruída.
“– Para dizer verdade – respondeu –, nada lhe posso dizer e até estranho a pergunta, porque este terreno nunca passou disto.
“– Então, não existiu aqui uma grande cidade? – indaguei.
“– Nunca; a menos que possamos concluir pelo que não vimos; além de que, nossos pais também jamais nos falaram de tal coisa.
“Em lá regressando outra vez, passados mais de quinhentos anos, encontrei o terreno invadido pelo mar e na praia um magote de pescadores, aos quais perguntei quando se dera aquela transformação.
“– Isso é lá pergunta que nos faça um homem como vós? – disseram eles – Pois isto aqui sempre foi o que é.
“Mais quinhentos anos dobados, em lá regressando, vi que tudo havia desaparecido. Informei-me de um único homem, lá encontrado, e a sua resposta foi a mesma que as anteriores.
“Finalmente, permeado igual período de tempo, voltei pela última vez e lá encontrei uma cidade populosa e mais rica que a primeira por mim visitada; e, quando pretendi inteirar-me da sua origem, obtive esta resposta: a data de sua fundação perde-se na noite dos tempos, ignoramos a sua evolução e os nossos antepassados já nos diziam a mesma coisa, isto é: sabiam tanto quanto nós.
Não temos aí a imagem da fugacidade da memória humana e da estreiteza dos nossos horizontes, no tempo como no espaço? Somos levados a crer que a Terra sempre foi o que é, e como é. Dificilmente nos damos conta das transformações seculares que ela tem experimentado. A vultuosidade desses tempos nos esmaga como, em astronomia, a enormidade do espaço.
Entretanto, tudo muda, tudo se transforma, tudo se metamorfoseia. Dia virá em que Paris, foco atrativo de todas as nações, verá palecer o seu brilho, deixará de ser o farol do mundo.
Depois da fusão dos Estados-Unidos da Europa em uma confederação única, a República russa formara, de Petersburgo a Constantinopla, uma espécie de barreira ao surto da emigração chinesa, que já havia fundado cidades populosas nas margens do mar Cáspio. As nacionalidades antigas, porém, haviam desaparecido com o progresso. As bandeiras européias passaram de moda, haviam-se proscrito pelos mesmos motivos. As comunicações de leste a oeste, entre a Europa e América, tornaram-se mais fáceis; o mar deixara de opor obstáculos à marcha da Humanidade no sentido do Sol. Aos territórios exauridos, da Europa ocidental, a atividade industriosa preferira as terras novas do vasto continente americano. Desde o século XXV o foco da civilização fulgurava às margens do lago Michigan, em uma como nova Atenas de 9 milhões de habitantes, igual a Paris. Contudo, não tardou seguisse a bela capital francesa o destino de suas irmãs mais velhas: Roma, Atenas, Mênfis, Tebas, Nínive, Babilônia. Os grandes tesouros, os recursos de toda ordem e as atrações eficazes deslocaram-se, transpuseram o oceano, estavam alhures.
A Ibéria, a França, a Itália, pouco a pouco despovoadas, viram estender-se a solidão sobre as suas velhas cidades em ruínas. Lisboa havia desaparecido, destruída pelas ondas. Madrid, Roma, Nápoles e Florença não passavam de escombros, e Paris, Lião e Marselha não tardaram a acompanhá-las na mesma derrocada. O tipo humano e os idiomas sofreram tal transformação que nenhum etnólogo ou lingüista seria capaz de encontrar resquícios do passado. Havia muito que já se não falava o francês, o inglês, o alemão, o italiano, o espanhol, o português. A Europa emigrara para além do Atlântico e a Ásia se deslocara para a Europa. Os chineses, em número de um bilhão, tinham, insensivelmente, invadido toda a Europa ocidental. Misturados à raça anglo-saxônia, haviam, de algum modo, originado uma nova espécie humana. Sua metrópole principal desdobrara-se, qual rua interminável, de cada lado do canal dos Dois-mares, de Bordéus a Tolosa e a Narbona. As causas da fundação de Lutécia na ilha do Sena, que haviam gradualmente desenvolvido a cidade dos Parisienses até o século XXV, não mais existiam e Paris entrara em rápida decadência. O comércio apossara-se do Mediterrâneo e das grandes rotas oceânicas, e o canal dos Dois-mares era um empório mundial.
As nações a que chamamos modernas haviam-se eclipsado, como as antigas. Depois de uma existência bem peculiar, de mais ou menos dois mil anos, a França se diluíra no Estado europeu, no século XXVIII, o mesmo acontecendo à Itália no XXIX e à Alemanha no XXXIII. A Inglaterra, essa, disseminara-se por todos os mares. A velha Europa oferecia ao olhar e ao pensamento humanos o mesmo panorama das planuras da Assíria, da Caldeia, do Egito. Novos tempos, nova gente. Seres outros povoaram as antigas cidades. Assim que, em nossos tempos, Atenas e Roma ainda sobrevivem, mas sua fisionomia é outra, e há muito desapareceram do cenário os primitivos gregos e romanos.
As costas do sul e do oeste, da antiga França, tinham sido protegidas por diques, a fim de barrar a invasão do mar; mas, descurados o norte e o nordeste, devido ao afluxo das populações do sul e sudoeste, a depressão lenta e constante das praias continentais, observadas já na época de César, chegou abaixo do nível do mar e este, continuando a alargar a Mancha e a carcomer as rochas, do Havre à ponta do Hélder, sobrepujara os diques holandeses invadindo os Países Baixos, a Bélgica e o norte da França. Amsterdam, Utrech, Rotterdam, Antuérpia, Bruxellas, Lille, Amiens e Ruão submergiram e os navios flutuavam sobre os seus escombros. Paris mesma, depois de arvorada em porto de mar durante muito tempo, vira as águas subirem às torres de Notre-Dame e cobrirem de ondas inquietas a planície memorável onde, por tantos e longos anos, se jogaram os destinos da Terra. Dera-se com a França a mesma coisa que com a Holanda de outros tempos, cujas cidades tragadas pelo mar deixavam entrever por longo tempo, sob o lençol transparente das águas, a magnificência das suas ruínas.[i]
Sim! Paris, a bela Paris, a velha e gloriosa cidade já não passava de um montão de escombros. O solo europeu, principalmente a oeste e norte, tinha baixado muito, à razão de 30 centímetros cada século, e avançado 3 metros sobre as terras desagregadas. A carta geográfica da França mudara lentamente. A depressão fora de 3 metros por 1.000 anos, ou 24 metros em 8.000 anos; e, visto que o nível do Sena, em Paris, não passa de 25 metros acima do mar, as grandes marés vinham lamber o cais parisiense, junto aos penedos de São Germano.
Simultaneamente, a erosão marítima arrebatara ao continente uma faixa de 24 quilômetros de largura, em todo o litoral. O desgaste das montanhas, devido às chuvas, aos regatos, às torrentes, tinha, em 8.000 anos, alterado o relevo continental de uns 0,56 metros apenas. Mas, nem por isso o nível do mar se elevara, visto haver diminuído a quantidade de água, mais ou menos na mesma proporção.
Num lapso de tempo mais ou menos duplo, seja em 17.000 anos, a depressão atingira a 50 metros. Insensível, mas progressivamente abandonada, Paris acabara submergindo-se de todo. O forasteiro errante pelas ruínas espalhadas nas colinas, mal poderia localizar o Louvre, as Tulherias, o Instituto; enfim, tudo o que constituíra as velhas glórias da cidade morta.
Curioso ver a variação geográfica que uma fraca diferença de nível acarreta. Tracemos dois mapas da França, um com o seu território acima 50 metros do nível atual, como foi outrora, e outro com uma depressão equivalente, que o futuro parece reservar-lhe, confrontando-as. Que transformação! Todos os rios da antiga França a correrem como entre ilhas! O eixo da província dos Estados Unidos da Europa, que substituíra o povo francês, desaparecera e traçava-se agora geograficamente, de Colônia ao canal dos Dois-Mares. Desde então, Paris e a França foram apagadas da história do nosso mundo. A Holanda, a Bélgica e uma parte norte da França haviam submergido inteiramente. Amsterdã, Rotterdam, Anvers e Lille desapareceram sob as águas. Mais tarde, o mar chegava a Londres, a pequena Bretanha era uma ilha.
De século para século a fisionomia da Europa e do mundo inteiro modificara-se. Os mares ocupavam os continentes, novos sedimentos depositados na profundeza das águas recobriam as camadas desaparecidas, formavam novas camadas geológicas. Por outro lado, os continentes substituíram os mares. Nas Bocas do Ródano, por exemplo, a terra firme que, a princípio, ganhara ao mar o solo que se estende de Arles ao litoral, continuara a estender-se para o sul. Na Itália as aluviões do Pó continuaram avançando no Adriático, assim como as do Nilo, Tibre e vários rios mais recentes, no Mediterrâneo. Além disso, as dunas e restingas litorâneas tinham aumentado em proporções variáveis os domínios da terra firme. A configuração dos continentes e dos mares mudara a ponto de tornar irreconhecíveis as velhas cartas geográficas.
Já não seria por períodos de cinco séculos que o historiador seguisse, qual o árabe do século XIII, cuja lenda há pouco registramos. O décuplo desse período mal bastaria para evidenciar sensivelmente as modificações da crosta terráquea, de vez que 5.000 anos não representam mais que simples ruga no bojo das eras. É por dezenas de milhar de anos que nos devemos pautar, para estimarmos o conjunto dos continentes submersos e as novas terras emergidas à luz do Sol, em conseqüência do desnivelamento da crosta sólida, cuja espessura e densidade variam conforme a região, e cujo peso sobre o núcleo central, ainda plástico e móbil, faz oscilar as mais vastas regiões. Uma insignificante variação de equilíbrio, o mínimo movimento de básculo, de menos de 100 metros, muitas vezes, sobre os 12.000 quilômetros do diâmetro do globo, basta para alterar a face do mundo.
E se nós entrevirmos a história planetária de conjunto, não mais por períodos de dez, vinte, ou trinta mil, mas de cem mil anos, por exemplo, constataremos que dentro de uma dessas dilatadas épocas, seja um milhão de anos, a superfície do globo se tenha metamorfoseado muitas vezes, sobretudo nas regiões em que atuam mais ativamente os agentes internos e externos. Avançando a um ou dois milhões de anos, futuro adentro, presenciaremos um prodigioso fluxo e refluxo dos seres e das coisas. Nesse desdobro de dez ou vinte mil séculos, quantas vezes o mar não teria voltado a rolar suas ondas sobre as prístinas cidades humanas!
E quantas vezes a terra firme não teria ressurgido dos abismos oceânicos, revigorada e virginal! Essas variações haviam-se operado outrora, mediante revoluções bruscas – aluimento do solo, deslocação de nível, rupturas de diques naturais, tremores de terra, erupções vulcânicas, afloramento de montanhas – isso, nos tempos primevos, quando o planeta ainda quente e líquido não se revestia senão de fina película, mal coagulada num oceano ardente. Mais tarde, as transformações tornaram-se mais lentas, à medida que a crosta se adensava e consolidava. A contração gradual do globo originara a formação de vácuos, abaixo do invólucro sólido, a queda de fragmentos desse invólucro sobre o núcleo pastoso e, enfim, movimentos de básculo, que transformaram os relevos do solo. Mais tarde ainda, modificações insensíveis foram produzidas pelos agentes externos. De um lado os rios, carreando para os estuários os destroços das montanhas, tinham alteado o fundo do mar e aumentado, lentamente, os domínios da terra, entupindo de século em século os antigos portos; e, por outro lado, a ação das vagas e das tempestades, corroendo constantemente as rochas, tinha diminuído o domínio dos continentes em benefício do mar.
Perpetuamente e sem tréguas, a configuração das costas marítimas se transformara, mar e terra permutaram de leito, mais de uma vez. Nosso planeta tornara-se para o historiador um mundo outro, inteiramente diverso.
Tudo mudara. Continentes, mares, acidentes geográficos, raças, idiomas, costumes, corpos, espírito, idéias, sentimentos, tudo! A França submersa, o fundo do Atlântico emergido; uma parte da América desaparecida, um continente no lugar da Oceania; a China afogada também; a morte onde existira vida, a vida onde habitara a morte. E o olvido eterno de tudo o que fizera outrora a grandeza e a glória das nações! Se a Humanidade atual emigrasse para Marte, talvez se visse lá menos expatriada do que voltando à Terra nesses longínquos evos futuros.
Da mesma forma, de tempos em tempos, a fauna do globo se transformara gradualmente. As espécies selvagens, como leões, tigres, hienas, panteras, elefantes, girafas, tanto quanto baleias, tubarões e focas desapareceram por completo. O mesmo se dera com as aves de rapina. O homem havia conquistado e domesticado as espécies utilizáveis, destruindo as outras e senhoreando inteiramente o mundo.
O predomínio da natureza recuara constantemente ante as vitórias da civilização. Todo o planeta era um como jardim da humanidade, cultivado científica, inteligente e racionalmente. Nele, não mais se viram árvores frutíferas e vinhedos florirem antes dos degelos da primavera; nem saraivadas derrubando frutos, nem ventanias vergando trigais, nem rios inundando cidades, nem chuvas, nem secas sacrificando colheitas, nem excessos de frio ou de calor ceifando vidas. Durante o inverno, utilizava-se o calor solar, cuidadosamente armazenado no estio.
A ordem natural, tanto quanto a social, estava organizada. Os trabalhadores já não morriam de fome, dizimados pela indigência, e os ociosos e sibaritas também não morriam de apoplexia ou gastralgia, por muito comer.
Porque o reinado era, só e só, da inteligência.



Camille Flammarion

O Fim do Mundo


[i]    A partir do século XIX os estudos históricos da Natureza tinham descoberto as oscilações verticais, seculares, da crosta terrestre, variando segundo as regiões, e constatara, assim, a lenta depressão do solo ocidental e setentrional da França e a invasão progressiva do mar, até onde chegavam às tradições históricas. Viram como, pouco a pouco, o mar destacara do continente as ilhas de Tersey, as Minquiers, Chausey, Cezembre, Monte São Miguel, engolindo as cidades de Is. Helion, Tommem, Harbour, São Luís, Monny, Bourgneuf, Feillette, Paluel, Nazado e a península armoricana a recuar lentamente diante da invasão oceânica. De século em século a hora diluviana fora soando para Herbavilla, a oeste de Nantes, para Saint-Denis-Chef-de-Caux, ao norte do Havre, para Saint-Etienne-de-Paluel e Gardoine ao norte de Dol, para Tolente, a oeste de Brest, para Porspican, vizinha de Cancale. Mais de oitenta localidades da Holanda tinham sido tragadas no qüinquagésimo século. Noutras regiões as modificações se verificaram em sentido inverso, o mar havia recuado. Ao norte e oeste de Paris, porém, a dupla ação do abaixamento do solo e erosão das costas produziram em 8.000 anos um lençol líquido navegável para navios de alto porte.

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

OS CEGOS DE ESPÍRITO







É preciso que se tenha conquistado uma caridade quase ilimitada, para suportar com tranqüilidade o ataque desleal, injusto e sistemático que contra o Espiritismo movem os sacerdotes de Roma e do Protestantismo. E preciso que se tenha pleno conhecimento dos preceitos cristãos que nos aproximam de Jesus: caridade para com aqueles que nos caluniam e injuriam; é preciso que se conheçam os mandamentos: "Ama aos teus inimigos; faze o bem aos que te odeiam; bendize aos que te maldizem; ora pelos que te perseguem. e caluniam, para que sejas filho do nosso Pai que está nos Céus que faz levantar o seu Sol sobre os bons e maus e faz descer as suas chuvas sobre os justos e os injustos".
De fato, é de admirar que haja criaturas humanas, dotadas de inteligência, que repudiem uma moral, uma filosofia tão pura como do Espiritismo!
Parece inacreditável que pessoas de grande responsabilidade perante Deus, em vez de se dedicarem ao estuda dessa admirável Doutrina, que vem ressuscitar o puro Cristianismo, empreguem toda a sua vida a difamá-la, a negá-la, a caluniá-la, como tem acontecido até aqui!
Essas mesmas pessoas, quando nada mais têm que dizer contra a sublime filosofia que proclama, como nenhuma outra, o Amor do Pai Celestial, com a mesma malevolência que a agridem, perguntam: "Que descoberta nos trouxe o Espiritismo, que novidade nos ensina ele, qual dos mistérios insondáveis foi por ele resolvido?"
Ainda mesmo que os Ensinos dos Espíritos não tivessem resolvido: a habitabilidade de outros planetas; a diversidade de raças e condições, pela pluralidade das existências corpóreas; os fenômenos psíquicos, pela ação dos Espíritos encarnados e desencarnados, só este problema da "alma dos animais", que ele veio resolver, que nenhuma ciência, nenhuma religião nem sequer tentou estudar, só este seria o bastante para distingui-lo como uma Revelação Divina, que marca uma nova fase de progresso para o nosso planeta! Infelizmente, os que têm olhos não vêem, os que tem ouvidos não ouvem. Melhor seria que nascessem cegos e surdos, pois assim é possível que em momentos de clarividência e clariaudição compreendessem a Palavra de Vida Eterna! 


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Gênese da Alma
 

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

A REVELAÇÃO PROGRESSIVA





 Tudo aparece na ocasião própria. A planta não nasce sem que a semente germine; a árvore não dá frutos antes da florescência; o progresso não chega sem que a Humanidade tenha atravessado as fases indispensáveis à maturidade da inteligência, em que o Espírito começa a indagar o porquê das coisas e a examinar o que o rodeia.
No tempo de Moisés o povo judaico não podia compreender o que compreendemos hoje; por isso o grande legislador hebreu escreveu a sua Gênese de forma mais compreensível e impressionante aos seus seguidores, sem aprofundar questões que só depois, com o cultivo do Espírito, poderiam ser resolvidas. E sabido o atraso intelectual e moral das gentes daquele tempo, em que predominava a lei do "dente por dente".
Em virtude de toda essa falta de compreensão, e havendo necessidade de traçar as primeiras linhas da Gênese, Moisés fez a raça humana proceder de um único casal, cuja lenda servia para embalar a imaginação infantil do seu povo, que, como a das crianças (e até a de muitos velhos) se satisfazia com a imagem que lhe era apresentada, prevalecendo essa estória fantástica para dar solução provisória à questão que começava a ser ventilada pelos Espíritos mais elevados daquele tempo.
E como poderia Moisés, o inspirado divino, mesmo que soubesse a estória da criação, ensiná-la a um povo de dura cerviz e que, depois de tantos prodígios operados pelos Espíritos para sua libertação do jugo dos egípcios, despojou-se das suas jóias para o fabrico do Bezerro de Ouro, ao qual adoraram como sendo o verdadeiro Deus?
Pois se no século dos aeroplanos, automóveis, telegrafia e telefonia, ainda encontramos muita gente de burel e de mitra, muitos literatos de borla e capelo, que repudiam com todas as suas forças o transformismo, a evolução pela escala zoológica, como poderiam os pobres escravos dos egípcios, que tinham acabado naquele instante de obter sua carta de liberdade, receber a Gênese tal como ela é?
A lenda adâmica estava muito bem para aqueles que começavam a festejar a sua libertação.
Somente duas raças eram conhecidas: a sua e a egípcia. Os Israelitas seriam os "primogênitos", descendentes diretos de Adão e Eva; os egípcios descenderiam de Caim (?), que, condenado por Deus, tornou-se progenitor daquele povo que depois as escravizou; e assim ficava tudo explicado para quem não podia compreender outra explicação.
Quanto à origem dos animais, se eles tiveram também o seu Adão e Eva, os hebreus não trataram de inquirir, e os nossos católicos e protestantes também não cogitam disso. Contentam-se em "saber" o que o texto bíblico diz: "No 5.° dia disse Deus: haja peixes e aves; e no 6.° dia: produza a Terra animais de toda a casta".

*

A Revelação é a base, é o fundamento sólido da Religião e da Ciência; e a Revelação é sucessiva, é gradativa. Na esfera religiosa, a Revelação é o grande ascensor da Humanidade para o progresso intelectual, moral e espiritual.
Foi sobre esta pedra que o Cristo fundou a sua Igreja. Desde os tempos patriarcais até a nossa época distinguimos quatro grandiosas revelações, que se vêm completando e explicando.
A primeira de todas foi a Revelação Abraâmica, na qual o Espírito Mensageiro do Alto se limitou a anunciar a existência de um só Deus, sem prescrever outra obrigação a não ser a do reconhecimento dessa verdade, de que fora portador.
Cerca de dois mil anos mais tarde, Moisés recebe, de um Eloin, Jeová, as Tábuas da Lei, com os Mandamentos do Decálogo, que constituem o começo do Código Divino.
Outros dois mil anos depois, vem Jesus, não mais falando a uma família, como aconteceu na Revelação Abraâmica, que se restringia à gente de Abraão, de Isaac e de Jacó; nem como na de Moisés, que se restringia aos Israelitas, mas estendendo o Mestre a sua Palavra, a sua ação, o seu Verbo à Humanidade toda, confraternizando-a sob a Paternidade de Deus!
Agora, após outros dois mil anos, vem o Espiritismo, que, reproduzindo a Palavra de Jesus; explica-a, amplia-a, como o Mestre havia prometido!
A Primeira, a Segunda e a Terceira Revelações são pessoais, quer dizer, foram dadas por intermédio de Pessoas, de indivíduos: a 1.ª por Abraão, a 2.ª é por Moisés, a 3.ª por Jesus.
A última Revelação, a Espírita, a Revelação das Revelações, é coletiva, e os representantes dessa coletividade que a acionam, são os próprios Espíritos, Mensageiros de Deus, que, sob a direção de Jesus Cristo, fazem prevalecer a Lei da Fraternidade, que eles assentam no fundamento sólido da Imortalidade.
Esta Revelação está destinada a fazer lembrar tudo o que Jesus ensinou e a guiar os homens, "ensinando-lhes todas as coisas" (João XIV, 26).
Sua base, como dissemos, é a Imortalidade, e o fim a que ela nos conduz é a Vida Eterna.
A Revelação Espírita brilhará sempre como luz de primeira grandeza, porque elas não limita à Terra a sua ciência, os seus ensinamentos. Vencendo as trevas da "morte", apresenta aos nossos olhos os inumeráveis mundos que caminham no infinito, as inumeráveis esferas fluídicas que serão nossas futuras habitações, onde recebemos, como prêmio dos nossos trabalhos, lições cada vez mais edificantes e substanciosas, para nossa completa felicidade!

Cairbar Schutel

Gênese da Alma