II
As metamorfoses
Vidi ego, quod fuerat
quondam solidissima tellus, Esse fretum; vidi fractas œquore terras,
Et procul a pelago conchœ
jacuere marinœ,
Et vetus inventa est in montibus anchora summis.
OVIDIUS, Metamorph.
XV 262.
Conhecida é a lenda do Árabe Kazwini, contada por um viajante
do século XIII, que não tinha, portanto, qualquer noção de longevidade das
épocas da natureza.
“Passando certo dia – diz ele – por uma cidade
antiqüíssima e muito populosa, perguntei a um de seus habitantes quantos anos
contava a sua fundação.
“– De fato – respondeu –, é uma cidade importante,
esta, mas nós não lhe sabemos a idade e os nossos antepassados eram, neste
particular, tão ignorantes quantos nós.
“Cinco séculos mais tarde, passava eu pelo mesmo sítio
e não pude perceber nenhum vestígio da cidade. Perguntei a um camponês,
entretido a colher lenha, se era ali que demorava a antiga cidade e, no caso
afirmativo, há quanto tempo fora destruída.
“– Para dizer verdade – respondeu –, nada lhe
posso dizer e até estranho a pergunta, porque este terreno nunca passou disto.
“– Então, não existiu aqui uma grande cidade? –
indaguei.
“– Nunca; a menos que possamos concluir pelo que
não vimos; além de que, nossos pais também jamais nos falaram de tal coisa.
“Em lá regressando outra vez, passados mais de
quinhentos anos, encontrei o terreno invadido pelo mar e na praia um magote de
pescadores, aos quais perguntei quando se dera aquela transformação.
“– Isso é lá pergunta que nos faça um homem como
vós? – disseram eles – Pois isto aqui sempre foi o que é.
“Mais quinhentos anos dobados, em lá regressando, vi
que tudo havia desaparecido. Informei-me de um único homem, lá encontrado, e a
sua resposta foi a mesma que as anteriores.
“Finalmente, permeado igual período de tempo, voltei
pela última vez e lá encontrei uma cidade populosa e mais rica que a primeira
por mim visitada; e, quando pretendi inteirar-me da sua origem, obtive esta
resposta: a data de sua fundação perde-se
na noite dos tempos, ignoramos a sua evolução e os nossos antepassados já nos
diziam a mesma coisa, isto é: sabiam tanto quanto nós.”
Não temos aí a imagem da fugacidade da memória humana e
da estreiteza dos nossos horizontes, no tempo como no espaço? Somos levados a
crer que a Terra sempre foi o que é, e como é. Dificilmente nos damos conta das
transformações seculares que ela tem experimentado. A vultuosidade desses
tempos nos esmaga como, em astronomia, a enormidade do espaço.
Entretanto, tudo muda, tudo se transforma, tudo se metamorfoseia.
Dia virá em que Paris, foco atrativo de todas as nações, verá palecer o seu
brilho, deixará de ser o farol do mundo.
Depois da fusão dos Estados-Unidos da Europa em uma confederação
única, a República russa formara, de Petersburgo a Constantinopla, uma espécie
de barreira ao surto da emigração chinesa, que já havia fundado cidades
populosas nas margens do mar Cáspio. As nacionalidades antigas, porém, haviam
desaparecido com o progresso. As bandeiras européias passaram de moda,
haviam-se proscrito pelos mesmos motivos. As comunicações de leste a oeste,
entre a Europa e América, tornaram-se mais fáceis; o mar deixara de opor
obstáculos à marcha da Humanidade no sentido do Sol. Aos territórios exauridos,
da Europa ocidental, a atividade industriosa preferira as terras novas do vasto
continente americano. Desde o século XXV o foco da civilização fulgurava às
margens do lago Michigan, em uma como nova Atenas de 9 milhões de habitantes,
igual a Paris. Contudo, não tardou seguisse a bela capital francesa o destino
de suas irmãs mais velhas: Roma, Atenas, Mênfis, Tebas, Nínive, Babilônia. Os
grandes tesouros, os recursos de toda ordem e as atrações eficazes
deslocaram-se, transpuseram o oceano, estavam alhures.
A Ibéria, a França, a Itália, pouco a pouco despovoadas,
viram estender-se a solidão sobre as suas velhas cidades em ruínas. Lisboa
havia desaparecido, destruída pelas ondas. Madrid, Roma, Nápoles e Florença não
passavam de escombros, e Paris, Lião e Marselha não tardaram a acompanhá-las na
mesma derrocada. O tipo humano e os idiomas sofreram tal transformação que
nenhum etnólogo ou lingüista seria capaz de encontrar resquícios do passado.
Havia muito que já se não falava o francês, o inglês, o alemão, o italiano, o
espanhol, o português. A Europa emigrara para além do Atlântico e a Ásia se
deslocara para a Europa. Os chineses, em número de um bilhão, tinham,
insensivelmente, invadido toda a Europa ocidental. Misturados à raça
anglo-saxônia, haviam, de algum modo, originado uma nova espécie humana. Sua
metrópole principal desdobrara-se, qual rua interminável, de cada lado do canal
dos Dois-mares, de Bordéus a Tolosa e a Narbona. As causas da fundação de
Lutécia na ilha do Sena, que haviam gradualmente desenvolvido a cidade dos
Parisienses até o século XXV, não mais existiam e Paris entrara em rápida
decadência. O comércio apossara-se do Mediterrâneo e das grandes rotas oceânicas,
e o canal dos Dois-mares era um empório mundial.
As nações a que chamamos modernas haviam-se eclipsado,
como as antigas. Depois de uma existência bem peculiar, de mais ou menos dois
mil anos, a França se diluíra no Estado europeu, no século XXVIII, o mesmo
acontecendo à Itália no XXIX e à Alemanha no XXXIII. A Inglaterra, essa,
disseminara-se por todos os mares. A velha Europa oferecia ao olhar e ao
pensamento humanos o mesmo panorama das planuras da Assíria, da Caldeia, do
Egito. Novos tempos, nova gente. Seres outros povoaram as antigas cidades.
Assim que, em nossos tempos, Atenas e Roma ainda sobrevivem, mas sua fisionomia
é outra, e há muito desapareceram do cenário os primitivos gregos e romanos.
As costas do sul e do oeste, da antiga França, tinham
sido protegidas por diques, a fim de barrar a invasão do mar; mas, descurados o
norte e o nordeste, devido ao afluxo das populações do sul e sudoeste, a
depressão lenta e constante das praias continentais, observadas já na época de
César, chegou abaixo do nível do mar e este, continuando a alargar a Mancha e a
carcomer as rochas, do Havre à ponta do Hélder, sobrepujara os diques holandeses
invadindo os Países Baixos, a Bélgica e o norte da França. Amsterdam, Utrech,
Rotterdam, Antuérpia, Bruxellas, Lille, Amiens e Ruão submergiram e os navios
flutuavam sobre os seus escombros. Paris mesma, depois de arvorada em porto de
mar durante muito tempo, vira as águas subirem às torres de Notre-Dame e
cobrirem de ondas inquietas a planície memorável onde, por tantos e longos
anos, se jogaram os destinos da Terra. Dera-se com a França a mesma coisa que
com a Holanda de outros tempos, cujas cidades tragadas pelo mar deixavam
entrever por longo tempo, sob o lençol transparente das águas, a magnificência
das suas ruínas.[i]
Sim! Paris, a bela Paris, a velha e gloriosa cidade já
não passava de um montão de escombros. O solo europeu, principalmente a oeste e
norte, tinha baixado muito, à razão de 30 centímetros cada século, e avançado 3
metros sobre as terras desagregadas. A carta geográfica da França mudara
lentamente. A depressão fora de 3 metros por 1.000 anos, ou 24 metros em 8.000
anos; e, visto que o nível do Sena, em Paris, não passa de 25 metros acima do
mar, as grandes marés vinham lamber o cais parisiense, junto aos penedos de São
Germano.
Simultaneamente, a erosão marítima arrebatara ao
continente uma faixa de 24 quilômetros de largura, em todo o litoral. O desgaste
das montanhas, devido às chuvas, aos regatos, às torrentes, tinha, em 8.000
anos, alterado o relevo continental de uns 0,56 metros apenas. Mas, nem
por isso o nível do mar se elevara, visto haver diminuído a quantidade de água,
mais ou menos na mesma proporção.
Num lapso de tempo mais ou menos duplo, seja em 17.000 anos,
a depressão atingira a 50 metros. Insensível, mas progressivamente abandonada,
Paris acabara submergindo-se de todo. O forasteiro errante pelas ruínas
espalhadas nas colinas, mal poderia localizar o Louvre, as Tulherias, o
Instituto; enfim, tudo o que constituíra as velhas glórias da cidade morta.
Curioso ver a variação geográfica que uma fraca
diferença de nível acarreta. Tracemos dois mapas da França, um com o seu território
acima 50 metros do nível atual, como foi outrora, e outro com uma depressão
equivalente, que o futuro parece reservar-lhe, confrontando-as. Que
transformação! Todos os rios da antiga França a correrem como entre ilhas! O
eixo da província dos Estados Unidos da Europa, que substituíra o povo francês,
desaparecera e traçava-se agora geograficamente, de Colônia ao canal dos
Dois-Mares. Desde então, Paris e a França foram apagadas da história do nosso
mundo. A Holanda, a Bélgica e uma parte norte da França haviam submergido
inteiramente. Amsterdã, Rotterdam, Anvers e Lille desapareceram sob as águas.
Mais tarde, o mar chegava a Londres, a pequena Bretanha era uma ilha.
De século para século a fisionomia da Europa e do mundo
inteiro modificara-se. Os mares ocupavam os continentes, novos sedimentos
depositados na profundeza das águas recobriam as camadas desaparecidas,
formavam novas camadas geológicas. Por outro lado, os continentes substituíram
os mares. Nas Bocas do Ródano, por exemplo, a terra firme que, a princípio,
ganhara ao mar o solo que se estende de Arles ao litoral, continuara a
estender-se para o sul. Na Itália as aluviões do Pó continuaram avançando no
Adriático, assim como as do Nilo, Tibre e vários rios mais recentes, no
Mediterrâneo. Além disso, as dunas e restingas litorâneas tinham aumentado em
proporções variáveis os domínios da terra firme. A configuração dos continentes
e dos mares mudara a ponto de tornar irreconhecíveis as velhas cartas
geográficas.
Já não seria por períodos de cinco séculos que o
historiador seguisse, qual o árabe do século XIII, cuja lenda há pouco registramos.
O décuplo desse período mal bastaria para evidenciar sensivelmente as
modificações da crosta terráquea, de vez que 5.000 anos não representam mais
que simples ruga no bojo das eras. É por dezenas de milhar de anos que nos
devemos pautar, para estimarmos o conjunto dos continentes submersos e as novas
terras emergidas à luz do Sol, em conseqüência do desnivelamento da crosta
sólida, cuja espessura e densidade variam conforme a região, e cujo peso sobre
o núcleo central, ainda plástico e móbil, faz oscilar as mais vastas regiões.
Uma insignificante variação de equilíbrio, o mínimo movimento de básculo, de
menos de 100 metros, muitas vezes, sobre os 12.000 quilômetros do diâmetro do
globo, basta para alterar a face do mundo.
E se nós entrevirmos a história planetária de conjunto,
não mais por períodos de dez, vinte, ou trinta mil, mas de cem mil anos, por
exemplo, constataremos que dentro de uma dessas dilatadas épocas, seja um
milhão de anos, a superfície do globo se tenha metamorfoseado muitas vezes,
sobretudo nas regiões em que atuam mais ativamente os agentes internos e
externos. Avançando a um ou dois milhões de anos, futuro adentro,
presenciaremos um prodigioso fluxo e refluxo dos seres e das coisas. Nesse
desdobro de dez ou vinte mil séculos, quantas vezes o mar não teria voltado a
rolar suas ondas sobre as prístinas cidades humanas!
E quantas vezes a terra firme não teria ressurgido dos
abismos oceânicos, revigorada e virginal! Essas variações haviam-se operado
outrora, mediante revoluções bruscas – aluimento do solo, deslocação de nível,
rupturas de diques naturais, tremores de terra, erupções vulcânicas,
afloramento de montanhas – isso, nos tempos primevos, quando o planeta ainda
quente e líquido não se revestia senão de fina película, mal coagulada num
oceano ardente. Mais tarde, as transformações tornaram-se mais lentas, à medida
que a crosta se adensava e consolidava. A contração gradual do globo originara
a formação de vácuos, abaixo do invólucro sólido, a queda de fragmentos desse
invólucro sobre o núcleo pastoso e, enfim, movimentos de básculo, que
transformaram os relevos do solo. Mais tarde ainda, modificações insensíveis
foram produzidas pelos agentes externos. De um lado os rios, carreando para os
estuários os destroços das montanhas, tinham alteado o fundo do mar e
aumentado, lentamente, os domínios da terra, entupindo de século em século os
antigos portos; e, por outro lado, a ação das vagas e das tempestades,
corroendo constantemente as rochas, tinha diminuído o domínio dos continentes
em benefício do mar.
Perpetuamente e sem tréguas, a configuração das costas
marítimas se transformara, mar e terra permutaram de leito, mais de uma vez.
Nosso planeta tornara-se para o historiador um mundo outro, inteiramente
diverso.
Tudo mudara. Continentes, mares, acidentes geográficos,
raças, idiomas, costumes, corpos, espírito, idéias, sentimentos, tudo! A França
submersa, o fundo do Atlântico emergido; uma parte da América desaparecida, um
continente no lugar da Oceania; a China afogada também; a morte onde existira
vida, a vida onde habitara a morte. E o olvido eterno de tudo o que fizera
outrora a grandeza e a glória das nações! Se a Humanidade atual emigrasse para
Marte, talvez se visse lá menos expatriada do que voltando à Terra nesses
longínquos evos futuros.
Da mesma forma, de tempos em tempos, a fauna do globo
se transformara gradualmente. As espécies selvagens, como leões, tigres,
hienas, panteras, elefantes, girafas, tanto quanto baleias, tubarões e focas
desapareceram por completo. O mesmo se dera com as aves de rapina. O homem
havia conquistado e domesticado as espécies utilizáveis, destruindo as outras e
senhoreando inteiramente o mundo.
O predomínio da natureza recuara constantemente ante as
vitórias da civilização. Todo o planeta era um como jardim da humanidade,
cultivado científica, inteligente e racionalmente. Nele, não mais se viram
árvores frutíferas e vinhedos florirem antes dos degelos da primavera; nem
saraivadas derrubando frutos, nem ventanias vergando trigais, nem rios
inundando cidades, nem chuvas, nem secas sacrificando colheitas, nem excessos
de frio ou de calor ceifando vidas. Durante o inverno, utilizava-se o calor
solar, cuidadosamente armazenado no estio.
A ordem natural, tanto quanto a social, estava
organizada. Os trabalhadores já não morriam de fome, dizimados pela indigência,
e os ociosos e sibaritas também não morriam de apoplexia ou gastralgia, por
muito comer.
Porque o reinado era, só e só, da inteligência.
Camille
Flammarion
O
Fim do Mundo
[i] A partir do século XIX os estudos históricos
da Natureza tinham descoberto as oscilações verticais, seculares, da crosta
terrestre, variando segundo as regiões, e constatara, assim, a lenta depressão
do solo ocidental e setentrional da França e a invasão progressiva do mar, até
onde chegavam às tradições históricas. Viram como, pouco a pouco, o mar
destacara do continente as ilhas de Tersey, as Minquiers, Chausey, Cezembre,
Monte São Miguel, engolindo as cidades de Is. Helion, Tommem, Harbour, São Luís,
Monny, Bourgneuf, Feillette, Paluel, Nazado e a península armoricana a recuar
lentamente diante da invasão oceânica. De século em século a hora diluviana
fora soando para Herbavilla, a oeste de Nantes, para Saint-Denis-Chef-de-Caux,
ao norte do Havre, para Saint-Etienne-de-Paluel e Gardoine ao norte de Dol,
para Tolente, a oeste de Brest, para Porspican, vizinha de Cancale. Mais de
oitenta localidades da Holanda tinham sido tragadas no qüinquagésimo século.
Noutras regiões as modificações se verificaram em sentido inverso, o mar havia
recuado. Ao norte e oeste de Paris, porém, a dupla ação do abaixamento do solo
e erosão das costas produziram em 8.000 anos um lençol líquido navegável para
navios de alto porte.