quinta-feira, 10 de novembro de 2011

A ALMA E DEUS

XIX


A ALMA E DEUS


O estudo do fenômeno inspirativo nos leva agora a consi­derar as relações entre a alma e Deus. Nas páginas precedentes, comparamos a expansão do pequeno consciente individual no infi­nito consciente cósmico, que constitui o fenômeno inspirativo, com o caso em que uma célula individualizada pudesse alcançar a cons­ciência de todo o organismo humano. Cabe agora aqui indagar: serão estas as relações entre o "eu,' individual e o "eu,' cósmico, isto é, entre a alma e Deus, as mesmas que ocorrem entre uma cé­lula e todo o organismo?
É  certo que desde o átomo até à molécula, ao cristal, à célula, e a todas as formas de vida individual e coletiva, se cada individualização do ser revela saber quanto lhe basta para existir, não tem, todavia, de modo algum, consciência do Todo. O próprio homem, que se situa no ápice da evolução biológica, não tem cons­ciência senão de uma parte mínima da sua vida, da qual só possui muito limitadamente as diretrizes. Temos, então, que atribuir ao consciente universal esse conhecimento que as individualizações iso­ladas do ser não possuem propriamente. Assim se delineiam as re­lações entre o "eu" individual e o "eu', cósmico, isto é, entre a alma (tomada no sentido lato, inclusive como a alma das coisas) e Deus. Ora, imaginar que cada uma das várias individualizações do ser representa a sede de uma íntima imanência neles, no fundo e além do seu relativo consciente, do consciente do "eu" universal, que sabe e pensa em cada ser dentro dos limites de sua natureza, provendo-lhe a vida - imaginar tudo isto é mais plausível e con­vincente do que conceber um universo regido, não se sabe como e por que meios - por um consciente “eu”, universal que lhe é exterior e estranho. Vimos que Deus não é exterior; mas íntimo do ser, e concluímos pela Sua imanência neste. Isto tanto mais se tor­nará convincente, quanto atentarmos para que, se parece conduzir­-nos à impessoalidade de Deus e ao imanentismo panteísta, não ex­clui nem lesa, efetivamente, o conceito do Deus pessoal e trans­cendente.
O     consciente universal é, pois, íntimo ao ser, representan­do o imenso fundo de sabedoria que guia toda a sua vida, sem que ele se aperceba de nada. Neste campo se incluem o funcionamen­to orgânico, tudo o que é guiado pelo instinto, o desenvolvimento das alternativas coletivas que constituem a história. Ainda se in­cluem a Lei que enquadra os nossos atos livres na férrea concate­nação causal e depois se desenvolve no destino individual e coleti­vo, a oportuna intervenção da Providência - guia e ação situadas além do conhecimento e das forças humanas, e assim por diante. Se o universo foi gerado, como vimos, por uma Substância pensante, o que vale dizer, feito de divina imanência, justamente por esta razão todo ser é dela feito, ou seja, é pensante na sua profundi­dade. Se ele não tem disso consciência, não importa. De como ele vive e funciona devemos deduzir que este pensamento está nele, mesmo que ele não o note, como está, não apenas nos seres evoluí­dos, mas até nas mais involuídas formas da matéria bruta.
E este pensamento uno, que reconduz as infinitas formas à unidade do Todo e constitui a universalidade da Lei - una. En­tão, que diferença existirá, por exemplo, entre a pedra, a árvore e o gênio? Ela reside no grau em que a individualização do ser, se­gundo seu plano evolutivo, consegue participar desse consciente universal, isto é, consegue despertar conscientemente, ou seja, em consonância, no seio do pensamento de Deus. Em outras palavras, poder-se-ia dizer que o universo é inteiramente feito dessa primor­dial Substância conceptual que é o pensamento de Deus, e qual um infinito oceano vibrante, em cujo seio, porém, cada individuali­zação do ser não vibra da mesma forma, sendo mais ou menos desperta e participe, como estado de consciência dessa vibração. Em tudo o que existe, há a possibilidade de poder atingir toda a vibra­ção do pensamento de Deus, mas tal vibração não existe em ativi­dade, ela está latente, adormecida, à espera de gradual despertar. E a este despertar que se denomina evolução.
Podemos agora melhor compreender o significado dos conceitos de subconsciente, consciente e superconsciente, já expos­tos no volume: Ascese Mística. O consciente é a zona de trabalho (com a experiência da vida) e de despertar do ser para entrar em vibração no consciente universal. A evolução não é, assim, um avanço cego, mas um despertar vibratório, segundo esquemas pré-existentes, por conseguinte pré-estabelecidos, no consciente univer­sal. O subconsciente é a consonância, a sintonização já adquirida com esse consciente e estabilizada nos automatismos (instintos, idéias inatas etc.). Ele abre o campo já explorado pelo ser na ex­periência realizada na vida; e tanto é sua propriedade, como expressa suas qualidades. Ele coincide com o pensamento de Deus,. mas nos mais baixos planos de sua expressão, sendo, pois, guiado pelo consciente que já começa a vibrar nos planos mais elevados. O superconsciente é o pensamento de Deus, ainda latente e adormecido no ser, que ainda não se pôs a vibrar em zonas evolutivas mais elevadas. Ele está, pois, para o ser ainda em estado de não-consciência.
Poderemos dizer com o suave Virgílio: "Mens agitat mo­lem"[1], no sentido de que dentro de cada forma e atrás de toda aparência há um proporcionado despertar com relação ao divino, de um estado vibratório que a rege. Veremos, então, atrás da hie­rarquia das formas uma interior hierarquia de consciências, cons­tituída pelos graus de consonância atingidos pelo ser em relação com o pensamento divino. Desta forma, no consciente do indiví­duo vão surgindo problemas cada vez mais vastos e complexos, à medida que ele sobe. A uma planta bastará resolver o problema da assimilação e respiração. O gênio. sentirá necessidade de resol­ver o problema do universo.
Assim, pois, vemos que as posições de subconsciente, consciente e superconsciente são relativas ao grau de evolução de cada ser. Para o homem racional o subconsciente representa ape­nas o pensamento sensitivo do animal e vegetativo da planta. Pa­ra o animal, é subconsciente este último, enquanto para a planta é subconsciente o pensamento molecular, isto é, o que preside à cons­trução e funcionamento dos elementos químicos componentes; pa­ra estes o subconsciente é o pensamento atômico, isto é, o dos dife­rentes edifícios eletrônicos componentes.
E em direção oposta, poderemos dizer que, assim como para o homem racional o superconsciente é o pensamento intuitivo sintético do super-homem, também para o animal o superconsciente é o. pensamento racional humano, para a planta é o pensamento sensitivo do animal, par' a molécula da química inorgânica é o pensamento celular vegetativo da planta e para o átomo é o pen­samento molecular da química. Assim se pode compreender o sen­tido que está no fundo das palavras de Sertillanges: “na natureza tudo tende a subir. A apoteose da matéria está no vegetar, a do vegetal, no sentir, a do animal, no pensar.”
Como se vê, o ser, da mesma forma que o homem, move-se em um ilimitado oceano de pensamento, em que o seu próprio avança mais ou menos e se expande, conforme o estado de conso­nância que ele, evolvendo, consegue atingir. O pequeno "eu" indi­vidual tem de se haver sempre com este consciente universal, que é o Deus imanente, no qual ele está imerso, como em uma atmos­fera de pensamento que ele respira com o seu pensamento e com o qual se comunica por um contato que constitui a vida. Para o homem, o Deus imanente é uma zona ilimitada, situada além da sua consciência e qualquer processo evolutivo, até à fulguração do gê­nio, constitui uma aproximação Dele por progressiva consonância. Estamos circundados pelo mistério. Mas a evolução consiste jus­tamente na expansão de nosso consciente individual no infinito consciente cósmico. Poderemos imaginar o primeiro como uma pe­quena circunferência que, partindo do mesmo centro, se dilata no seio da infinita circunferência do consciente universal. Podemos também representar a Substância pensante do Deus imanente, cons­titutivo do Todo, inflamar-se de estados vibratórios mais ou menos intensos e complexos em vários pontos, que formam, deste modo; os centros pensantes que constituem o consciente dos vários “eu” individualizados. O fenômeno inspirativo não passaria, então, de um índice que nos revela haver o ser executado, através de um despertar vibratório, mais um lanço evolutivo, uma dilatação de consciência, expressão de uma catarse biológica.
O que espera o homem a despertar no superconsciente é o Deus imanente, o consciente cósmico. Ali já está escrita a res­posta a todos os porquês, feitas estão todas as descobertas, eviden­tes são todos os mistérios  Segue-se daí que o problema do conhe­cimento é sobretudo uma questão de maturação biológica. E prin­cipalmente esta, e não as elucubrações racionais, que inflama o lam­pejo ao gênio, porque, sendo evolução, leva o homem a vibrar har­monicamente mais próximo  do pensamento  de  Deus.  Então, en­trando num plano de vida mais alto, nasce uma nova sensibilização espiritual: o que antes era um superconcebível, torna-se esponta­neamente, inteligível e se revela. Quando não é o indivíduo isolado que avança (o gênio), mas um grupo ou mesmo a massa humana, então o fenômeno inspirativo se generaliza, segundo a potência de cada um, surgindo a era das conquistas do pensamento, os grandes séculos construtivos, as descobertas em cadeia, como hoje. Tudo explode assim, em um surto evolutivo em todas as partes do mun­do, quase contemporaneamente, acreditando cada célula da huma­nidade haver feito uma descoberta com seu engenho. Todavia, não se trata senão de uma geral maturação biológica. Esta é a razão pela qual somente hoje se fizeram descobertas antes julgadas im­possíveis e inconcebíveis pelo homem. E logo chegarão novas orien­tações sobre aquilo que atualmente é tomado por superconcebível. No fundo trata-se tão somente de sensibilizações progressivas, de que nascem mais elevadas consonâncias ou sintonizações com o pensamento de Deus.
Toda a evolução se reduz, assim, a um problema de sensibilização nesse sentido. As janelas de nosso consciente sobre o mundo hoje são poucas. E é preciso ser bastante involuído, isto é, adormecido, para sentir-se bem satisfeito em uma casa tão pequena e escura. A conquista da verdadeira liberdade não está na liberda­de de mostrar-se animalesco, mas no despertar de consciência que nos permite sair da tremenda prisão da ignorância e da inconsciência. Quantas mensagens constantemente o consciente universal não enviará ao nosso minúsculo consciente individual! Maravilhosos apelos, e nós continuamos surdos, sem compreender! Tudo vibra de pensamento e freme de vida em derredor de nós, e não sabemos por-nos em contato com este maravilhoso universo saturado de Deus, porque não estamos sensibilizados, não sabemos vibrar em uníssono, para ouvir e responder. E permanecemos mudos e inertes no vórtice de todos os esplendores do concebível. Estamos encar­cerados na matéria. Em torno, tudo nos empareda nas barreiras de nossa insensibilidade. E o involuído não arde senão na ânsia de refo­cilar na lama das suas baixezas, porque aí estão os seus atrativos, porque essa é para ele a vida. Que pobre vida, quando somos fei­tos de infinito, para o infinito! Pobre involuído, manobrado como um fantoche pela Lei a que, enquanto crê comandar, nada mais faz no fundo que obedecer, porque é ela que o comanda e deve coman­dar como a um títere, pois que ele nada sabe, nem pode mesmo dirigir!
Mas observemos ainda as relações entre o "eu" individual e o "eu" cósmico. Já idealizamos o consciente individual, sediado no consciente universal, como as células no organismo humano. Já conhecemos a estrutura hierárquica piramidal dos seres, pela qual, consoante o principio das unidades coletivas, se passa a um número crescentemente reduzido de individualizações sempre mais sintéti­cas, partindo de uma incomensurável quantidade de individualiza­ções, tanto mais particularizadas e analíticas, quanto mais descemos na escala dos seres. Assim, da célula se desce à molécula, depois aos átomos, aos elétrons etc., ao passo que se sobe para o órgão, para o organismo completo, para o grupo familiar, nacional, para a humanidade etc.. O mesmo se dá no plano da matéria inorgânica, na construção dos universos estelares. Esta, em cadeia, é a técnica construtiva dos edifícios do ser.
Ora, dissemos que, por de trás dessa estrutura física, exis­te uma outra mais real que a rege - a espiritual, animadora dessas unidades, uma outra estrutura hierárquica piramidal, feita de pen­samento. O universo não será inteligível  se, atrás da hierarquia exterior das formas, não enxergarmos essa outra hierarquia de mo­tivos conceptuais ou de modelos abstratos que são aqueles segundo os quais as formas se plasmam. Por trás dos planos biológicos existem planos conceptuais que se sobrepõem e se escalonam ascen­dentemente numa hierarquia de princípios espirituais que culminam em Deus - vértice da pirâmide ou centro da circunferência. Se­gue-se daí que, com o progresso da evolução, se a forma muda é porque, sobretudo, muda a natureza do pensamento que ela expres­sa e muda a consciência do ser em conseqüência da elaboração do viver. Eis, pois, o que existe de substancial no substrato da evolu­ção e no que a rege: o progressivo despertar do "eu" em um estado vibratório cada vez mais elevado.
Estamos agora em condições de encarar a evolução de um modo mais substancial, isto é, mais correspondente à verdadeira realidade, que é a interior à forma. A evolução não é, pois, um aprimoramento de organismos, a não  ser como última conseqüência Ela corresponde, contrariamente, a um conceito metafísico: o despertar do espírito, a mobilização das qualidades adormecidas e latentes no inconsciente e, com isto, a reconstrução através da ex­periência na matéria, do sistema espiritual desmoronado, até que o Deus imanente, nele incorporado, retorne ao estado de origem, pa­ra coincidir com o Seu aspecto transcendente. Assim, a formação das unidades coletivas em dimensões cada vez mais vastas, não constitui apenas uma agregação de elementos, mas uma organiza­ção dos mesmos, de modo a que cada unidade superior represen­te uma perfeição maior, conseguida por efeito de mais profunda manifestação do espírito, e mais profundamente desperta.
Não se trata, pois, de ver no universo somente um infinito oceano de pensamento,          uma infinita atmosfera pensante, de que tudo vive. Isto  é verdade mas é insuficiente. Nela se formaram, como dissemos, núcleos de consciências individuais, como no espaço cósmico paralelamente se formaram núcleos de matéria. Ora, este e mais precisamente o aspecto do Deus imanente em nosso univer­so, isto é, não pode ser uma uniforme e informe atmosfera pensan­te, mas o de se ter individualizado em infinitos núcleos de consci­ência ou "eu" pensantes.
Eis no que consiste a imanência de Deus em nosso uni­verso: ter querido, por Amor, seguir o sistema no seu desmorona­mento! Eis no que consiste a maior paixão de Deus por todo o Seu universo: a Sua encarnação e crucificação além do Gól­gota! Eis como se explica o "Tu habitas in me", como a pre­sença de Deus é íntima a nós e às coisas! Eis porque Cristo pôde dizer: "Vós sois Deuses". Poderá parecer audaciosa esta concep­ção, mas é a única que tudo aclara em profundidade.
Vemos, efetivamente, que cada unidade coletiva superior não representa somente a soma das suas unidades componentes, mas alguma coisa a mais. Nela há coordenação e organização da ativi­dade dos elementos constitutivos, criação, por conseguinte, de qualidade que eles não possuem isoladamente, execução de encargos que eles, sozinhos, não poderiam realizar. Com a fusão das unida­des menores em unidades coletivas, nasce algo de novo, que antes não existia em nenhuma delas e que elas conseguem somente com essa união. Isto tem um profundo significado. Antes de tudo, o nascimento dessa qualquer coisa dê novo não pode deixar de ser um desenvolvimento do latente, como vimos, porque de outra ma­neira ele seria inexplicável. E desenvolvimento do latente não pode significar senão maturação evolutiva no espírito, isto é, o desper­tar do ser no seio do Deus imanente, como vimos. Mas há mais: é que tudo isto só se verifica com a técnica das unidades coletivas. Logo, esse desenvolvimento do latente e o despertar do Deus ima­nente no espírito de cada ser não ocorre senão por reunificação dos fragmentos de um sistema desmoronado, senão por irmanação e fusão em organismos superiores mais vastos e orgânicos dos diver­sos "eu", em que o Ser-Uno se fragmentou originariamente. Pode­mos então dizer que a lei das unidades coletivas, por nós algures mencionada e demonstrada, nos prova que a reunificação é o sis­tema de reconstrução e que, quem se reunifica, se reconstrói. Eis, portanto, a técnica do retorno do anti-sistema ao sistema.
Concluímos agora com esta grave afirmação, levando até às últimas conseqüências os motivos acima assinalados: as diferen­tes almas individualizadas são fragmentos do Espírito e constituem cada individualização decaída em toda forma existente. O que ani­ma o ser e sem o que não pode haver existência é a doação por Amor do Deus Criador, Que não abandonou a criação, mas nela permaneceu no Seu aspecto de Deus imanente. Foi dessa doação por Amor que nasceram os diferentes espíritos, não apenas os in­corruptos do sistema, mas igualmente os corruptos do anti-sistema. E estes, no plano humano, somos nós, homens, como almas. Quan­do, pois, chamamos a estas: centelhas divinas, devemos subenten­der fragmentos de Deus. E, enquanto os espíritos incorruptos per­maneceram unidos em Deus, nós, espíritos rebeldes, ficamos isola­dos. Cada espírito entre nós é um fragmento do Espírito-Deus Que, pulverizado em nós no anti-sistema, se precipitou conosco na for­ma. Eis em que sentido nós somos Deuses. E o somos.
Explica-se, desta forma, por que essas centelhas têm tan­ta fome de unidade, atraindo-se e rejubilando-se, quando, supera­das as resistências do anti-sistema, conseguem irmanar-se, como re­comenda o Evangelho. Justamente esta é a razão: por mais que a rebelião do anti-sistema queira o contrário, elas se sentem disper­sas, insuladas, e procuram na união recuperar a potência, a inteli­gência, a vida. Por isso, a unificação é criadora, pois ela é, e só agora podemos entender, a reconstrução do universo desmoronado, ou seja, do Deus-Uno, fragmentado em infinitos "eu" menores e que, do Seu aspecto imanente reconstrói, até atingir novamente o Uno, representado por Deus no Seu aspecto transcendente. Todo o grande drama do ser decaído pode, assim, resumir-se em duas pa­lavras: fragmentação e reunificação.
Fragmentação, reunificação! A potência reconstrutora do Todo é dada pelo mesmo Amor que caracterizou a primeira gênese, mesmo quando, na reconstrução, ele devesse assumir o aspecto ne­gativo de sacrifício. Este, de fato, representa para a criatura decaída a única forma de verdadeiro amor construtivo. O amor-gozo é apenas uma recordação da sua origem: gozo limitado, fugaz, ilu­sório, quase que somente tolerado com mera introdução ao amor-sacrifício, que não efêmero nem ilusório, mas o único verdadeiro e construtivo. Fragmentação, reunificação. Deus está sempre pre­sente, é sempre o Todo. Reunificar-se é o grande propósito de to­do o universo; porque no fundo de todas as formas há um peque­no fragmento de Deus, que tem fome de voltar a ser Uno. Se o universo é todo um desencadeamento de antagonismos, desde o plano físico ao espiritual (repulsão-ódio), ele é também um anseio de amplexo em todos os planos (atração-amor). Fragmentação significa a revolta e o desmoronamento, terminando no caos. Reunificação significa a obediência e a reconstrução, terminando na ordem do Uno.
Este é também o caminho de nosso mundo. Se descermos os graus e tempos mais involuídos da humanidade, encontraremos aí o politeísmo. Deus estava fragmentado também como concepção e vinha sendo, desde os tempos da Grécia e de Roma, adorado por fragmentos. Mas deu-se a superação na unificação, passando-se ao monoteísmo. Então a humanidade volveu a olhar mais para o alto, deixando a dispersão divina pelo Centro­-Uno e, mais amadurecida, pôde compreender melhor a unificação. Mas não basta. O politeís­mo está para o monoteísmo, como este para o monismo. Atente­mos para este fundamental conceito do Uno e não apenas para o significado que se pode dar a esta palavra por ter sido usada por esta ou aquela escola filosófica. Monismo aqui significa ter com­preendido não somente a unidade de Deus, mas também a unidade do Todo, pela qual tudo o que existe forma um sistema único, do qual Deus é o centro.
A vida do indivíduo se torna grande quando ele compre­ende que é, no sentido exposto, o filho de Deus. Grande coisa se torna a organização da sociedade humana, quando é concebida co­mo um momento do processo de reorganização do universo, que se está reconstituindo para retornar a Deus. Eis o grande sentido teológico que se pode conferir à política e ao Estado moderno. O indivíduo é uma célula sua e esse Estado é uma célula da humani­dade, que é célula da vida. E ai de quem falsear os valores subs­tanciais e usurpar, perante a hierarquia que se inicia em Deus, uma posição que não corresponde aos valores intrínsecos.  Permanece para todos, crentes ou ateus, a imanência de Deus, e quem forja mistificações ou falseamentos experimenta nas próprias carnes o punhal da dor. Mas nem por isso a reconstrução estaca. Perde-se o indivíduo, mas o sistema se reconstrói da mesma forma, porque esta é a Lei. E ser tem de se reconstruir plano por plano. E quando dizemos ser, dizemos a nossa alma, ou seja, centelha de Deus em nós imanente. E sofremos juntamente com Deus, porque em sua profun­deza o nosso espírito é Deus. A alma sofre em Deus e Deus sofre na alma.
Mas cada vez que uma alma se irmana a uma outra, é um fragmento de Deus que se uniu a outro fragmento, e um passo foi dado para a reunificação . O incêndio originário começa assim a reacender-se aqui e acolá pelas fagulhas semi-extintas. Cada duas chamas que se unem não ardem, por duas. mas por quatro. Sata­nás, força do anti-sistema, desesperadamente lança água no fogo com a cisão, procurando frenar a reconstrução, porque esta signifi­ca o fim do seu reino, que é o caos. Mas assim ascendendo, com a elaboração de cada célula e a fusão com outras células, as cons­ciências individuais se reorganizam para reconstruir o "eu" cósmi­co, a consciência do universo. Cada consciência inferior, dissemos, em face da superior, é sempre de caráter analítico; a superior, dian­te da inferior, é de caráter sintético. A superior adquire funções de coordenação para fins mais elevados, antes ignorados. Uma célula se torna diferente quando faz parte de um organismo, assim como um homem quando integra um exército ou qualquer organização social. Ele então age e produz de outro modo. Há uma sublimação e valorização do seu “eu”, assim enquadrado em funções mais altas, flanqueado por outras funções que o completam na colaboração. Colaborar é muito mais do que trabalhar, quer pelos fins, quer pelos meios, seja pela unidade coletiva, seja pelo indivíduo. Quanto mais orgânica se torna a vida, tanto mais altos, vastos e po­derosos são os fins que se podem atingir.
     Com esta orientação cósmica podemos apreciar o valor de cada ato nosso, quer como indivíduos., quer como sociedade. Tudo evolve e nós evolvemos como indivíduos e como sociedade, em demanda de sínteses mais vastas, profundas e compreensíveis. Nós, centelhas de Deus, somos os operários de Deus para a reintegração do Deus imanente. A nossa vida não pode ter significação a não ser quando nos pomos em função desta reconstrução. O Deus imanente dorme em nossas profundezas. Despertando nós ou ressurgindo Ele - o que é a mesma coisa - na profundidade do nosso espírito, reconstruir-se-á no estado. de consciência aquela do universo (o Espírito), que agora jaz no estado de inconsciência que o homem agora se encontra. Isto não significa que o ser, o nosso minúsculo "eu" se torne Deus, mas que Deus volta a ser qual era antes do desmorona­mento do sistema. Não somos nós insignificantes homens, que de novo nos devamos encher de orgulho, mas é Deus que em nós deve despertar cada vez mais, a fim de que o nosso "eu" desapareça reabsorvido Nele. Por isso, nos capítulos precedentes insistimos na atitude a assumir e que o místico assume, pela qual o desenvolvi­mento do "eu" humano consiste na sua anulação em Deus. Isto porque, compreendamo-lo bem, não é o nosso "eu" egoísta e sepa­ratista, filho do anti-sistema, cindido e rebelde a Deus, que deve­mos desenvolver, mas é justamente o nosso outro "eu' divino que devemos despertar e que dorme nas profundidades de nosso espírito. Se agirmos noutra direção, caminharemos, ao invés, para a des­truição e não para a reconstrução. Em lugar de seguir a via: "frag­mentação, reunificação", seguiremos a oposta: "fragmentação, frag­mentando-nos mais ainda".
Concluindo, procuremos penetrar esta estupenda reali­dade: em profundidade todos os seres são uno, isto é, na íntima essência espiritual de todas as individualizações existe uma subs­tância que as funde em unidade, pela qual todas elas retor­nam ao centro comum que tudo irradia e tudo atrai - o Centro - Uno - Deus. No fundo de todos os seres. está esse seu centro, no qual cessa qualquer distinção, e a infinita pulverização dos "eu" separados na periferia do sistema reencontra a sua unidade em um só "Eu". Por isto, amando o seu próximo, o indivíduo caminha para Deus e esta via que o conduz a Deus é a da unificação. Tanto mais o ser se avizinha do centro - Deus, quanto mais sente que a sua alma é a dos outros seres são uma só coisa. Assim, pois, evolução, espiritualização e unificação caminham paralelamente; hoje, quem ama a Deus, O ama em todas as criaturas, e quem vive em todas as criaturas, vive em Deus, ao passo que quanto mais egoisticamente se vive, tanto mais se vive distanciado de Deus.
Não se deveriam dizer estas coisas abertamente ao mundo involuído de hoje, porque ele está sempre pronto a dar-lhes uma interpretação às avessas, satânica. Não se deveria dar ao público a solução dos mistérios aqui obtida por intuição, inacessível pela via racional, solução que deveria ser, pois, naturalmente proibida. Poder-se-ia repetir: “não atireis pérolas aos porcos, a fim de que não as pisem com os pés e se voltem contra vós para dilacerar-vos”[2]. Por isto tais coisas são ditas em livros de complexa concepção, que os cérebros preguiçosos e ignorantes repelem e que a maioria dificilmente penetra, justamente para que poucos as conheçam, mas as possam encontrar prontas quando hajam amadurecido. É, ademais, neces­sário deixar o mundo de hoje entregue às suas ferozes exercitações evolutivas, já que menos ferozes ele não sabe praticar, e as atuais são as de que ele necessita, sendo elas proporcionadas ao seu grau de inconsciência. Porém, quem tem ouvidos de ouvir que ouça e quem tenha intelecto para compreender que compreenda, pois que o quadro da visão do ser está completo e é chegada a hora em que a verdade será dita abertamente sem véus, pelo menos aos mais evoluídos, que podem compreendê-la.
Quem chegar a compreender tudo isto, sabe que é uma eterna, indestrutível centelha de Deus. E sabe também que, no Seu aspecto imanente, Deus está presente em nosso universo, até em nossas menores coisas e que nós não só podemos senti-Lo espiritualmente, mas igualmente vê-Lo. Se não nos é dado con­ceber o Deus transcendente, podemos, no entanto, ver o sem­blante do Deus imanente, pois que toda forma de existência é uma expressão do pensamento e da vontade Dele, é uma manifes­tação do Seu ser. Certamente sendo Ele um infinito, nós não po­demos limitálo no relativo de uma forma particular. Ele permane­ce um infinito, tem, pois, infinitos rostos e o veremos expresso em tudo o que é beleza, bondade, floração de vida e de alegria. Esta e, efetivamente, a manifestação do sistema no lado positivo do ser. Esse sistema, apenas floresce, é minado pelo anti-sistema, negador e destruidor de beleza, de bondade, de vida, de alegria. É assim que tu­do se estiola, corrompe-se e morre. Mas o Deus imanente, sendo a al­ma das coisas, do íntimo delas continua a manifestar-se numa incessante floração e, assim, embora tudo feneça, corrompa-se e morra, tudo de novo refloresce e revive. Desta forma, o sistema, não obstante os contínuos assaltos do anti-sistema, venceu, vence e vencerá sempre, sendo o mais forte.
Esta é a significação de tudo o que existe em derredor de nós, de tudo o que nós mesmos vivemos. E quando o homem peca, ele se coloca no campo do anti-sistema, ao sabor das suas forças, das quais nada mais pode esperar, senão dor. Toda vez que pratica­mos o mal, renovamos a primeira revolta com as suas conseqüências. E temos de subir até nos havermos reequilibrado na Lei, reingressando na sua ordem, por ter seguido as suas normas de harmo­nia e de amor.
Somente o homem que sabe tudo isto, compreendendo a vida, orientou-se no Todo, não sendo mais um cego entregue a for­ças ignotas, mas se tornando senhor de si e do seu destino.


Tirado do livro de Pietro Ubaldi: Deus e Universo: Tradução Erlindo Salzano, Adauto Fernandes de Andrade, Medeiros Corrêa Junior





[1] "O espírito move a matéria". ENEIDA, VI: 727. (N. do T)

[2]  Mateus, 7:6 (N. do T.)

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