SUMÁRIO – A criação
segundo o Materialismo antigo e o contemporâneo. – História científica das
gerações espontâneas. – De como a hipótese da geração espontânea não afeta a
personalidade de Deus. – Erro e perigo dos que se permitem intermitir Deus em
suas controvérsias. – De como a aparição sucessiva das espécies pode resultar
de forças naturais, sem que o ateísmo algo possa ganhar com esta hipótese. – A
Bíblia é atéia? – Origem e transformação dos seres. – Reinos vegetal, animal,
humano. – Ancianidade do homem. – Que todos os fatos da Geologia, da Zoologia
ou da Arqueologia não inquietam a Teologia natural.
“Aos primeiros calores da Primavera os voláteis de
qualquer espécie alaram-se no espaço, libertos do ovo natal. Nos dias estivais,
podemos surpreender a cigarra, rompendo o frágil casulo, partir, cindir os ares
ávida de luz e de alimento. Não de outro modo a Terra produziu a raça humana; a
onda e o fogo, encerrados no solo, fermentaram e fizeram crescer, nos lugares propícios,
germens fecundados, cujas raízes vivas mergulhavam na terra.
Chegado o tempo da maturidade e rompido o invólucro que
os enclausurava, cada embrião deixou o âmago úmido da terra e apoderou-se do ar
e da luz. Para eles se dirigem os poros sinuosos da terra e, reunidos em suas
veias entreabertas, escorrem ondas de leite. Assim, vemos ainda, depois da
gestação, as mães se repletarem de um leite saboroso, porque os alimentos,
convertidos em suco nutritivo, lhes intumesce o seio. A terra, portanto, alimentou
os seus primeiros filhos, que tiveram no calor as primeiras vestes, e, por
berço, a relva abundante e macia.
“Assim como a tenra avezinha, ao nascer, se reveste de
plumas ou de sedosa lanugem, assim a terra jovem se recobre de macia ervagem e
flébeis arbustos. E não tarda, também, a conceber as espécies animadas,
mediante combinações inúmeras e variadas: a terra incuba os seus habitantes,
que não desceram dos céus nem emergiram dos abismos tenebrosos. É pois, a justo
título de reconhecimento, que se lhe dá o nome de mãe. Tudo o que respira foi
concebido em seu ventre; e se ainda hoje vemos seres vivos lhe brotarem do
limo, quando, molhado da chuva, ele fermenta à luz solar, porque nos admirarmos
maiormente que seres mais numerosos e mais robustos lhe saíssem dos flancos,
quando ela, a terra e a essência etérica, ainda se incendeiam dos ardores da
juventude?”
[i]
Assim se exprime o corifeu do velho materialismo. Nisso,
ele é bem o intérprete fiel do seu mestre, Epícuro, cujo sistema físico aqui
resumimos em poucas palavras
[ii]:
À força de percorrerem céleres e ao acaso a imensidade,
os átomos se reuniram e se combinaram; daí, massas ainda informes e
inorgânicas, mas já apreciáveis por sua composição. Com o correr dos tempos,
essas massas, diferentes em peso, foram arrastadas a direções diferentes, ou
com velocidades diferentes, umas caindo e subindo outras.
Uma vez existente a água, em virtude da sua fluidez,
encaminhou-se para os lugares mais baixos, para as cavidades mais próprias a
contê-la. Outras vezes, houve ela mesma de preparar o seu leito. As pedras, os
metais, os minerais em geral, nasceram no âmago do globo, segundo a espécie de
átomos ou de germes nele encerrados, quando a atmosfera se destacou do céu.
Daí, essas colinas, montanhas, acidentes numerosos, que diversificam a
superfície do solo: montes a prumo, ao lado de vales profundos, de extensos
altiplanos cobertos de vegetação multifária, que lhe são indumenta garrida,
quanto para nós a seda, as penas, a lã, etc. Resta explicar o nascimento dos
animais. É verossímil que, contendo a Terra germes fresquíssimos e adequados à
geração, produzisse em sua crosta uma espécie de bolhas cavas, à maneira de
úteros, e que essas bolhas, em atingindo a maturidade, rebentassem e dessem à
luz os incipientes animaizinhos.
Intumesceu-se, então, a Terra de humores semelhantes e
os recém-nascidos viveram a expensas deste alimento.
Os homens, diz Epícuro, não nasceram de outro modo.
Pequenas vesículas à maneira de úteros, ligados à terra pelas raízes, avolumaram-se
batidos pelos raios ardentes do Sol, produziram tenros rebentos e mantiveram
sua vida a expensas do líquido lácteo que a Natureza lhes preparara. Os homens
primários são o talo da espécie humana, que, depois, se propagou por vias
usuais, até hoje.
Eis, creio, uma hipótese bem simplista. Ela explica,
simultaneamente, como o homem contemporâneo é menor e menos robusto que o
primitivo. A espécie humana nascia, então, espontaneamente, do solo mesmo da
terra e hoje os homens procedem uns dos outros
[iii].
O pensamento manifesta-se por entrosagem dos
movimentos, que, desenvolvidos primariamente numa substância desprovida de
racionalidade, acabam reproduzindo-se artificial e não espontânea e cegamente.
Os movimentos atômicos foram, indubitavelmente, obra do
acaso, sem contingência de racionalidade e, nada obstante, desde os primórdios
do mundo, existiam animais que se diriam protótipos raciais.
Uma vez formados esses animais pelos átomos errantes em
todas as direções, a engendrarem movimentos de aproximação, de repulsão, de
exclusão ou de junção, alguns, apenas, vinham adaptar-se e conjugar-se aos
átomos do animal protótipo, isto é, os que com estes se identificavam em
natureza. Os outros, ao contrário, eram repelidos, por dissímeis dos
constitutivos do animal.
Tudo se explica, portanto, exceto a maneira como, nos
primórdios do mundo, se formaram os protótipos. Isto é o que Epícuro não
explica, ao menos com raciocínios claros.
Pois é sob os auspícios desta filosofia, que ousam
colocar-se os senhores materialistas do século XIX
[iv].
Graças à capciosa linguagem de Lucrécio e à doutrina
simultaneamente estóica e displicente de Epícuro, essa gênese simplista conta
sempre muitos partidários. E no entanto, apesar de tudo, nada existe de menos
científico. Reparai, pela manhã, num bando de insetos que voam de um torrão de
argila esfarelado! o barão de Munchausen põe a mão num montículo de terra, bem
no centro do campo arroteado, e logo uma ninhada de melros brancos, seguida de
aves outras, põe-se a correr pela jeira em fora. Até hoje só sabemos de alguém
que haja testemunhado um tal nascimento, de um ser nosso irmão: é Cyrano de
Bergerac, quando, de sua viagem ao Sol, realizada aos 30 de Fevereiro de 1649,
no momento de lá aportar, houve de parar para tomar fôlego em um dos
planetóides que gravitam em torno do astro-rei
[v].
Notemos, todavia, que o materialismo de Lucrécio não é
tão grosseiro qual o interpretam.
A alma do poeta diviniza as forças da Natureza.
D’Holbach, ao contrário, não tem alma; desdenha a força, não vê senão a matéria.
Podem seres vivos nascer espontaneamente de elementos
químicos como o hidrogênio, o carbono, o amoníaco, a lama, a podridão? Houve
quem o acreditasse por muito tempo, e ainda hoje existe uma escola positiva,
empenhada em demonstrar experimentalmente a veracidade da hipótese. Ouçamos
alguns corifeus, antigos e modernos.
Colhamo-los ao acaso. Van Helmont diz: se espremermos
uma camisa suja (sic) no orifício de um vaso que contenha grãos de trigo, este
se transformará em ratos adultos ao fim de 21 dias, mais ou menos. Perfurai um
buraco num tijolo, metei nele manjericão pilado e justaponde ao tijolo outro
tijolo, de maneira a vedar completamente o buraco, exponde ao Sol os dois
tijolos e, no fim de alguns dias, o cheiro do manjericão, operando como
fermento, transformará a erva em legítimos escorpiões. O mesmo alquimista
pretendia que a água da fonte mais pura, lançada em vaso impregnado do odor de
um fermento, corrompe-se e engendra vermes.
Dêem-me farinha e tutano de carneiro – dizia Needham em
o seu Novas Descobertas Microscópicas
– e eu vos pagarei com enguias.
Voltaire, a sorrir, respondia-lhe que também esperava
ver um dia a fabricação de homens por esse mesmo processo. Sachs ensina que os
escorpiões são produto da decomposição da lagosta.
Na matéria dos corpos mortos e decompostos, dizia o
próprio Buffon, as moléculas orgânicas, sempre ativas, trabalham para revolver
a matéria putrecida e formam uma chusma de corpúsculos organizados, dos quais
alguns, como as minhocas, os cogumelos, etc., são assaz volumosos. Todos estes
corpos só vivem por geração espontânea. Presentemente, o Dr. Cohn, de Breslau,
pretende que a morte da mosca comum, no Outono, é ocasionada pela formação de
cogumelos no corpo do inseto. Há em tudo isso, sem dúvida, como em tantas
outras coisas, que traçar um limite a essas faculdades dos elementos
organizados; e nós nos disporíamos melhor a crer na formação dos cogumelos
microscópicos sobre o órgão atrofiado da mosca, tanto quanto do fúcus num
pulmão enfermo, ou de mofo num tronco de madeira, do que acreditar com as boas
velhas fiandeiras do cânhamo em nossa infância, quando nos diziam que a crina
arrancada à cauda de cavalo branco e atirada a um regato se transformava,
dentro de três dias, numa enguia branca. Este é também um absurdo bem cotado em
algumas regiões do Este da França. Lembra-nos de o haver tentado, ao tempo de
Luís Filipe, mas, como só contávamos seis anos de idade, também é admissível
que a nossa cândida ignorância não nos permitisse um legítimo triunfo.
Por não ter levado a termo final as suas observações,
Arístoto manteve-se na erronia de que os insetos nascem das folhas verdes,
assim como os piolhos da carne e os peixes do lodo. Muito curioso ver até que
ponto Plínio, traduzindo Arístoto, chega à descrição desse nascimento imaginário.
“A lagarta – diz – sai de uma gota de orvalho, caída nos primeiros dias da
Primavera e que, condensada pelo Sol, se reduz ao tamanho de um grão de milho.
Assim elaborada, essa gota, estendendo-se, faz-se pequeno verme (ros
porrigitur vermiculus parvua) que, dentro de três dias, transforma-se em
lagarta”. Nada, porém, ultrapassa a argumentação de Plutarco nas Symposiacas,
ou Colóquios à Mesa, no intuito de resolver a velha questão aventada por Pitágoras,
ou seja: a prioridade do ovo ou da galinha. Esse discrime dá uma idéia das
opiniões suscitadas na antigüidade e agora revividas, sem contudo levar em
conta o ultraje irreparável dos anos.
Plutarco conta-nos, pois, que tão logo propôs a
questão, seu amigo Sila o advertiu de que, por uma causa tão simples, qual uma
alavanca, haveriam de acionar a pesada máquina da conformação do mundo e, por
isso, desistia de o acompanhar.
Aelevandre, irônico, declara que a questão é meramente
ociosa e Fírmus, seu parente, tomando a palavra, exclama: dai-me, pois, os
átomos de Epícuro, visto que, se importa presumir que minúsculos elementos são
os geradores de grandes corpos, é bem provável que o ovo tenha precedido a
galinha, e ainda porque, tanto quando podemos julgar pelos sentidos, ele é o
mais simples e ela o mais complexo.
Em regra, o princípio é anterior ao que dele procede.
Dizem que as veias e as artérias são as primeiras partes que se formam no
animal. É possível, também, que o ovo tenha existido antes do animal, pela
razão de que o continente precede o conteúdo. As artes começam por esboços
grosseiros e informes, que se aperfeiçoam parcialmente, na forma que mais lhes
convêm. Dizia o escultor Policleto nada haver mais difícil na sua arte do que
dar à sua obra o último toque de perfeição. É de crer, assim, que a Natureza,
ao imprimir à matéria o movimento inicial, tendo-a encontrado menos dócil, só
haja produzido massas informes, sem linhas definidas, quais são os ovos, e que
o animal não viesse a existir senão depois do aperfeiçoamento dos primeiros
esboços. A lagarta foi a primeira formação: quando, mais tarde, endurecida e
ressequida, parte-se-lhe o casulo, dele se libra o volátil a que chamamos
ninfa. No caso vertente, do mesmo modo, o ovo preexistiu como matéria prima de
toda a produção, pois em toda a metamorfose o ser que muda de estado é,
necessariamente, anterior ao de que toma a forma. Vede como o líquen e o caruncho
se engendram nas folhas e nas madeiras, como produtos da putrefação, ou da
cocção das partes úmidas, e ninguém negará que esta umidade não seja anterior
aos animais que ela origina e que, naturalmente, o que origina não seja
anterior ao originado”.
A prioridade do ovo parecia bem estabelecida com este
excelente palanfrório, quando um tal Senésio se intrometeu a contraditar. “É
natural – diz ele – que o perfeito anteceda ao imperfeito, o completo ao
incompleto e o todo à parte. Insensato é supor que a existência de uma parte
preceda à do seu todo. Assim é que, ninguém diz: – o homem do germe, a galinha
do ovo, mas, o ovo da galinha, o germe do homem, por isso que aqueles são
posteriores a estes; devem-lhes o nascimento e pagam, posteriormente, sua
dívida à Natureza, pela geração. Até então, não têm o que convém à sua natureza
e que lhes dá um desejo e um pendor de produzir um ser semelhante ao que os
originou. Eis, porque, também se define o germe uma produção tendente a
reproduzir-se. Ora, ninguém deseja o que não existe, ou jamais tenha existido.
Ao demais, vemos que os ovos têm uma substância cuja natureza e composição são
quase as mesmas do animal e que só lhes falta os mesmos vasos e órgãos. Daí,
jamais se haver dito, a qualquer tempo e em parte alguma, que um ovo, seja qual
for, tenha saído da terra. Os próprios poetas inculcam o que originou os
Tindaridas como havendo caídos do céu. Hoje, a terra melhor produz animais
perfeitos, com sejam os ratos, no Egito, e as serpentes, rãs, cigarras, noutras
regiões. Um princípio exterior fá-la mais apta para essa produção. Na Sicília,
durante a guerra dos escravos, que derramou tanto sangue, a grande quantidade de
corpos insepultos, putrefazendo-se à flor do solo, produziu um número prodigioso
de gafanhotos, que, espalhando-se por toda a ilha, devoraram os trigais. Esses
insetos nascem da terra e de terra se nutrem. A fartura do alimento lhes dá a
faculdade de produzir e, uma vez atraídos pelo gozo de se acasalarem, eles
produzem, conforme a sua natureza, ovos ou animais vivos. Isso prova, claramente,
que os animais, a princípio nascidos da terra, tiveram depois, no seu coito,
uma outra via de geração.
“Eis por que perguntar como poderia haver galinhas antes
que houvesse ovos formados equivale a perguntar como existiram homens e
mulheres, antes dos órgãos destinados à sua reprodução. Eles são o resultado de
certas cocções que alteram a natureza dos alimentos, não sendo possível que,
antes de nascido o animal, algo nele exista, capaz de justificar uma
superabundância de nutrição. Acrescento eu que o germe, a certos respeitos, é
um princípio; ao passo que o ovo não tem essa propriedade, visto não ser o
primeiro a existir. E, tão pouco é um todo, pois não possui toda a perfeição.
Eis por que não dizemos que o animal não tivesse princípio, mas que tem um
princípio de sua produção, que imprime à matéria a sua primeira transformação e
lhe comunica uma faculdade generativa.
“O ovo, ao invés, é uma superfectação, que, qual o
leite e o sangue, sobrevém ao animal depois que ele faz a cocção dos alimentos.
Nunca se viu ovo saído do lodo, pois só se forma no animal. Entretanto, no lodo
nasce uma infinidade de animais. De parte outros exemplos, considere-se essa
quantidade de enguias apanhadas todos os dias e entre as quais nenhuma apresentará
um germe ou um ovo. Esgote-se um poço, retire-se-lhe o lodo, e tanto que o
encham novamente d'água, lá se engendrarão de novo enguias. Portanto, tudo o
que depende de outro elemento para que possa existir, deve ser posterior a esse
elemento e, ao contrário, tudo o que existe sem dependência de outrem, tem
prioridade de geração, pois é disto que se trata. Dessarte, podemos crer que a
primeira produção vem da terra, conseqüente à propriedade que tem ela, a terra,
de gerar por si mesma, sem necessidade de órgãos e vasos que a Natureza
imaginou mais tarde, a fim de prover a fraqueza dos seres geradores.”
Estes raciocínios, que hoje nos causam pasmo, não são
exclusivos de Plutarco. Todos os autores antigos são concordes neste ponto, e
não raro encontramos os que levam a sua ousadia a representar Minerva batendo o
pé para extrair do solo parelhas de cavalos e rebanhos. O relato de Verguio nas
Geórgicas, a respeito de Aristeu, não é fantasia poética, é expressão geral da
crença de que as abelhas nasciam da carne putrefata. O pastor Aristeu perdera
as suas queridas abelhas, invoca sua divina mãe e consegue criar novas
colméias, imolando novilhos:
Hic verum (subitum ac dictum mirabile monstrum)
Auspícunt liquefacta boum per viscera toto
Stridere apes utero, etc.[vi]
Esta velha pendência das gerações equívocas foi há
pouco resumida por Milne-Edwards sob aspecto assaz interessante. Depois de
mostrar que no reino mineral os corpos se formam por simples aderência
molecular:
“Todos sabem – diz ele
[vii]
– que, quando se trata da formação de uma árvore, de um cavalo, a matéria que
constitui essa árvore, esse cavalo, seria impotente para integrar esse vegetal,
esse animal, desde que não fosse atuada por um corpo já vivente – um animal da
espécie do que vai nascer, ou um vegetal da mesma natureza. Assim, na árvore
como no cavalo, esta propriedade particular, a que chamamos vida, transmite-se,
evidentemente. O novo ser é engendrado por um parente, que produz um ser semelhante.
“Há, portanto, uma espécie de sucessão, de transmissão
de força vital, ininterrupta, entre os indivíduos, que formam, no espaço e no
tempo, uma cadeia de que se compõe cada espécie.
“Eis, por conseguinte, uma diferença fundamental, essencial,
entre os corpos brutos e os corpos vivos. O que dizemos da árvore e do cavalo é
aplicável a todos os vegetais e animais conhecidos. Todavia, em dadas
circunstâncias, essa espécie de filiação não é fácil de verificar e tem escapado
a observadores menos atentos e até, por vezes, aos mais hábeis. Assim, quando o
cadáver de qualquer animal é entregue à influência atmosférica do ar, da
umidade, numa temperatura conveniente, – no Estio por exemplo – esse
cadáver sofre uma alteração particular, a que chamamos putrefação. Em tal caso,
vemos manifestarem-se no âmago dessa substância corpos vermiformes, gozando de
todas as propriedades peculiares aos seres animados e, portanto, animais.
Milhões de seres vivos nascem desse cadáver, ao passo que, enquanto vivo o
animal, seu corpo nunca apresentou algo de análogo.
“À primeira vista pelo menos, o que parece interromper-se
é a filiação geradora. É comum ver-se nos campos poças d’água, formadas pela
chuva, logo se coalharem de insetos, de alguns crustáceos.
“Outras vezes vemos, também, na vizinhança de sítios
pantanosos, povoar-se o solo de pequenos répteis. Na maioria destes casos é
difícil, à primeira vista, explicar por via de geração normal o surgimento
desses novos seres. Tão grandes se afiguraram essas dificuldades aos naturalistas
de antanho, que houveram de recorrer a uma hipótese particular para explicar a
origem desses animais. Assim, julgaram indispensável admitir que a Natureza não
segue o mesmo processo, quando se trata de animais superiores, quais os que
emprega na constituição de espécies inferiores, como os insetos, morcegos,
ratos e mesmo alguns peixes. Entre os filósofos antigos o papel da geração
espontânea era considerado importantíssimo. Os naturalistas e filósofos da
Idade Média seguiram de olhos fechados os seus predecessores, e daí resultou
que, durante catorze séculos, uma tal opinião imperou inconteste nas escolas.
Admitia-se, como coisa bem comprovada, que os animais nasciam de duas formas:
ora, à maneira dos corpos brutos, ora por transmissão da força vital, que
sabemos existente nos animais que se engendram sucessivamente, devendo aos
progenitores a existência, a forma, o tipo. Mas, na época da Renascença, houve
uma grande reviravolta nos espíritos. No século 17 constituiu-se em Florença
uma sociedade de físicos, de naturalistas e médicos, com o fim de solucionar
algumas questões por meios experimentais. Essa agremiação denominou-se del
cimente, isto é – da experiência. Um de seus membros, Redi, quis submeter a
investigações positivas a teoria assaz generalizada da geração espontânea. Quis
saber se os seres novos eram engendrados sem progenitura de corpos vivos, ou se
eram produto de organização espontânea da matéria morta; verificar, em suma, se
a hipótese dos antigos tinha visos de verdade. Tentou, então, a produção desses
corpos vermiformes vulgarmente chamados minhoca, que, de modo algum, pertencem
à classe dos vermes e são larvas de insetos. Sabe-se que, nas matérias animais
em putrefação, essas larvas logo se revelam à temperatura mais elevada, e isso
foi o que observou o naturalista florentino. Notou que algumas moscas eram
atraídas de longe pelo cheiro da carne corrompida, adejavam-lhe em torno, nela
pousavam amiúde e, contudo, não pareciam alimentar-se com essa matéria. Conjeturou,
então, que os vermes havidos como espontânea e exclusivamente formados pela
matéria poderiam ser a prole das ditas moscas. E notou, ainda mais, que esses
presumidos vermes, desenvolvendo, transformavam-se em moscas. São pois, na verdade,
filhotes de mosca. Essa verdade não podia satisfazer ao espírito do
naturalista. Colocou, então, a carniça em vasos diferentes, uns abertos e
outros cobertos de papel crivado de orifícios impenetráveis às moscas, mas
arejáveis. Assim viu que as moscas acorriam procurando insinuar o ventre nos
orifícios do papel e que, neste caso, não se produziu um só corpo vermiforme.
Noutra experiência, utilizou um pano com alguns buraquinhos acessíveis à
operação das moscas e viu desenvolver-se uma certa quantidade de óvulos na
carne apodrecida.”
A presença de seres vivos no interior de um corpo ou de
uma fruta, tanto quanto nas regiões profundas do cadáver animal, era igualmente
atribuída à geração espontânea. Supunha-se que matérias orgânicas em putrefação
nos intestinos eram a origem dos vermes.
As observações de Vallisniéri e outros fisiologistas da
época, com frutos e galhos, desmascararam essa crença. Reconheceu-se que todos
esses parasitas não passavam de óvulos depositados por insetos.
O mesmo se verificou com os infusórios, animálculos que
parece formarem-se de elementos em dissolução n'água. Certa feita, Leuwenhoeck
examinou ao microscópio a água da chuva caída na sua janela e exposta ao ar por
algum tempo: a princípio, a água lhe pareceu pura, mas examinando-a ao fim de
alguns dias, notou incalculável quantidade de pequeninos seres, de uma
tenuidade extrema, a moverem-se vivaces e com as características de verdadeiros
animais. Tal descoberta teve grande repercussão e foi confirmada por outros
observadores. Leuwenhoeck constatou que, todas as vezes que expunha ao ar um
pouco d'água contendo feno, papel e matérias orgânicas quaisquer, surgia um
turbilhão de pequeníssimos seres de animalidade bem caracterizada. Para
explicar essa nova população, importava coligir que esses animálculos,
provindos de seres preexistentes, eram carreados pelo ar atmosférico e
depositados em germe, a menos que admitissem a hipótese dos antigos, da geração
espontânea. A primeira teoria ressaltou, em geral, das observações mais completas
e rigorosas.
Daí para cá, durante o último século e no transcurso do
atual, a tese da geração espontânea foi intercorrentemente retomada e
interrompida: retomada a propósito de novas descobertas microscópicas, e
interrompida quando as experiências atestavam a origem animal ou vegetal dos
germes desabrochados. Na hora atual a controvérsia ressurge apaixonadamente,
tratada por diversos experimentalistas, à frente dos quais citaremos Pouchet e
Pasteur, o primeiro pró, e o segundo contra. Mas, ei-la já de novo suspensa e
por um motivo que, diga-se, não deixará de parecer pueril para os nossos
descendentes. É o caso que os contendores de ambos os campos não conseguem
fazer-se entendidos, com o se reprocharem reciprocamente, e ao mesmo título de
legitimidade, de estar combatendo no vácuo.
As experiências realizadas nestes últimos anos e que
recuaram a questão, sem resolvê-la, podem comparar-se às precedentes, já pela
forma, já pelos resultados colhidos. Sucintamente, eis aqui uma dessas experiências:
“Introduzamos num tubo de vidro de paredes muito
delgadas e achatadas – diz o heterogenista Joly – um pouco d’água, um pouco de
ar e alguns fragmentos de tecido vegeto-celular.
“Fechemos a fogo a extremidade do tubo e observemos o
que se vai passar. Em primeiro lugar, veremos formar-se um amálgama de finas
granulações, proveniente, sem dúvida, do tecido vegetal já em desorganização.
Pouco a pouco, nas bordas do amálgama granuloso, destacar-se-ão pequenas
excrescências de transparência perfeita, mas, ainda inertes. É o bacteríum
terma em vias de formação. Esperemos ainda três ou quatro horas e já os
animálculos livres se agitarão visíveis, como se ensaiassem uma existência;
outros virão juntar-se-lhes e bem depressa o número será tal que não podereis
contá-los. Após 6 horas de observação contínua, vossos olhos recusarão
obedecer-vos, estareis fatigado como aconteceu a Mantegazza, mas, tanto quanto
ele, maravilhado de haver surpreendido a vida no seu berço.”
Qual a origem desses seres vivos, articulados peça a
peça sobre essa matéria orgânica, sem filiação de progenitura? Os adversários
respondem que o ar está povoado por miríades de germes em suspensão e que
destes germes provêm aqueles seres. Antes que o demonstrem, vão eles ao cume do
“Montanvert”, fervem as substâncias orgânicas e parece que a dita geração
espontânea não mais se produz.
Eis o em que se resume o debate. Para nós, sem prevenções
contra ou a favor, pensamos haver um fato no qual não se há pensado bastante,
nem talvez de modo algum, e que nos parece digno de representar um papel nesse
drama de microscopia.
A vida está universalmente difundida por toda a
Natureza, a Terra é ânfora assaz exígua para conter a vida, que desborda em
qualquer parte e, não contente de repletar águas e terras, inorgânica, ela se acumula
em si mesma, vive à sua própria custa, cobre de parasitas animais e plantas,
desdobra florestas no dorso de um elefante e faz, de uma simples folha verde, o
pascigo de rebanhos inumeráveis. Ora, essa vida múltipla, insaciável,
inumerável, povoa de animálculos cada espécie de seres e de substâncias. Quando,
pois, vemos os saltões crescerem no interior do queijo; vermes aflorarem do
cadáver; infusórios flutuarem num líquido, não se trataria de animálculos já
existentes em germe num estado inferior, no leite, no animal vivo, no líquido,
e que se metamorfoseiam por influência das condições novas em que se encontram
colocados? Sabemos, porventura, quantas espécies de vegetais e animais vivem em
nosso corpo?
O ovo da tênia semeia-se em profusão; nos tecidos do
porco e do carneiro ele é o humílimo cisticerco, e só no intestino começa a
desenvolver seus inumeráveis anéis, vivendo nas duas hospedarias, isto é, no
animal e no homem. Nós o absorvemos na costeleta de porco ou na fatia de carneiro,
e daí por diante ela – a tênis – se instalará em nossa casa, sem outros
cuidados que os de primeiro inquilino.
As moscas da semente de couve e da farinha fazem morada
em nosso estômago. Em sua maioria, estes familiares da nossa intimidade são
inofensivos, mas alguns há, pérfidos, que acabam matando o seu benfeitor. Quem
não acompanhou a discussão concernente à triquinose? Desde a descoberta do
microscópio, quantos parasitas não se hão encontrado em nosso sangue, em nossa
carne, em nosso pulmão; nos dentes, nos olhos, nas papuas nasais? Nutrimos carnívoros
e herbívoros; temos peixes de água doce a circular em nossas veias, e peixes de
água salgada a nadarem no oceano de nossas artérias. Há uma espécie de fúcus
que vegeta nos pulmões tuberculosos. As excreções da língua de um febrento
compõe-se de multidão de infusórios. Um médico célebre, nosso amigo, tem
observado muitas vezes erupções bruscas de milhares de piolhos em doentes atacados
de tifo (a extraordinária prolificidade desses ápteros bastaria para explicar
essa multiplicação). Os coleópteros não esperam nossa morte para abandonar o
seu domicílio habitual. Imperceptíveis insetos penetram-nos os pulmões e aí
proliferam, de geração em geração. Já se encontrou no esôfago dos bois famílias
inteiras de sanguessugas, indubitavelmente engolidas em estado microscópico e
lá criando o seu “habitat”. O estômago do cavalo constitui ambiente atmosférico
insalubre, adequado à vida das ostras. Quantas espécies não vivem nos seres
animados, sem que estes os percebam, isto sem falarmos dos parasitas externos,
quais a pulga, o piolho. o percevejo, o sarcopto, etc.? Disse um filósofo que
todas as partes de um ser vivo são individualmente viventes e que já é ousada
temeridade enxergar nos animais superiores um edifício celular habitado por multidão
inconcebível de animais elementares. Ora, assim sendo, tudo é vida na Natureza.
Não somente no ar como nas águas, corpúsculos flutuantes, elementos orgânicos e
inorgânicos são portadores de uma vida invisível, espécies que experimentam
três fases comuns ao mundo dos insetos, a revelarem-se sob uma ou outra dessas
metamorfoses, conforme as condições térmicas de calor e umidade que as
envolvam.
Encaradas sob este aspecto, as gerações espontâneas
deixariam de ter seu verdadeiro nome, deveriam somente nos representar uma
modalidade da vida universal, que palpita em cada átomo de matéria. – E esta
maneira de prismar a questão é tanto mais fundada quanto cada espécie surge e
se mantém constante, em relação à substância particular que parece
pertencer-lhe. O infusório do feno não se encontra na sua fervura e o fermento
do vinho não é o mesmo que o do queijo.
Mas, seja como for, o mistério desvendado sob a
aparência da geração espontânea está longe de aclarar-se. Qualquer dia e certo
sem muita delonga, hão de retomar o debate no ponto em que Láquesis acaba de o
encerrar. Quanto ao mais, no pé em que está a questão, o que diz com a criação
da vida conserva a sua velha independência, indene das armas da Heterogenia,
quanto da Panspermia. A luta cessou à míngua de recursos. Atualmente é
impossível saber se o ar mais puro, colhido no cume das montanhas nevadas, não
contém germes. Impossível, igualmente, saber se esses germes não resistem a
temperaturas de mais de cem graus. A nós nos pareceu que os experimentadores teriam
o insucesso (o que de resto é natural), e não operavam com o rigor que teriam
se fossem estrangeiros ou adversários. De qualquer forma, porém, o problema
continuou insolúvel. O que mais vivamente nos impressionou na justa foi a idéia
preconcebida de ambos os lados, aliás, mais de um que do outro. Pretendia-se
encarar de um modo absoluto a questão, como de natureza teológica, quando a
verdade é que o resultado das experiências em nada afeta a Teologia. É uma
declaração que vai talvez surpreender alguns leitores. Entretanto, se profundarmos
o assunto, haveremos de convir que a pecha de ateísmo lançada em rosto aos
partidários da geração espontânea não cabe aos que, a exemplo ao Sr. Pouchet,
não interpretam teologicamente tais experiências; e os que assim não procedem,
incidem na maior das vanidades, quando concluem pela inexistência de Deus
[viii].
Acreditar que seres vivos, vegetais ou animais, possam
nascer espontaneamente da combinação de certos elementos, não é maior
sacrilégio que acreditar os planetas destacados do Sol, ou que a galga seja
prima do cão dos Pireneus. O Ser Supremo nada tem a ver com essas interpretações
superficiais, que constituem, por assim dizer, o campo de carnagem dos míticos
pensadores.
Os micrógrafos mutuamente desacreditaram a sua causa,
fazendo baixar às suas retortas as potências criadoras. Acreditarão eles que,
dado pudesse a matéria inerte tornar-se semi-organizada, e depois organizada,
sob a influência de tais e quais forças, teriam suprimido a causa soberana dos
domínios da Natureza? Absolutamente. O que tais experiências inculcam, e eles
em sua maioria ignoram, é o protesto contra o Deus humano e a elevação do
espírito a concepções mais puras e mais grandiosas, do misterioso Criador.
Será rebaixar a idéia de Deus o considerar o Universo
um como gigantesco desdobramento de uma obra única, cujas modalidades se
manifestam multifárias e cujos poderes se traduzem em forças particulares,
distintas? A substância primitiva ocupa o espaço ilimitado. O plano divino está
em que esta substância seja um dia condensada em mundos, nos quais a vida e a
inteligência hajam de irradiar esplendores. A luz, o calor, a eletricidade, o
magnetismo, a atração, o movimento sob modalidades desconhecidas percorrem,
atravessam essa substância primordial, como o vento da Grécia, que, ao tempo de
Pan, timbrava as harpas eólias no âmbito da noite. Que mão empunha o arco e
preludia o mais magnificente dos coros? Não pode a inteligência humana
defini-lo. Escutemos, atentos, o longínquo concerto da Criação.
No amanhecer da Natureza terrestre, já os sóis
esplendiam, de há muito, na amplidão dos céus, a gravitarem harmônicos em suas
órbitas, sob a regência da mesma lei universal que ainda hoje os rege. Era o
primeiro dia da Terra. Solidões oceânicas, tempestades ígneas, rupturas
formidáveis de águas e nuvens viram chegar-lhes, alfim, uma paz desconhecida.
Raios de ouro atravessaram as nuvens; um céu azul tonalizou a atmosfera; um
belo leito de púrpura se ofereceu ao Sol nesse dia. Então, já não eram dias e
anos a contar, pois períodos imensos, incalculáveis, já lhe haviam coberto o
berço. Os astros são jovens, ainda quando miríades de gestações tenham sucumbido.
As ilhas surgiram, então, do seio das ondas e a primeira verdura estendeu pelas
praias o seu manto virginal. Muito tempo depois, das galhadas vindes rebentaram
flores, de cujos lábios entreabertos se exalavam perfumes. Mais tarde, no bojo
profundo das florestas repercutiu o canto das aves e os hóspedes fabulosos dos
mares primitivos cruzaram-se no reino ondulante. Sucessivamente, a Terra se
dava aos espasmos da vida, animada pelo sopro imortal, vendo luzes e sombras
perpassarem-lhe a face. Suponhamos, um momento, que a força orgânica, que hoje
se transmite de geração a geração, tenha aparecido como uma resultante natural
e inevitável das condições fecundas em que se achava a Terra quando soou a era
da vida; suponhamos as primeiras células orgânicas diversamente constituídas,
formando tipos primordiais distintos, ainda que simples, pobres, grosseiros,
sejam as cepas de sucessivas variedades; suponhamos, enfim, que todas as
espécies vegetais e animais, inclusive a humana, sejam o resultado de
transformações lentas, operadas sob condições progressivas do planeta, e
perguntemos em que, e como, pode essa teoria nulificar a necessidade dum
criador e organizador imanente? Quem deu essas leis ao Universo? Quem organizou
essa fecundidade? Quem imprimiu à Natureza essa tendência perpetuamente
progressiva? Quem deu aos elementos materiais a faculdade de produzir ou de
receber a vida? Quem concebeu a arquitetura desses corpos animados, desses
edifícios maravilhosos, nos quais todos os órgãos tendem a um mesmo fim? Quem
presidiu à conservação dos indivíduos e das espécies na trama inimitável dos
tecidos, dos arcabouços, dos mecanismos – pelo dom previdente do instinto, por
todas as faculdades, enfim, que possuem respectivamente todos os seres vivos e
cada qual de acordo com o seu papel no cenáculo do mundo? Numa palavra: – se a
força vital é uma força da mesma natureza das forças moleculares, insistamos no
perguntar: – quem é o seu autor? Seria por não haver esse autor fabricado tudo
com as próprias mãos, que haveríeis de o negar?
De boa fé, supondes que, se em lugar de escrever letra
a letra, palavra a palavra, esta obra e enviá-la à Livraria Acadêmica, que a
confiou a um tipógrafo; o qual, por sua vez, entregou-a ao paginador, que, por
sua vez, a confiou aos contra-mestres e aprendizes, etc.; e depois, ainda me
obrigou a corrigir provas – sem falarmos na escolha do papel, do formato,
número de páginas, encadernação, tudo enfim que representa a fatura de um
livro; – supondes, repito, que, depois de haver o livro passado por tantos trâmites,
deixasse eu de ser o seu legítimo autor, bastando apenas querê-lo para que o
plano instantaneamente se completasse? Acreditais que, por haver simplesmente
coordenado certas regras, em virtude das quais a idéia expressa em tinta,
papel, chumbo; – agentes inertes e cegos, atuados sob a minha vigilância constante
– se materializou em parte, tão invisivelmente quanto me eclodiu do cérebro, me
tenha destituído de legítima autoria desta obra? Por mim, senhores materialistas,
ficaria muito satisfeito só com o poder evitar a revisão das provas, que, já o
dizia Balzac, é o suplício infernal dos escritores. E se algum pândego de mau
gosto apregoasse pelas ruas de Paris que meu livro se fizera por si mesmo, eu
haveria de rir à vontade e não deixaria de interessar-me por um tão precioso
privilégio.
Fosse-me permitido o paralelo entre o livro da Natureza
e o meu, e creio que faria coisa assim como comparar uma boneca mecânica à
Vênus de Milus, viva, ou, então, as rodas do relógio apresentado a Carlos Magno
pelo califa Haron-al-Raschid, ao mecanismo do sistema universal.
Todavia, não sereis vós quem há de elevar meu trabalho
às alturas da Criação natural. Se a bonequinha mais insignificante e o
mecanismo mais tosco revelam a Voltaire a existência de um ou de vários
fabricantes, a que se reduz a negação dos que recusam identificar um arquiteto
na sublimada harmonia do edifício cósmico?
Assim é que, seja qual for o círculo arbitrário,
imaginado em torno da ação sensível do Criador e mediante o qual pretendamos
limitar a sua presença, a idéia de Deus nos escapa, sempre, pela tangente, com
singular sutileza. Essa propriedade particular da idéia do ser incriado manifesta-se
em cada conclusão do nosso arrazoado!
Disseram-nos que Darwin tinha sempre a seu lado um
teólogo anglicano incumbido de ajeitar as coisas e manter em perpétuo acordo a
consciência do naturalista eminente com as pretendidas conseqüências da sua
teoria da seleção natural. De resto, o tradutor feminino da obra teve o cuidado
de nos advertir que, “em vão, protesta o autor não ser o seu sistema em nada
contrário à idéia de divindade”. Pelo que nos toca, é com íntima satisfação que
aqui juntamos às nossas convicções pessoais as do autor da Origem das Espécies: “Não vejo em que possam as teorias expostas
nesta obra melindrar os sentimentos religiosos de quem quer que seja. Por
demonstrar quanto são inconscientes essas impressões, basta lembrar que a maior
das descobertas humanas – a da lei de gravitação – foi hostilizada pelo próprio
Leibnitz como subversiva da religião natural. Notável autor sacro escreveu-me,
em tempo, ter chegado gradativamente a convencer-se de que a criação divina das
formas simples, originais, capazes de por si evoluírem e transformarem-se em
formas úteis, era concepção mais justa e compatível com a majestade do Supremo
Ser, do que presumir a necessidade de um novo ato criador, a fim de encher os
vácuos causados pelo funcionamento das suas próprias leis. Autores eminentes
mostram-se inteiramente satisfeitos com a hipótese da criação independente de
cada espécie. A meu ver, o que conhecemos das leis impostas à matéria, pelo
Criador, está mais de acordo com a formação e extinção dos seres presentes e
passados por causas secundárias, semelhantes às que determinam o nascimento e a
morte dos indivíduos. Quando encaro todos os seres não como criações especiais,
mas como descendentes em linha direta de seres que viveram anteriormente aos
depósitos do sistema siluriano, eles me parecem enobrecidos.”
Mais adiante, acrescenta o mesmo naturalista:
“Que interesse nos desperta o espetáculo de uma praia
coberta de vegetação, pássaros cantando, insetos voejando, anelídeos ou larvas
rastejando no solo úmido, ao pensarmos que todas essas formas elaboradas com
tanto cuidado, paciência, habilidade e dependentes umas de outras por uma série
de relações complicadas, foram todas produzidas por leis de uma contínua atividade
em torno de nós! Essas leis, tomadas em seu mais lato sentido, enumeramo-las
aqui: – de crescimento e reprodução; de hereditariedade, quase implícita nas
precedentes; de variabilidade sob a ação direta ou indireta das condições
exteriores da vida, e do uso ou da falta de exercício dos órgãos; da
multiplicação das espécies em sentido geométrico, a produzir a concorrência
vital e a eleição natural e, daí, a divergência de caracteres e extinção das
formas específicas.
“É assim que, da guerra natural, da fome e da morte,
resulta o mais admirável dos efeitos que possamos conceber: – a formação lenta
dos seres superiores. No encarar a vida e suas potências animando
originariamente algumas ou uma única forma simples, ao influxo do Criador,
também há grandeza. E enquanto o planeta seguiu descrevendo os seus círculos
perpétuos, de acordo com as leis fixas da gravitação, formas inumeráveis, cada
vez mais belas e maravilhosas, se desenvolveram e se desenvolverão, mediante
uma evolução sem fim”
[ix].
Declarações interessantes que importa registrar, para
opô-las aos nossos materialistas.
Pretendem estes que a doutrina da geração espontânea,
sustentada pelo Sr. Pouchet e a da origem das espécies, amparada pelo Sr.
Darwin, destroem, ambas, a idéia de Deus, e eis que, nem um nem outro admite
essa acusação e protestam contra a ilusão dos nossos adversários. Nisto, pois,
como em tudo o mais, são eles logrados por uma falsa miragem. Consignemos,
assim, como novos dados, este duplo e valioso fato. Em primeiro lugar, os
materialistas não têm o direito de se apoiarem na geração espontânea para
concluir pela não existência de Deus:
1º - porque essa
geração não está provada, e
2º - porque, se o
estivera, não acarretaria uma tal conseqüência.
Em segundo lugar, não têm o direito de afeiçoar ao seu
ponto de vista o sistema do transformismo das espécies, já porque tal sistema
não está provado, e já porque ele não afeta a questão dominante das origens da
vida.
Se estivesse provado que os vegetais e animais
inferiores são formados por geração espontânea, no âmago da matéria inorgânica,
haveria grandes probabilidades para crer que assim sucedesse, e com mais forte
razão, com a origem das espécies. Os partidários das transformações específicas
chegaram mesmo a apoiar-se na doutrina das gerações espontâneas para explicar a
existência, ainda hoje, de inúmeras formas inferiores, apesar da tendência das
espécies primitivas para se aperfeiçoarem. Por isso, admitem que a Criação não
completou a sua tarefa e ainda hoje se verifica nesses extremos. Era a opinião
de Lamarck. Cumpre observar que o chefe do movimento atual não compartilha tais
idéias e nem mesmo acredita na geração espontânea. “A seleção natural – diz
Darwin – não afeta nenhuma lei necessária e universal de desenvolvimento e de
progresso. Ela cogita, apenas, de toda e qualquer variação que se apresenta,
quando vantajosa à espécie ou aos seus representantes. Tenho apenas necessidade
de aqui dizer – declara ele mais além – que a Ciência em seu estado atual não
admite, em geral, que seres vivos, ainda hoje, se elaborem no seio da matéria
inorgânica.”
Vale notar que não são os sábios, nem mesmo os experimentadores,
que proclamam as doutrinas por nós combatidas e sim pretensos filósofos, que,
apoderando-se dos estudos científicos daqueles, querem, a toda força, tirar
conclusões repudiadas pelos próprios cientistas. Temos o dever de desmascarar-lhes
o jogo e demonstrar com a confissão dos próprios experimentadores ilustres,
que, se o sistema materialista se obstina ingenuamente a exibi-los de público,
assentados no seu palco teatral, não passa isso de mero efeito fantasmagórico,
pura ilusão ótica.
Está neste caso um químico ilustre, o Sr. Fremy, que
pensou ter notado corpos indecisos na fronteira dos dois reinos (corpos a que
chamou semi-organizados) e foi por isso logo inculcado pelos doutrinaristas
como porta-bandeira do materialismo para a hipótese da geração espontânea. Pois
vejamos o que disse este químico no Instituto:
“Precisarei dizer que recuso, sem hesitação, a idéia de
geração espontânea, tomada no sentido de produção de um ser organizado, por
mais simples que seja, com elementos que não possuem a força vital. A síntese
química permite, sem dúvida, reproduzir grande número de princípios imediatos
de origem vegetal ou animal, mas a organização opõe, a meu ver, uma barreira intransponível
às reproduções sintéticas. Ao lado dos princípios imediatos, definidos, que a
síntese pode formar, há substâncias outras menos estáveis que as precedentes,
mas também muito mais complexas quanto à sua constituição e que podem ser
designadas sob o título genérico de corpos semi-organizados.
“Esses corpos apresentam-se em conexão com a organização,
com a formação dos tecidos, com a produção dos fermentos e a putrefação, quase
no mesmo estado da semente ressequida, que leva anos e anos sem apresentar
sinais de vegetação, para germinar logo que submetida às influências do ar, do
calor e da umidade.
“Eles podem, tal como a semente seca, manter-se em
estado de imobilidade orgânica durante muito tempo, mas também podem sair desse
estado à custa da própria substância, sob os elementos de organização, desde
que as circunstâncias favoreçam o desenvolvimento orgânico.”
Na atualidade não se pode, portanto, cientificamente,
depor a favor nem contra a geração espontânea. Essa indecisão forçada longe
está de esclarecer a questão da geração primitiva. O mistério permanece tão
profundo como ao tempo de Pitágoras. Existem seres vivos na Terra, eis o fato.
De onde vêm eles? Conhecemos astrólogos (ainda os há) que escreveram grandes
calhamaços para demonstrar que esses seres nos chegaram de outros planetas, na
asa de qualquer cometa aventuroso, ou grudados nalgum bojudo aerólito.
Conhecemos sonhadores que pretendem hajam os seres aflorado à superfície do
orbe terrestre pela fecundação de eflúvios planetários e estelares. Isso,
porém, é romantismo. De onde, pois, vêm os seres? Responder-nos-ão que sempre
existiram? Essa maneira de esquivar-se à dificuldade teria contra si a
agravante da falsidade, de vez que as camadas geológicas nos apresentam, em
fases regressivas, as épocas em que surgiram diferentes espécies. Se não existe
ser orgânico algum sem filiação, quem formou o primeiro casal de cada espécie?
A Bíblia responde que foi Deus. Perfeitamente, mas como? Por uma simples
maravilha verbal? Mas, antes de tudo: – Deus fala? – objetam os gracejadores,
lembrando-se de que o som não se propaga no vácuo... Súbito efeito da vontade
divina? Neste caso, de que forma? Os livros revelados nada têm de explícitos e
podemos interpretá-los a favor da geração espontânea (em que pese aos senhores
teólogos), tanto como em sentido contrário: “Deus diz: – Que a terra produza a
erva tenra, contendo a semente e árvores que dêem fruto, cada qual da sua
espécie, e que encerrem consigo a sua semente, a fim de proliferar sobre a
terra. E assim se fez. A terra, portanto, produziu a erva contendo a semente de
sua espécie, bem assim as árvores, com as suas sementes peculiares à espécie. E
Deus viu que isso era bom.
“E da noite da manhã surgiu o terceiro dia. Disse Deus,
então: Que as águas produzam animais vivos que flutuem nelas, e aves que voem
acima da terra e sob o firmamento do céu. E os abençoou, dizendo: Crescei e
multiplicai, povoai as águas do mar e que as aves se multipliquem sobre a
terra.
“E da noite e da manhã surgiu o quinto dia. Deus disse,
então: Que a terra produza animais vivos, cada qual na sua espécie, os
domésticos, os répteis e as feras bravias. E assim foi feito”
[x].
Aí temos o que muito se assemelha à geração espontânea.
De resto, os Santos Padres professaram essa doutrina. A de Humboldt achou muito
curioso que Santo Agostinho, encarando o povoamento das ilhas, após o dilúvio,
não se mostrasse muito longe de recorrer à hipótese de uma geração espontânea (Generatio aequivoca apontanea atst primaria).
“Se os anjos ou os caçadores do continente – diz esse Pai da Igreja – não
transportaram animais a essas ilhas afastadas, é força admitir que o solo os
tenha engendrado; mas, neste caso, pergunta-se: – por que encerrar na Arca
animais de toda espécie?” Dois séculos antes do bispo de Hipona, vamos encontrar
no compêndio de Trogue-Pompéia, já estabelecida a propósito da dissecação
primitiva do mundo antigo, do planalto asiático, analogia com a geração espontânea
ou, seja, uma conexidade semelhante à que se depara na teoria de Linneu, acerca
do paraíso terreal, com as investigações do século 18 sobre a Atlântida fabulosa.
Quanto ao mais, em que pese à ignidade dos seus
discursos, estes Mirabeaus da tribuna positivista encontram-se, fundamentalmente,
em ignorância e indecisão absolutas, no que concerne à origem da vida. Em vão
lançam sobre o mistério o véu dos talvez; em vão se entretêm a imaginar mil
metamorfoses.
Quando olhamos para o fundo do vaso, percebemos que o
caldo não é tão claro quanto o supõem. De tempos a tempos, sem maior alarde,
eles deixam perceber confissões que nos permitimos aqui glosar para edificação
do auditório. “Enigma insolúvel – diz B. Cotta – que não podemos deixar de
atribuir à potência imperscrutável de um Criador, eis o que se nos afigura
sempre a origem da matéria, bem como o nascimento dos seres orgânicos.” Eis uma
confissão digna de um espiritualista. Büchner, por outro lado, diz: – “É
preciso atribuir à geração espontânea um papel mais importante nos tempos
primitivos em relação aos atuais, visto não se poder negar que ela tenha
engendrado, então, organismos mais perfeitos do que hoje.” E acrescenta logo:
“Verdade é que nos faltam provas e mesmo conjeturas plausíveis dos pormenores
desses espécimes, o que estamos longe de negar.” E, voltando à idéia dominante,
declara imediatamente que – “seja qual for a nossa ignorância, devemos dizer
convictamente que a criação orgânica pode e deve ter ocorrido sem intervenção
de qualquer força exterior”.
Carl Vogt, a exemplo dos pré-citados, reconhece que as
forças físico-químicas conhecidas não bastam, só por si, para explicar a origem
dos organismos. Todo ser vivo, vegetal ou animal, tem sua origem essencial na
célula orgânica, ou ovo. Antes de tudo, havemos de admitir que essa origem essencial
foi criada, sem sabermos como. Só depois dessa premissa admitida é que começam
as demonstrações físico-químicas. “Se admitirmos que isso tivesse sucedido uma
única vez – diz o autor das Lições sobre
o Homem – mediante ação simultânea de fatores diversos, que não conhecemos,
é lícito concluir que houvesse podido formar-se uma célula orgânica a expensas
dos elementos químicos, e torna-se evidente que a mais ligeira modificação
devesse determinar imediata modificação no objeto produzido, isto é, na célula.
Mas, como não podemos admitir que, sobre toda a superfície terrestre, as mesmas
causas tenham atuado e ainda atuem nas mesmas condições e com a mesma energia,
na criação da célula primitiva; e que, por outro lado, a criação orgânica
haveria de estender-se por toda a Terra, conclui-se, necessariamente, que as
primitivas células geradoras de organismos deviam ter aptidões de
desenvolvimento diferentes.”
Wirchow não explica melhor a questão de origem. “Em
certa fase de desenvolvimento da Terra – diz – sobrevieram condições anormais,
sob as quais, entrando em novas combinações, os elementos recebiam o movimento
vital, donde as condições ordinárias se tornaram vitais.”
Quanto a Carlos Darwin, em vão temos rebuscado a sua
opinião, mesmo quanto à origem das espécies. Contenta-se ele com o explicar a
variabilidade possível dum certo número de tipos primitivos, e é uma nota no
mínimo singular, que, em obra tão volumosa e opulenta sobre a origem dos seres,
não se trate absolutamente dessa origem!
O problema é obscuro: a distância do nada a alguma coisa
é maior que de alguma coisa a tudo. Seja qual for o sistema a que se filiem
nossas crenças íntimas, espiritualistas ou materialistas, todos estamos
assomados pelo inexplicável mistério da vida. Porque não reconhecer com
franqueza a nossa absoluta ignorância neste particular? E, contudo, essa
ignorância deveria moderar um pouco o ardor negativista dos ateus, levando-os a
tratar o enigma com menos arrogância. É de convir que, quando nos assoberba uma
tal incerteza, ninguém pode cantar vitória. Quiséssemos voltar à questão e
fácil nos seria pôr todas as vantagens do nosso lado; poderíamos impor Deus aos
adversários, sem que eles pudessem subtrair-se ao seu domínio. Não demonstrando
a Ciência que as afinidades da matéria possam criar a vida, o papel do Criador,
aqui, fica íntegro como nos tempos de Adão e até dos pré-adamitas. E ainda que
o demonstrasse, a origem e o entretenimento da vida deixam ver claramente a
existência de uma força criadora, ou seja, por outras palavras, um Deus oculto.
Tal, porém, a força da nossa tática, que jamais
queremos abusar de uma posição privilegiada e preferimos combater sempre em
paridade de terreno e de armas. Contentamo-nos, assim, em insinuar apenas essa
superioridade aos adversários, para sua edificação momentânea e baixando, logo
a seguir, das alturas favoráveis ao triunfo, para voltar ao plano da
organização da vida, sem nos prevalecermos dos argumentos oferecidos pelo
problema dessa mesma vida. Ninguém dirá que, do ponto de vista singular da
organização, a existência do Ser inteligente não esteja soberanamente demonstrada.
Ainda mesmo que, em virtude de forças desconhecidas, pudesse a vida aflorar
espontaneamente em dadas circunstâncias materiais, e ainda que os seres
primários se tivessem formado de uma única célula primordial, gerada ao influxo
de um conjunto de circunstâncias fortuitas; ainda assim, repetimos, a
organização dos seres vivos seria uma prova irrefragável da soberania da força
coordenada. Seria, sempre, em virtude de uma que tais leis superiores que a
vida haveria de repontar e organizar-se, leis que não traduzem uma causa cega
ou louca, mas causa que deve, no mínimo, saber o que faz. Assim, também,
chegasse o homem a descobrir o nascimento espontâneo dos infusórios ou dos vermes
intestinais, nem por isso teria criado esses ínfimos seres e sim, apenas,
constatado que a Natureza opera à sua revelia, com poderes superiores aos seus
e mediante processos que, a despeito de sua inteligência, lhe teriam custado
séculos a descobrir (dado que lá chegasse).
Mas, finalmente, nem por isso a causa da razão divina
restaria mais esclarecida.
Dado o mistério que envolve ainda a origem da vida na
Terra, ninguém há com autoridade para declarar proscrita a ação do Criador.
Suponha-se que os primeiros seres nascessem no estado de animalidade rudimentar
e que as variedades sucessivas fossem a cepa das espécies hoje tão distintas;
ou que os primeiros pais de cada família houvessem despertado à voz de comando
de um grande mágico, e teremos que estas conjeturas não afetam mais a base da
Teologia natural, do que se admitíssemos que essas espécies aqui aportassem
trazidas de outros mundos nas asas de qualquer celeste mensageiro. Quanto à
formação ou transformação das espécies, não está por sua vez melhor conhecida
que a origem da vida, qual o confessa Ch. Lyell: “O que sabemos da Paleontologia
é nada em comparação com o que resta a aprender.”
Examinemos, agora, com este geólogo eminente
[xi],
quais os principais caracteres da teoria de Lanck e de Geoffroy Saint Hilaire
acerca da progressão e transformação das espécies. Os homens superficiais facilmente
imaginam que a Ciência está organizada com regras absolutas e nenhuma
dificuldade encontra em sua marcha ascendente. Nada menos exato. Nem mesmo as
grandes definições têm caráter absoluto. Os zoólogos, por exemplo, não se
entendem sobre os vocábulos espécie e raça. Sucedeu o que Lamarck predissera –
declara Lyell –: quanto mais se multiplicam as novas formas, menos nos
capacitamos de precisar o que seja uma variedade, ou uma espécie. De fato,
zoologistas e botânicos se vêem, não só mais embaraçados que nunca por definir
a espécie, como também para certificar se ela realmente existe na Natureza, ou
se não passa de simples abstração da inteligência humana. Pretendem uns que ela
seja constante dentro de certos limites de variabilidade, restritos e
intransponíveis; querem-na outros suscetível de modificações indefinidas e
ilimitadas. Desde os tempos de Linneu até o começo deste século, acreditava-se
definir suficientemente a espécie, dizendo:
“A espécie compõe-se de indivíduos semelhantes e reproduzindo-se
de seres a eles semelhantes”.
Lamarck, tendo reconhecido uma grande quantidade de
espécies fósseis, das quais umas eram idênticas a espécies vivas, enquanto que
outras não passavam de variedades, aditou o fator tempo à definição de espécie,
assim formulando: “Compõe-se a espécie de indivíduos inteiramente semelhantes
entre si e reproduzindo-se por seres semelhantes, desde que as condições de
vida não experimentem alterações capazes de lhes variar os hábitos, caracteres
e formas.” Finalmente, chega ele a concluir que, dos animais e plantas
contemporâneas, nem um exemplar existe da criação primordial, sendo todos
derivados de formas preexistentes, as quais, depois de haverem reproduzido, por
séculos sem conta, seres semelhantes, teriam, finalmente, experimentado
variações graduais e conseqüentes a mudanças de clima e do reino animal,
adaptando-se às novas circunstâncias. Alguns, entretanto, com o correr dos
tempos se afastaram tanto do tipo original, que mereciam ser agora considerados
espécie nova.
Em apoio dessa opinião, apresenta o contraste das
plantas agrestes com as cultivadas, dos animais selvagens com os domésticos, a
lembrar como e quanto se lhes modificam gradualmente a cor, a forma, a
estrutura, os caracteres fisiológicos e até os instintos, em presença de novos
inimigos e sob a influência de alimentação e regime de vida diferentes.
Lamarck sustenta, não somente que as espécies foram
constantemente submetidas a alterações, passando de um a outro período, mas,
também, que houvesse um progresso constante do mundo orgânico, desde os
primeiros aos hodiernos tempos, dos seres mais simples aos mais complexos, dos
mais baixos aos mais altos instintos, e, finalmente, da mais rudimentar inteligência
às maiores expressões do racionalismo humano. Para ele, o aperfeiçoamento teria
sido moroso e constante, a própria raça humana ter-se-ia, enfim, desgalhado do
grupo de mamíferos organicamente mais evoluídos. Um professor da Universidade
de Cambridge nos deu um resumo conciso e racional desta teoria
[xii].
“Encontramos nos antigos depósitos da crosta terrestre
– diz ele – o traço de uma progressão na organização das formas viventes,
sucessivas. Podemos notar, por exemplo, a ausência de mamíferos nos grupos mais
antigos e as suas raras aparições nos grupos secundários mais recentes. Animais
de sangue quente (em grande parte de gêneros desconhecidos) encontram-se bastante
espalhados em todas as velhas camadas terciárias e abundam (freqüentemente com
formas genéricas conhecidas) nas partes superiores da mesma série; e, por fim,
temos que a aparição do homem na superfície do solo é um fato recente.”
Esse desenvolvimento histórico, das formas e funções da
vida orgânica em períodos sucessivos, parece-nos indicial de uma evolução
gradativa da energia criadora, a manifestar-se por uma tendência progressiva
para o tipo mais elevado da organização animal.
Hugh Miller
[xiii]
também nota o fato extraordinário de ser a ordem adotada por Cuvier, no seu
Reino Animal – a que coloca as quatro classes de vertebrados segundo as suas
relações mútuas e categóricas – a mesma ordem cronológica que apresentavam. O
cérebro, cujo volume em relação ao da medula está na razão de dois para um, é o
do peixe, que foi o primeiro a aparecer. Sucedeu-lhe o que apresenta a relação
média de dois e meio por um, ou seja, o réptil. Em seguida, vem a relação de
três por um, que é a das aves; a média de quatro por um, peculiar aos mamíferos.
Por fim, o último, um cérebro cuja relação média é de vinte três por um, o
cérebro do homem, que raciocina e calcula.
O cérebro poderia não ser mais que uma florescência da
medula espinal. – Nas espécies inferiores (rãs por exemplo) a faculdade de
sentir pertence à medula, quanto ao cérebro. Sem dúvida, pode-se fazer sérias
objeções à doutrina da progressividade, mostrando algumas plantas e animais
menos perfeitos e surgidos posteriormente a espécies mais perfeitas, tais como
o embrião monocotiledôneo e os vegetais endógenos, depois do embrião monocotiledôneo
e dos vegetais exógenos (o das coníferas de caule glanduloso), bem como a
perfeição das mais antigas criptogâmicas, o movimento retrogressivo dos
répteis, o aparecimento da boa (jibóia) depois do iguanodonte, etc. Exemplos
não faltam, mas, persuadidos de que essa teoria não alcança a nossa tese da presença
de “Deus na Natureza”, e simpatizando com ela, em si mesma, nós a sustentaremos.
Consideramo-la com Lyell, não apenas útil mas, no estado atual da Ciência, como
hipótese indispensável, que, destinada embora a sofrer de futuro muitas e
grandes modificações, jamais poderá ser absolutamente aniquilada.
Sem dúvida, poderão julgar paradoxal que os mais firmes
sustentáculos da transmutação (Darwin e Hooker, por exemplo) guardem singular
reserva quanto à progressão, e que os maiores apologistas desta combatam, não
raro com veemência, a transmutação. Não poderão ser verdadeiras e conciliarem-se
essas duas teorias? Uma e outra nos representam em definitivo os tipos de
vertebrados a elevarem-se gradualmente no curso das idades, a partir do peixe,
a mais simples forma, para os mamíferos placentários, até chegar ao último elo
da série, aos mamíferos antropóides e, enfim, ao homem. Este último grau
afigura-se, portanto, nesta hipótese, uma parte integrante da mesma série
contínua de atos desenvolvidos, anel da mesma cadeia, coroamento da obra, por
isso que entra na mesma e única série das manifestações da potência criadora.
Passemos agora à teoria da origem das espécies por meio
da seleção natural.
Esta teoria nos apresenta grosso modo a ação da
Natureza, observada na criação e educação dos animais domésticos. Sabem os
criadores que é possível, ao fim de algumas gerações, obter uma nova classe de
rebanhos, de chifre curto ou sem chifre, desde que tenham escolhido reprodutores
de cornos menos desenvolvidos. Dizem, então, que é assim que opera a Natureza,
alterando no curso das eras as condições da vida, os traços geográficos de um
país, seu clima, a associação de animais e plantas e, por conseqüência, a
alimentação e os inimigos de uma espécie e o seu “modus vivendi”. E
assim se vão elegendo certas variedades mais bem adaptáveis à nova ordem de
coisas. Dessarte, podem as novas raças suplantar, muitas vezes, o tipo original
de sua ascendência.
Lamarck opinou que o pescoço longo da girafa procede de
uma longa série de esforços para colher o alimento de árvores cada vez mais
altas. Darwin e Wallace limitam-se a conjeturar que, na intercorrência de
alguma calamidade sobreviveram os espécimes de pescoço comprido, por lhes ser
possível pastarem em sítios inacessíveis aos outros.
Graças a ligeiras modificações, multiplicadas em curso
de milhares de gerações e à transmissão, por hereditariedade, das aquisições
novas, supõe-se uma divergência cada vez maior do tipo primitivo, até resultar
em uma nova espécie, ou em um novo gênero, se mais longo o tempo decorrido. O
moderno autor dessa explicação fisiológica da origem das espécies, Sr. Carlos
Darwin, expõe ele próprio
[xiv],
como se segue, os fatos gerais em que se baseia.
Na domesticidade, constata-se uma grande variabilidade,
que parece devida ao fato de ser o sistema reprodutor muitíssimo sensível às
mudanças de condições de vida, deixando de reproduzir exatamente a forma
matriz. A variabilidade das formas específicas é governada por um certo número
de leis muito complexas, tais como o uso ou a falta de exercício dos órgãos e a
ação direta das condições físicas da vida. Nossas espécies domésticas sofreram
modificações profundas, que se transmitiram por hereditariedade, durante período
assaz longos. Assim, também, enquanto se mantiverem as mesmas condições de vida
por períodos longos, poderemos admitir possa manter-se e transmitir-se uma
modificação já adquirida durante uma série quase infinita de graus
genealógicos. Por outro lado, está provado que a variabilidade, uma vez
começando a manifestar-se, não cessa totalmente de operar, visto como novas
variedades ainda se verificam, de tempos a tempos, entre as nossas espécies
domésticas mais antigas.
Não é, porém, o homem que produz a variabilidade. Ele
apenas expõe, e muitas vezes sem desígnios, os seres orgânicos a novas
condições de vida. Então, a Natureza, agindo sobre o organismo, produz
variações. Podemos escolher, então, essas variedades e as acumular na direção
que nos prouver. Assim, adaptamos animais ou plantas às nossas conveniências e
até aos nossos caprichos. Tal resultado pode ser obtido sistematicamente e
mesmo sem objetivo preconcebido, qualquer, bastando que, sem propósito de
alterar a raça, se conservem de preferência os indivíduos que, num dado tempo,
lhe são os mais úteis. Certo é que se podem transformar os caracteres de uma
espécie escolhendo-se de cada geração sucessiva as diferenças individuais; e
esse processo seletivo foi o agente principal de produção das raças domésticas,
mais distintas e mais úteis. Os princípios que atuaram com tanta eficácia, no
estado de domesticidade, podem, igualmente, operar no estado de natureza. A
conservação das raças e dos indivíduos favorecidos na luta perpetuamente
renovada com o meio ambiente, é fator poderosíssimo, e sempre ativo, de seleção
natural.
A concorrência vital é uma conseqüência necessária da
multiplicação, em razão geométrica mais ou menos elevada, de todos os seres
organizados. A rapidez dessa progressão está provada não só pelo cálculo, como
pela pronta multiplicação de muitos animais e plantas durante uma série de
estações particulares, ou quando se aclimatavam em novas regiões. O número dos
indivíduos que nascem excede sempre o dos que podem viver.
Um grão na balança pode determinar a variedade que deve
crescer e a que haja de diminuir. Como os indivíduos da mesma espécie são os
que mais concorrem entre si, em todos os sentidos, a luta torna-se para eles,
em regra, mais severa. Ela o é quase tanto entre as variedades da mesma
espécie, e grave, ainda, entre as espécies do mesmo gênero. Mas a luta também
pode existir, muitas vezes, entre seres muito afastados na escala da Natureza.
A mais leve vantagem adquirida por um indivíduo, em qualquer idade ou estação,
sobre o seu concorrente, ou uma melhor adaptação ao meio físico ambiente, o
mais insignificante aperfeiçoamento, enfim, fará pender a concha da balança.
Vantagens aparentemente medíocres podem acarretar essa
variação crescente. Entre animais de sexos distintos, diz o naturalista, haverá
guerra, as mais das vezes entre machos, para posse da fêmea. Os indivíduos mais
vigorosos e os que lutaram com melhor êxito contra as condições físicas ambientes,
hão de deixar uma progenitura mais numerosa. Mas, o seu êxito também dependerá,
muitas vezes, dos meios de defesa de que disponham, ou de sua mesma beleza e,
ainda neste caso, a mínima vantagem lhes granjeará a vitória.
Uma vez admitida a variabilidade, bem como a existência
de um poderoso agente sempre pronto a funcionar, chegaremos a concluir, facilmente,
que variações algo úteis ao indivíduo em suas relações vitais possam ser
conservadas, transmitidas e acumuladas? Se o homem pode, com paciência, escolher
as variações que lhe sejam mais úteis, porque deixaria a Natureza de escolher
as variações proveitosas aos seus produtos sujeitos a condições mutáveis de
existência? Que limites poderíamos atribuir a esse poder, quando ele opera
mediante períodos longos e escruta, rigorosamente, a estrutura, toda a
organização e os hábitos de cada criatura, por favorecer o prestável e rejeitar
o inútil? Parece não haver limite algum a esse poder, cujo efeito é a adaptação
lenta e admirável de toda a forma às mais complexas relações da vida.
Cada espécie, dada a progressão geométrica de
reprodução que lhe é peculiar, tende a aumentar desordenadamente e, multiplicando-se
os descendentes modificados de cada espécie, tanto mais quanto se diversificam,
nos hábitos e na estrutura, a lei de seleção natural apresenta, por sua vez,
uma tendência constante para conservar os descendentes mais divergentes, de
qualquer espécie.
Daí se segue que, durante o curso perseverante de
sucessivas modificações, as mais leves diferenças características das
variedades de uma espécie tendem a aumentar e atingir as grandes diferenças que
caracterizam espécies do mesmo gênero. Variedades novas e mais perfeitas suplantarão
e exterminarão inevitavelmente as mais antigas, as menos perfeitas e
intermediárias, e, daí, tornarem-se as espécies mais bem determinadas e mais
distintas.
Pode-se objetar que ao presente ninguém percebe tais
mudanças.
O teórico responde, porém, que, operando a seleção
natural somente por acúmulo de variações favoráveis, leves e sucessivas, não
pode produzir grandes alterações instantâneas. Ela opera a passos lentos e
curtos. Essa lei natural não existiria, sem dúvida, se cada espécie houvera
sido independentemente criada.
O testemunho geológico apóia a teoria da descendência
modificada. As espécies novas apareceram lentamente e por intervalos sucessivos
no cenário do mundo, e a soma das mudanças efetuadas em tempos iguais é muito
diferente nos diversos grupos. A extinção de espécies e de grupos inteiros de
espécies, que representou papel tão importante na história do mundo orgânico, é
uma série quase inevitável do princípio de seleção natural, pois as formas
antigas devem ser suplantadas por novas formas mais perfeitas. Nem as espécies
isoladas, nem os grupos de espécies podem reaparecer, uma vez interrompida a
cadeia das gerações regulares. A extensão gradual das formas dominantes e a
lenta modificação dos seus descendentes concorrem, depois de tantos intervalos
de tempo transcorrido, para fazer supor que as formas da vida houvessem mudado
simultaneamente no mundo inteiro. O caráter intermediário dos fósseis de cada
formação, comparados aos de formação inferiores e superiores, explica-se muito
simplesmente pela posição média que eles ocupam na cadeia geológica. O grande
fato constatado, de pertencerem todos os seres extintos ao mesmo sistema dos
atuais, integrando-se nos mesmos grupos, ou nos grupos intermediários, atesta o
parentesco e a descendência original.
O autor invoca também em seu apoio a importância única
dos caracteres embriológicos, observando que as afinidades reais dos seres
organizados são devidas à hereditariedade e comunidade de origem. O sistema
natural é uma árvore genealógica cujos lineamentos precisamos descobrir com o
auxílio dos caracteres mais permanentes, por leve que seja a sua importância
vital.
Não despreza ele, tampouco, a analogia. A disposição
dos ossos é análoga na mão do homem, na asa do morcego, na membrana natatória
da tartaruga e na perna do cavalo; o mesmo número de vértebras forma o pescoço
da girafa e do elefante. Estes e outros fatos semelhantes explicam-se por si
mesmos na teoria da descendência lenta e sucessivamente modificada. A
identidade de plano da asa e da perna do morcego, que, no entanto, servem a
fins tão diferentes; mandíbulas e patas de caranguejo, pétalas, estame e
pistilo de uma flor, explicam-se do mesmo modo pela modificação gradual de
órgãos outrora semelhantes nos primitivos antepassados de cada classe.
A falta de exercício, às vezes auxiliada pela seleção
natural, tende, amiúde, a reduzir as proporções de um órgão, que a mudança de
hábitos ou as condições de vida pouco a pouco tornaram inútil.
Dessarte, é fácil conceber a existência de órgãos
rudimentares.
Pode-se, enfim, perguntar até onde se estende a
doutrina da modificação das espécies.
Todos os membros de uma classe podem ser religados em
conjunto, pelos laços de afinidade e igualmente classificados, em virtude dos
mesmos princípios, por grupos subordinados a outros grupos. Darwin não pode
duvidar que a teoria da descendência não abranja todos os membros de uma
classe. Ele pensa, até, que todo o reino animal descende de quatro ou cinco
tipos primitivos, pelo menos, e o reino vegetal de um número igual ou mesmo
inferior.
A analogia – acrescenta –, levá-lo-ia um pouco mais
longe, isto é, à crença de que todas as plantas e animais descendem de um
protótipo único; mas, que a analogia pode ser um guia enganador. No mínimo, a
verdade é que todos os seres vivos têm muitos atributos comuns: composição
química, estrutura celular, leis de crescimento e faculdade de serem afetados
por influências nocivas.
Em todos os seres organizados, tanto quanto podemos
julgar pelos conhecimentos atuais, a vesícula germinativa é uma só. De sorte
que, cada indivíduo organizado parte de uma mesma origem.
Mesmo que consideremos as duas principais divisões do
mundo orgânico, ou sejam os reinos vegetal e animal, vemos que certas formas
inferiores apresentam caracteres intermédios assaz pronunciados, a ponto de
divergirem os naturalistas na sua respectiva classificação. O professor Cl.
Gray notou que “os esporos de muitas algas inferiores poderiam vangloriar-se de
ter possuído, de início, os caracteres da animalidade, passando depois a uma
vida vegetal equívoca”. Assim, partindo do princípio da seleção natural com
divergência de caracteres, torna-se crível que animais e plantas tenham de algum
modo derivado de uma forma intermediária. Importa admitir também que, quantos
seres lograram viver até hoje, podem descender de uma forma primordial e única.
Tal conseqüência porém, funda-se principalmente na analogia e pouco importa
seja ou não aceita. Outro tanto não se dá com as grandes classes, tais como
articulados, vertebrados, etc., pois aí é nas leis da Homologia e da Embriologia
que o autor vai encontrar provas muito especiais de uma descendência única
[xv].
Tal a teoria de Darwin, exposta por ele mesmo.
Se, enfim, a nossa legítima curiosidade se atreve a
aplicar essa teoria à nossa própria espécie, logo percebemos, num misto de
admiração e tristeza, que talvez descendamos dum exemplar de símio desaparecido.
Indubitavelmente, nossa dignidade sente-se ofendida diante da só possibilidade
de uma tal jerarquia; mas, se observarmos a Natureza, sem idéias preconcebidas,
não parece que façamos exceção à lei geral? Muitos de nós preferem descender de
um Adão degenerado, antes que de um macaco aperfeiçoado. E contudo, a Natureza
não nos consultou a respeito.
Pelo que nos toca, jamais dedicamos algumas horas ao
estudo da Embriologia, que não ficássemos assaz impressionados com as suas
abscônditas revelações. Jamais pudemos comparar embriões, em fases diferentes,
que não víssemos neles um vestígio rudimentar das fases correspondentes, pelas
quais a nossa humanidade haveria de ter passado em tempos anteriores.
Os vertebrados superiores revestem, sucessivamente,
como no estado de esboço, os principais caracteres das quatro grandes classes
do entroncamento, sem contudo passarem pelas formas dos outros troncos zoológicos.
Desde o começo de sua existência secreta, a célula germinativa manifesta um
sistema de desenvolvimento característico, sem tomar a forma do verme articulado,
do molusco, ou do radiário. Sem dúvida, esta sucessão representa uma imagem das
fases que, no curso das idades, a mesma classe de animais atravessou
sucessivamente, avançando na escala dos seres. Quem já deixou de surpreender-se
com a semelhança que o embrião humano oferece, sucessivamente, com o do peixe,
do réptil e da ave? A hora presente não seria, pois, o espelho de um passado
longínquo?
Não se ousa encarar de frente essa origem e, sem
embargo, a questão é assaz importante para merecer um esto de coragem.
Examinemos, pois, sob o seu aspecto geral, a posição do homem na sua natureza
terrena. Ao terminar este capítulo sobre a origem dos seres, esta perspectiva
continuará mostrando-nos um governo intelectual na marcha ascendente da
Criação.
A hipótese zoológica que encara o homem como descendente
de uma raça símia, antropóide, não é imoral nem antiespiritualística. Os que a
abraçaram nestes últimos tempos não o fizeram com o propósito de hostilidade ao
Cristianismo e por professarem doutrinas pagãs. Muito ao contrário, fizeram-no
a despeito de grandes prevenções, favoráveis à superioridade dos nossos
primitivos ancestrais, de quem deveriam considerar-se descendentes
abastardados. De resto, não compreendemos como sábios dignos desse nome possam
afagar o prazer pueril de fazer fosquinhas ao Cristianismo. Pensamos que a
Ciência deve ventilar os seus problemas sem se ocupar, de modo algum, com
artigos de fé.
Declaremos, antes de tudo, que a primeira característica
do homem é a sua inteligência. Portanto, o seu lugar filosófico não se enquadra
nas classificações da História Natural. Por sua perfectibilidade, que se poderá
atribuir à linguagem, pela inteligência racional, por suas faculdades espirituais,
em suma, o homem domina toda a Natureza terrestre. Seu espírito não incide nos
domínios do escalpelo. Seu valor não se afere pelo corpo, pelo esqueleto, pelo
fígado ou pelos rins, mas, pelo seu caráter intelectual. Descenda, pois, de uma
ou de outra fonte o nosso corpo, isso em nada nos afeta a alma. O mundo da
inteligência não é o mundo da matéria. Não somos menores por isso, nem menos
puros. Somente por estreiteza de espírito é que intermitimos na filosofia psicológica
imaginários temores, suscitados pela ciência zoológica. Se nosso berço
terrestre fosse a manjedoura de rústico estábulo, qual o de Jesus, nem por isso
nossa vida e nossa missão seriam menos santas e altanadas. A superioridade está
em nossas faculdades intelectuais.
“O corpo humano – diz o naturalista inglês Wallace –,
estava nu e desprotegido e foi o espírito que o provisionou de vestes, para
preservá-lo das intempéries. O homem não teria podido competir em agilidade com
o gamo, em força com o touro selvagem, e foi o espírito que lhe deu armas para
domar e utilizar esses animais. Ele era menos apto que outros animais para
alimentar-se de ervas e frutos, que a Natureza espontaneamente oferecia, e foi
essa faculdade admirável que lhe ensinou a governar e adequar a Natureza aos
seus fins, dela extraindo o alimento, quando e onde quer.
“Desde o instante em que utilizou a primeira pele na
indumentária, a primeira lança na caçada, a primeira semente no plantio, o
primeiro tronco na enxertia, uma grande revolução se operou na Natureza, revolução
que não tivera símile em qualquer fase da história do mundo, de vez que um ser
existia forrado às mutações do Universo; um ser, até certo ponto superior à Natureza,
pois possuía os meios de controlá-la, de lhe regular as atividades, e podendo
manter-se em harmonia com ela, não modificando a sua forma corporal, mas
aperfeiçoando o seu espírito.”
Nisso é que vemos, unicamente, a verdadeira grandeza e
dignidade do homem.
[xvi]
O lugar anatômico do homem ocupa graus superiores ao em
que se assenta o chimpanzé; a diferença entre os cérebros do negro e do primata
não é maior que a que separa o chimpanzé do saju e, sobretudo, dos lemurianos.
Depois do chimpanzé (trogloditas) vêm, na ordem decrescente, o orango
(pitécus), o gibon (hilobatos), o seninopíteco, o bugio, etc. Tal como escreveu
Geoffroy Saint-Hilaire em polêmica célebre com Cuvier, o homem é a primeira
família da ordem dos primatas, estabelecida por Linneu no século passado. Aqui,
cabe dizer que falamos do ponto de vista anatômico, unicamente. Qualquer outro
raciocínio invalida as classificações precedentes. Somos, porém, de opinião
que, quando se faz anatomia, é preciso fazer a anatomia.
No seguinte capítulo, teremos ensejo de prosseguir na
comparação do homem com o macaco, pelo estudo do cérebro.
O lugar geológico do homem recua a origem de nossa
espécie à época longínqua em que viviam as raças antediluvianas, hoje desaparecidas:
o veado de grandes chifres, o urso das cavernas, o rinoceronte ticórnis, o
elefante primigêneo, o mamute, a rena fóssil, etc. A mais antiga data conhecida
e atestante da presença do homem, é muito posterior à fauna e flora atuais.
Entretanto, verifica-se não existirem já, em nossos dias, umas tantas espécies
contemporâneas do homem. Os fósseis humanos encontrados nos arrecifes
coralíneos da Flórida, nas cavernas do Languedoc e da Bélgica, o esqueleto
exumado nos arredores de Dusseldorf, o crânio da caverna de Êngis, o de
Barreby, na Dinamarca, o homem fóssil de Puy e de Natchez, no Mississipi, os
restos humanos em Loes, indiciam nas variedades humanas primitivas um estado de
manifesta inferioridade, aproximando-as singularmente dos selvagens contemporâneos
e mesmo dos símios antropóides. Hoje ninguém contesta a existência do homem
anterior ao período glaciário e desde o começo da época quaternária.
O lugar arqueológico do homem concorda com os precedentes,
a favor da teoria progressiva. Quem duvidaria, hoje, da idade da pedra e do
bronze, pelas quais transitou a Humanidade antes que inventasse qualquer arte
ou indústria, cujos vestígios se encontram por toda a parte? Que ancianidade
poderíamos atribuir a esses períodos? A idade da pedra, na Dinamarca, coincidia
com o período da primeira vegetação, seja a dos pinheiros da Escócia, e, em
parte, com a segunda vegetação – a do carvalho. A idade do bronze desenrolou-se
durante a época do carvalho, pois foi nas camadas da turfa, onde abunda o carvalho,
que se encontraram espadas e escudos desse metal. Antes dele não havia faias. A
idade do ferro, menos pristina, corresponde à bétula. Quanto tempo duraria a
primeira idade? Sendo o bronze um composto de mais ou menos nove partes de
cobre e uma de estanho, o aparecimento dos primeiros utensílios denota uma
indústria não já elementar. A fusão dos minerais, a decoração lenta dos objetos
moldados, só poderiam ser conseguidas depois de longos tateamentos.
A que época devemos atribuir as cidades lacustres da
Suíça e as quarenta mil estacas de Wangen? As escavações nos têm revelado vinte
povoações no lago de Genebra, doze no de Neufchâtel, dez no de Bienne,
contemporâneas das idades da pedra e do bronze.
As da Irlanda (Crammoges) parecem provir da mesma
época. Essas povoações castoreanas deviam oferecer alguma semelhança com as da
Nova-Guiné, descritas por Dumont d’Urville. Os ossos encontrados por Lartet na
caverna de Aurignac são contemporâneos das hienas das cavernas e do rinoceronte
de narinas separadas.
Foi muito tempo depois que Tebas e Mênfis, capitais do
alto e baixo Egito, atingiram o seu grande esplendor e que as quarenta
pirâmides foram erigidas, tipificando uma civilização lentamente desenvolvida,
com uma forma especial de culto, de cerimônias esplêndidas, um singular estilo
de arquitetura e inscrições, barragem de rios, etc. Essas glórias, entretanto,
estavam desvanecidas muito tempo antes de Homero. “Foi preciso – diz Lyell –
para formação lenta e gradual de raças como a caucásica, a mongol ou a negra,
um lapso de tempo bem mais longo que o possível de ser abrangido por qualquer
sistema de cronologia popular.”
Ao problema cronológico do aparecimento do homem na
Terra, a Ciência nada responde por enquanto. Demais, se o homem não apareceu
espontaneamente, tal data não existe. Quanto aos vestígios de humanidade, ou do
homem em si mesmo, as opiniões (pois que se não trata, no caso, senão de
opiniões) são vagas quão variáveis. Um tijolo de carvão encontrado entre
Assouan e Cairo, a uma profundidade de 18 metros, contaria treze mil anos de
existência, admitindo-se um aumento de 15 centímetros por século, no depósito
de vasa, no delta do Nilo. A estimativa mais baixa do prazo necessário a formar
o delta do Mississipi é de cem mil anos.
O esqueleto humano encontrado perto de Nova-Orleans, a
5 metros de profundidade e sob uma camada de quatro florestas extintas, não
contaria menos de cinqüenta mil anos, na opinião do Dr. Dower (é uma cifra
exagerada, ao nosso ver). Agassiz calculou que a formação dos recifes de coral
da Flórida representa cento e trinta e cinco mil anos. Os sílex talhados e
recolhidos em diversas regiões do globo, particularmente no vale do Somme,
parece terem servido de armas a uma raça distanciada de cem séculos.
A Arqueologia concorda com os historiadores e poetas da
antigüidade, quais Heródoto, Diodoro, Éschylo Vitrúvio, Xenóphontes, Plínio, no
concernente ao primitivismo bárbaro da raça humana e à sua predileção pelas
cavernas. Mas, esse estado nós o podemos considerar fora dos domínios
históricos e a cronologia, que remonta à época já misteriosa das grandes
migrações arianas, a mais de cem séculos pretéritos, mergulha em noite
profunda, quando tenta sondar a nossa verdadeira origem.
Tudo quanto podemos afirmar é que a Humanidade é muito
mais antiga do que se supôs até agora, tendo começado por graus inferiores,
antes que se elevasse à noção de justiça e de moral. Se nos fora permitido remontar
a essas épocas, não poderíamos reconhecer a civilização da nossa era na caligem
das idades bárbaras, quando a inteligência em seus primórdios esforçava por desprender-se
das possantes constrições da matéria.
Preferimos confessar essa ancianidade e essa possível
origem da nossa espécie, sem escrúpulos para com o Espiritualismo e sem
acompanhar o mau exemplo dos que intrometem as crenças religiosas a propósito
de tudo, e mesmo sem propósito. Constatamos os fatos e a nossa ignorância, com
sincera franqueza, persuadidos de que não se podendo antepor duas verdades
entre si, a Ciência da Natureza não pode afetar a causa do Ser supremo. Como
diz Helmholtz, os homens costumam medir a grandeza e a sabedoria do Universo
pela duração e vantagem que daí lhes advêm; mas a história dos séculos transcorridos
nos mostra quão insignificante é o período do advento da existência humana, em
relação com a idade do planeta.
A Ciência não admite de bom grado a aparição miraculosa
do primeiro casal humano. Diz Carlos Lyell que “se a fonte original da espécie
humana tivesse sido realmente dotada de faculdades intelectuais superiores de
natureza perfectível, como a de sua posteridade; se a Ciência lhe tivesse sido
inspirada, o progresso atingido seria simplesmente muito mais expressivo. No
curso dos evos teria havido tempo de realizar conquistas inimagináveis e os
mais diferentes caracteres teriam sido impressos nos utensílios que ora
procuramos interpretar. Nos areais de Saint-Acheul, como na porção de leito do
Mediterrâneo aflorada nas costas da Sardenha, ao invés da mais grosseira cerâmica
e dos sílex de feitura tão defeituosa e incompleta, que mal indiciam ao observador
bisonho um esforço manual voluntário, encontraríamos esculturas superiores às
obras-primas de Fídias e Praxiteles, caminhos de ferro e telégrafos nos quais
os nossos engenheiros colheriam inestimáveis apontamentos; microscópios e
telescópios aperfeiçoados como os não conhecemos na Europa e inúmeras provas,
outras, de perfeição artística e científica, que o nosso século 19 ainda não
logrou testemunhar. Em vão esgotaríamos a imaginação para adivinhar a utilidade
de relíquias que tais. Talvez maquinaria de locomoção aérea ou destinada a
cálculos aritméticos, aparelhos desproporcionados às necessidades e quiçá à concepção
dos matemáticos vivos.”
Esta explicação física da origem das espécies não
arrebata o cetro das mãos do Governador do mundo. Já assinalamos acima a declaração
de Darwin a favor do sentimento religioso e parece-nos que, sobre as conseqüências
imediatas de qualquer doutrina, devemos reportar-nos antes à opinião do mestre
que à dos discípulos. Carlos Lyell emite os mesmos conceitos, citando a seguinte
declaração do geólogo Asa Grei, em que este evidencia claramente que a doutrina
da variação e da seleção natural não tende a destruir os alicerces da Teologia
natural e que a hipótese da derivação das espécies em nada contraria qualquer
dos sãos princípios da História Natural.
“Podemos imaginar que os acontecimentos e em geral as
operações da Natureza ocorrem, simplesmente, em virtude de forças comunicadas
desde o início e sem qualquer ulterior intervenção, ou podemos admitir tenha
havido, de tempos em tempos, e somente de tempos em tempos, uma intervenção da
Divindade. E podemos, enfim, supor ainda que todas as mudanças produzidas resultem
da ação metódica e constante, mas, infinitamente variada, da causa inteligente
e criadora.
“Os que pretendem, de um modo absoluto, que a origem de
um indivíduo, tanto quanto a de uma espécie ou de um gênero, não se possa
explicar senão por ato direto de uma causa criadora, podem, sem renunciar à
teoria favorita, admitir a teoria da transmutação, que lhe não é incompatível.
O conjunto e sucessão dos fenômenos naturais podem não ser mais do que a
aplicação material de um plano preconcebido; e se essa sucessão de fatos pode
explicar-se pela transmutação, a perpétua adaptação do mundo orgânico a
condições novas deixa, mais valioso que nunca, o argumento de um plano e,
conseguintemente, de um arquiteto.”
Parece-nos, com efeito, que o teimo nada de maior tem a
ganhar com esta hipótese do que com qualquer outra teoria natural.
Quanto à pecha de materialismo imputada a todas as
modalidades da teoria transformista, já vimos mais acima que a teoria da
gravitação e grande número de outras descobertas foram averbadas de subversivas
da Religião. Mas, onde iríamos parar se houvéssemos de ouvir os lamentos de
todos os teologistas sobressaltados?
Longe de possuir tendência materialista, esta hipótese
da intermissão na Terra, em épocas geológicas sucessivas, primeiramente da
vida, depois da sensação, do instinto e da inteligência dos mamíferos superiores
convizinhos da racionalidade e, finalmente, da razão perfectível do próprio
Homem, parece-nos, ao invés, o desdobramento de um plano grandioso,
apresentando-nos o quadro da predominância crescente do espírito sobre a
matéria.
Temos sido assaz prolixos no encarar as relações do homem
com os animais que o precederam, sem embargo da névoa de mistério que ainda as
envolve. É que acreditamos, com Pascal, essas comparações sempre têm algum
valor.
“É perigoso – dizia o autor de Pensamento – demonstrar ao homem o quanto ele se iguala aos animais,
sem lhe mostrar ao mesmo tempo a sua grandeza. Perigoso, também, mostrar-lhe a
sua grandeza, sem lhe fazer sentir sua baixeza. Mais perigoso, ainda, é
deixá-lo na ignorância de ambas.”
Ainda que o problema da antigüidade e origem da espécie
humana varie para o geólogo, para o arqueólogo e para o etnólogo, nem por isso
deixa de averiguar-se que a Humanidade procede de época muito mais remota do
que se pudera crer. Ainda que esse mesmo problema se definisse divergente para
a Zoologia ou para a Teologia, não é menos provável, tampouco, que os nossos
antepassados foram inferiores a nós e que o progresso se manifestou na
Humanidade tal como na escala de toda a Criação. Perguntamos, então, aos
espíritos de boa fé: – em que, a crença na ancianidade do homem, e mesmo na sua
origem simiesca, colide com a crença num absoluto? Que a vida tenha surgido na
Terra, que se tenha desenvolvido mediante leis orgânicas e que, do vegetal ao
homem, a criação antidiluviana não tenha formado senão uma unidade, em que pode
esta hipótese destruir a ação divina? Aqui, como no que precede, a matéria não
obedeceu às suas forças? E a vida dos seres não é uma força especial, regente
de átomos, diretora de todos os movimentos? Particularmente, na teoria da seleção
natural, não é a força vital que dirige a marcha do mundo? Aqui, como por toda
a parte, a matéria não é a escrava e a força a soberana?
Mesmo admitindo-se a mais alta influência dos meios na
transformação dos órgãos, essa transformação não será, sempre, o efeito da vida
e vida regida pela inteligência e dotada de uma espécie de obediência ativa à
lei intelectual do progresso?
Abordando a tese da apropriação dos órgãos às funções
que lhes incumbe executar, bem como da construção homogênea de cada espécie,
dos dentes aos pés, segundo o seu papel no cenário do mundo, entramos nos
domínios da destinação dos seres e das coisas. Nosso 4º livro objetivará este
vasto problema.
Assim, em resumo, vimos de demonstrar que, seja do
ponto de vista da circulação na matéria dos seres vivos, seja no da origem e da
perpetuidade da vida, esta se constitui de uma Força única e central para cada
ser, que dispõe a matéria organizável segundo um plano, do qual o indivíduo deve
ser a expressão física. Nesta segunda, como na primeira parte, temos refutado
todos os pontos dos nossos adversários. Eles não mais sustentam a sua hipótese
materialista e, com os seus exageros mais temerários, antes auxiliam a nossa
tese, pois conceituando a matéria capaz de tudo fazer, mal se precatam que
apenas substituem a idéia da força. Esperamos que esses inconseqüentes
negadores fiquem agora mais satisfeitos com este capítulo. E antes de passar ao
seguinte, pedimos-lhes notar, para edificação de sua vaidadezinha, que os
gregos e o próprio Arístoto lhes marchara à frente, visto que para eles as
radicais força e vida eram sinônimos. O filósofo de Stagira já houvera
sustentado que – “a alma é a causa eficiente e o princípio organizador do corpo
vivo”.
Não vale a pena fazer tão grande alarde de ciência,
para ficar abaixo dos Gregos.
Camille Flammarion
Deus na Natureza
Traduzido do Francês
Camille
Flammarion - Dieu dans la nature
(1866)
[i] Lucrèce
– De Natura Rerum, parte 5ª, Edição
Pongerville.
[ii] Resumo de A. Grandsagne, segundo os
trabalhos de Gassend acerca das descobertas de Herculanum.
[iii] A origem do homem e dos animais muito
preocupou os antepassados. Plutarco conta que alguns filósofos ensinavam que
tudo nascia do seio da terra umedecida, cuja superfície enxugada pelo calor
atmosférico formara uma crosta, que, rachando-se afinal, franqueava passagem
aos germes. Segundo Diodoro da Sicília e Cêlius Rhodiginus, assim pensavam os
egípcios. Esta velha nação pretendia ser a mais antiga do mundo e presumia
provar com os ratos e rãs, que diziam ver sair do solo da Tebaída quando o Nilo
baixava, e que à primeira vista se lhes afiguravam seres semi-organizados.
Ovídio assim descreve o fenômeno: – Logo que o Nilo de sete bocas abandona os
campos fertilizados com a inundação e volta a encerrar-se no seu leito normal,
o lodo depositado e dissecado pelo astro do dia produz numerosos animais, que o
lavrador vai encontrando em cada sulco. São seres incompletos, que começam o
desabrochar, privados, em sua maioria, de vários órgãos vitais e tendo uma
parte do corpo animada e outra formada de grosseira argila. Assim, dizia ele,
saíram os homens da própria terra. A opinião mais abaixo exposta, (Parte 4ª) de
provir dos peixes o gênero humano, é hipótese das mais antigas. Plutarco e
Eusébio nos transmitiram, a respeito, o pensamento de Anaximandro.
[iv] Ver particularmente
La Libre Pensée e o seu poema De Nature Rerum.
[v] Esta aventura merece ser oferecida aos
nossos adversários. Cyrano encontra um homenzinho que lhe fala mais ou menos
nestes termos:
“Reparai,
atento, neste solo que pisamos! Não há muito, era ele uma informe e confusa
massa, um caos de matéria indefinível, uma pasta negra e viscosa, da qual o Sol
se expulgara. Ora, depois que, pelo vigor dos seus raios, ele misturou e
condensou essas numerosas nuvens de átomos; depois, digo, que mediante uma
longa e poderosa cocção separou, nesta bola, os corpos mais díspares e reuniu
os mais símeis, a massa superaquecida transpirou de tal modo que desencadeou um
dilúvio de mais de quarenta dias.
“Da mistura
dessas torrentes humorais formou-se o mar, como o atesta o sal nele contido,
que deve ser um amálgama de suor, de vez que todo o suor é salgado. Retiradas
as águas, ficou ao solo uma borra graxenta e fecunda, na qual, incidindo os
raios solares, formou-se uma como ampola que, devido ao frio, deixou de
produzir os germes latentes. Ela houve de receber, contudo, uma nova coação,
que, retificando-a mediante uma mistura mais perfeita, engendrou a germinação.
Mas, o Sol, ainda dessa vez, lhe recusou o crescimento e foi-lhe preciso uma
terceira digestão.
“Uma vez
aquecida fortemente, de feição a vencer o frio ambiente, a ampola rebentou e
pariu um homem que retém no fígado – sede da alma vegetativa e região de
incidência da primeira cocção – a faculdade do crescimento. No coração, sede da
atividade e local da segunda cocção, a inteligência e o raciocínio.”
Assim
terminou – prossegue Cyrano – o seu discurso, mas, depois de uma confidência
sobre segredos mais íntimos, dos quais retenho uma parte e de outra não me
lembro, disse-me ele que ainda três semanas antes, num monte de terra
emprenhado pelo Sol, tinha ele mesmo nascido. “Veja este tumor.” E mostrou-me
sobre um montículo algo de intumescido e semelhante a uma pupila. “É um
nascituro, ou, por melhor dizer, uma matriz que engendra, há nove meses, um
conterrâneo, e eu aqui estou para lhe servir de parteira.”
Nisso,
calou-se, ao notar que o terreno em torno estremecia, o que o fez julgar que
era chegada a hora do parto.
[vi] Ela diz: O pastor vai então em seus grandes
rebanhos, quatro touros viris imolar prestamente; e outras tantas vitelas,
soberbas, que a relva, mansamente, no campo esmaltado, pastavam. E tão logo no
céu reponta a luz da aurora, ao inditoso Orfeu oferta o seu tributo e volta,
esperançoso, à floresta profunda. Prodígio! o sangue, então, com o seu calor,
fecunda Nos flancos animais, um numeroso enxame! Alados turbilhões a jorrar das
entranhas, Como nuvens se espalham a zumbir pelos ares, E no tronco vizinho em
cachos se penduram.
[vii] Curso da Faculdade de Ciências, V. A. Revista
dos Cursos Científicos, 5 de Dezembro de 1863.
[viii] Andaram mal em deslocar, assim, a questão: o
Sr. Pasteur foi a ponto de, em plena Sorbonne, trovejar as seguintes acusações:
Que triunfo para o Materialismo se ele pudesse protestar que se apóia sobre o
fato da Matéria, organizando-se por si mesma! A Matéria, que já em si e de si
contém todas as forças conhecidas! Ah! se pudéssemos juntar-lhe ainda essa
outra força chamada vida e a vida variável em suas manifestações, de
conformidade com as nossas experiências! Que pode haver de mais natural que a
deificação dessa matéria? Para que recorrer à idéia de uma criação primordial,
diante de cujo mistério é força inclinar-nos?”
O Sr.
Pouchet, alarmado com o libelo, replicou judicioso:
“Afivelar a
máscara da Religião, para vencer adversários, é fato insólito e inaudito,
quanto impróprio de cátedras científicas. Atribuir aos adversários opiniões que
eles sabidamente não possuem é indignidade.” Houve quem dissesse que era em
conseqüência de uma ilusão teológica desta espécie que a Academia recusava a
geração espontânea. Corre que há uns 60 anos Cuvier, secretário da Universidade,
interpelado por um tal se acreditava na geração espontânea, respondeu: – “O
imperador não quer”. Oh! libertas libertatum!
[ix] Da
Origem das Espécies. Últimas notas.
[xi] Charles
Lyell – The Antiquity of Man... A
ancianidade do homem provada pela Geologia e anotações sobre a origem das
espécies, por variação.
[xii] Professor
Sedgwick’s – Discurse on the Studies of
the University of Cambridge, 1850.
[xiii] Edinburgh
– Footprints of the Creator, 1849.
[xiv] On the Origine of Species by the mean of
natural selection.
[xv] O tradutor francês de Darwin adverte, a
propósito da unidade dos centros de criação específica, que seria extremamente
rigorista a acepção do termo “paternidade” única, por um só indivíduo, ou casal
único.
“Mais
incrível, ainda, supor que toda a forma primordial, o antepassado comum e
arquétipo absoluto da criação viva não tivesse sido representado senão por um
único indivíduo. De onde teria provindo esse indivíduo único? Seria preciso,
depois de eliminar tantos milagres, deixar subsistisse um? Se um tal indivíduo
existiu, ele só podia ser o planeta. Nada impede admitir tenha tido esta matriz
universal, em uma de suas fases existenciais, o poder de elaborar a vida. Mas,
um só ponto da sua superfície teria auferido o privilégio de produzir germes?
Ou deveremos crer lhe houvessem estes desabrochado do seio? Todas as analogias
levam antes a supor a Terra fecunda em toda a sua superfície; que o seu invólucro
aquoso fosse o primeiro laboratório e que inumerável fosse a produção dos
germes, sem dúvida semelhantes. Células verminativas, nadando esparsas, em
cachos ou em filamentos, nas águas, uma cristalização orgânica e nada mais.
Evidentemente, um tipo, uma forma, uma espécie única, mas não um só indivíduo,
do qual se formassem sucessivamente todos os organismos.
Se se admitir
a simplicidade desses germes primitivos, reconhece-se que as possibilidades de
desenvolvimento deveriam apresentar-se entre um número considerável de seres.
Em virtude do grande número de esboços orgânicos, o aperfeiçoamento sucessivo
da organização seguindo um certo número de séries típicas, paralelas ou mais ou
menos divergentes, nada há de surpreendente no princípio vital repousando em
estado latente em cada germe.
As leis
gerais da vida seriam em primeiro lugar fixadas, nesta hipótese discutível,
segundo as condições físicas peculiares ao nosso planeta, ao mesmo passo que
começasse a divergência dos tipos necessariamente adaptados à diversidade pouco
profunda dessas condições. À medida que as raças se houvessem fixado e
aperfeiçoado, teriam diminuído de número, ao mesmo tempo em que cada qual visse
diminuir seus representantes. A posteridade crescente de um certo número de
cepas primitivas deveria, sucessivamente, tomar o lugar das raças que sucumbiam
na luta universal, por efeito de inferioridade orgânica relativa.
[xvi] Grandes homens contemporâneos não compartilham
destas idéias e consideram a Humanidade como uma raça degenerada. Permitimo-nos
citar aqui como exemplos, que o Sr. Cousin, com quem conversamos ao iniciar
esta obra (1865), sustentava essa opinião e o Sr. de Lamartine, a quem propuséramos
a mesma questão quando corrigíamos estas provas (1867), encara as raças arianas
como tendo sido superiores à sociedade atual. O problema ainda está longe de
solução, mas a verdade é que nem por isso a característica do homem deixa de
consistir na sua inteligência progressiva.