SUMÁRIO – Papel da Ciência na sociedade
moderna. – Sua potência e grandeza. – Seus limites e tendências a
ultrapassá-los. – As ciências não podem dar nenhuma definição de Deus. –
Processo geral do ateísmo contemporâneo. – Objeções à existência divina,
inferidas da imutabilidade das leis e da íntima união entre a força e a matéria.
– Ilusão dos que afirmam ou negam. – Erros de raciocínio. – A questão geral
resume-se em estabelecer as relações recíprocas da força e da substância.
O século que vivemos está desde já inscrito com caracteres
indeléveis nas páginas da História. A partir dos mais remotos tempos, das
velhas civilizações, nenhuma época viu, qual a nossa, esse magnífico despertar
do espírito humano, para simultaneamente afirmar os seus direitos e a sua
força. O mundo já não é o vale de lágrimas medieval, onde a alma vinha expiar a
falta do primitivo pai e, confundindo-se no isolamento e na oração, acreditava
conquistar um lugar no paraíso, ciliciando o corpo e cobrindo-se de cinzas.
Os frutos da inteligência já não atestam as longas,
abstrusas e infindáveis discussões de estéril metafísica, construídas de
palitos e escoradas em sutilezas escolásticas, a que se entregaram cegamente
poderosos gênios, consagrando-lhes uma preciosa vida de estudos e despercebidos
de assim perderem não apenas o seu tempo, mas o de algumas gerações.
Lá, onde em murados claustros se concentravam monges e
oratórios, ouve-se agora o ruído das máquinas, o ranger das engrenagens e o
silvo do vapor das caldeiras combustas.
Se as instituições monásticas tiveram o seu papel no
período das invasões bárbaras, nem por isso deixou de soar a sua hora extrema,
como sucede a todas as coisas perecíveis: o trabalho fecundo do operário e do
agricultor substitui a decadência senil pela juvenilidade operosa e fecunda.
No anfiteatro das Sorbonnes, onde se discutiam exaustivamente
os seis dias da Criação, as línguas de fogo da Pentecoste, o milagre de Josué,
a passagem do Mar Vermelho, a forma da graça atual, a consubstancialidade, as
indulgências parciais ou plenárias, etc., etc., e mil assuntos outros difíceis
de profundar, vemos hoje instalar-se o laboratório químico, no ambiente do qual
a Matéria se faz docilmente pesar e mensurar; a mesa do anatomista, sobre cujo
mármore se desvendam o mecanismo orgânico e as funções vitais; o microscópio do
botânico, que surpreende os primeiros, oscilantes passos da esfinge da vida; o
telescópio do astrônomo, que deixa entrever, para além dos céus transparentes,
o movimento majestoso dos sóis gigantescos, regulados pelas mesmas leis que
acionam a queda de um fruto; a cátedra de ensinamento experimental, à volta da
qual as inteligências populares vêm grupar suas filas atentas.
O próprio globo terrestre transformou-se. Circunavegaram-no,
mediram-no, e já não haverá Carlos Magnos que pretendam enfeixá-lo na mão. O
compasso do geômetra destituiu o cetro imperial.
Oceanos e mares, em todas as latitudes, fendem-se ao
impulso das quilhas levadas por velas pandas ou pela rotação das hélices
potentes e trepidantes.
Também – dragão flamívomo – a locomotiva percorre célere
os continentes e, graças ao telégrafo, podemos falar de um a outro hemisfério.
O vapor deu vida nova e inesperada a inúmeros motores; a eletricidade nos
permite auscultar, num momento e de conjunto, as pulsações da Humanidade
inteira.
Certo, a Humanidade jamais conheceu fase como esta;
jamais se repletou em seu seio, de tanta vida e tanta força; jamais seu coração
enviou, com tamanha pujança, a luz e o calor às mais longínquas artérias. Nem
nunca o seu olhar se iluminou de um tal clarão. Por mais vastos que se deparem
os progressos ainda conquistáveis, nossos descendentes serão sempre forçados a
reconhecer que a Ciência deve à nossa época o estribo do seu Pégaso e que,
embora engrandecendo-se e vendo o Sol ascender ao zênite, brilhante não lhes
fora o dia se o não precedera a nossa aurora.
Mas, o que à Ciência outorga força e poder, convém
sabê-lo, é ter por base de estudo elementos determinados, que não abstrações e
fantasmas. Assim é que, na Química, ela investe com o volume e peso dos corpos,
examina-lhes as combinações, determina-lhes as relações; na Física,
investiga-lhes as propriedades, observa-lhes as relações e as leis que as
regem; na Botânica, aborda o estudo das primeiras condições da vida; na Zoologia,
acompanha as formas existenciais e registra as funções orgânicas peculiares, os
princípios da circulação da matéria nos seres vivos, sua manutenção e metamorfoses;
na Antropologia, constata as leis fisiológicas em atividade no organismo humano
e determina o papel dos diversos aparelhos que o compõem; na Astronomia,
inscreve o movimento dos corpos celestes e daí deduz a noção de leis diretivas
universais; e na Matemática, finalmente, formula essas leis e reconduz à
unidade as relações numéricas das coisas.
Essa exata determinação de objetivo dos seus estudos é
que dá valor e autoridade à Ciência. Aí temos como e porque a Ciência se
engrandece. Mas, esses títulos também lhe acarretam um imperioso dever. Se,
deslembrada dessa condição de poderio ela se desvia desses objetivos fundamentais
para divagar no vácuo imaginário, perde simultaneamente o seu caráter e a sua
razão de ser.
E, desde então, os argumentos que pretende impor, nesses
domínios exorbitantes do seu alcance e finalidades, deixam de ter valor
científico, e mais ainda do que isso, porque ela se desqualifica e já não pode
reivindicar o nome de ciência. Torna-se, por assim dizer, em soberana que acaba
de abdicar e não é mais a ela que se ouve, mas aos sábios que peroram, o que
nem sempre é a mesma coisa. E estes sábios, seja qual for o seu valor, já não
serão mais intérpretes da Ciência, uma vez operando fora da sua esfera.
Ora, esta é, precisamente, a situação dos defensores do
Materialismo contemporâneo, aplicando a Astronomia, a Química, a Física, a
Fisiologia, a problemas que elas não podem resolver. E note-se que tais sábios
não só constrangem essas ciências a responderem a problemas que lhes escapam à
alçada, como ainda as torturam, quais pobres servas, para que confessem a seu
mau grado, e falsamente, proposições de que jamais cogitaram. São, assim, inquisidores
do fato, e não da palavra. Mas, dessarte, não é a Ciência, é um simulacro de
ciência que manejam.
Nas seguintes controvérsias, demonstraremos que esses
cientistas se encontram absolutamente fora da Ciência, que se enganam e nos
enganam, que os seus raciocínios, deduções e consequências são ilegítimos e que
no seu louco amor por essa virginal ciência eles a comprometem simplesmente e
chegariam a lhe alienar de todo a estima pública, se não houvesse o cuidado de
mostrar que, ao invés da realidade, eles não possuem dela mais que uma ilusória
sombra.
A circunstância mais penosa e a razão predominante que
nos impelem a protestar contra as explorações de um falso rótulo radicam-se ao
fato de estarmos vivendo um tempo em que se sente, ou pelo menos se pressente,
universalmente, o papel e a finalidade da Ciência. Compreende-se que fora dela
é que não há salvação e que a Humanidade, tanto tempo balouçada no oceano do
ignorantismo, só tem um porto a proejar – o da terra firme do saber. Também por
isso, o espírito público se volta, convicto e esperançoso, para a Ciência.
Tantas provas de seu poder e riqueza tem ele recebido, de um século a esta
parte, que se predispôs a acatar-lhe, com simpatia e reconhecimento, todos os
ensinos e teorias. Mas, nisso está, precisamente uma armadilha para o
Espiritualismo. É que um certo número de cultores da Ciência, que a representam
ou que se fazem dela intérpretes, ensinam falsas e funestas doutrinas.
Os espíritos sôfregos e despercebidos, que procuram em
seus livros os conhecimentos de que necessitam, absorvem neles um tóxico
pernicioso e suscetível de lhes destruir no âmago uma parte dos benefícios do
saber.
Eis porque se impõe sobrestar um tão deplorável arrastamento,
aliás, tendente a universalizar-se.
Eis porque se torna absolutamente indispensável discutir
essas doutrinas e demonstrar que longe estão elas de entrosar na Ciência, com
tanto rigor e facilidade, quanto pregoam, mas, ao invés, que são o produto
grosseiro de pensamentos sistemáticos, que, perpetuamente voltados sobre si
mesmos, têm a ilusão de se crerem fecundados pela Ciência, embora do radioso
sol que ela simboliza não hajam recebido mais que um tênue raio desviado de sua
direção natural.
Há umas tantas questões profundas que, no curso da vida
humana, nas horas de silêncio e solitude, se nos apresentam como outros tantos
pontos de interrogação, inquietantes e misteriosos.
Tais os problemas da existência da alma, do seu futuro
destino, da existência de Deus e das suas relações com a Criação.
Vastos e imponentes problemas, estes nos envolvem e
dominam em sua imensidade, pois sentimos que nos aguardam, e na ignorância
deles não poderemos razoavelmente alienar um tal ou qual temor do desconhecido.
Assim é que, já o dizia Pascal, um desses problemas – o
da mortalidade da alma – é tão importante, que é preciso haver perdido toda a
consciência para ficar indiferente ao conhecimento de si mesmo. O mesmo se
poderá dizer quanto à existência de Deus. Quando meditamos essas verdades, ou
apenas na possibilidade da sua existência, elas nos aparecem sob aspecto tão
grandioso que a nós mesmos interrogamos como podem criaturas inteligentes,
seres racionais, pensantes, entregar-se uma vida inteira a interesses
transitórios, sem se abstraírem uma que outra vez da sua apatia para atender a
essas interrogativas preciosas.
Se é verdade, qual o temos observado, que há neste mundo
homens absolutamente indiferentes, que jamais sentiram a magnitude desses
problemas, menos não é que eles nos inspiram verdadeira piedade. Aqueles que,
no entanto, mais agravam a bruteza da indiferença e, de caso pensado, desdenham
alçar-se ao nível destes assuntos importantes, preferindo-lhes os doces gozos
da vida material, esses, – declaramo-lo em alto e bom som – nós os deixamos sem
pesar, entregues à sua inércia, para considerá-los fora da esfera intelectual.
O problema da existência de Deus é primacial a todos. Nem
por outro motivo é que, contra ele, se assestam as principais, as mais
possantes baterias do Materialismo que nos propomos combater. Pretende-se provar,
com a ciência positiva, a inexistência de Deus e que uma tal hipótese não passa
de aberração da inteligência humana. Um grande número de homens sérios,
convencidos do valor desses pretensos raciocínios científicos, enfileiraram-se
ao redor desses inovadores recidivos, engrossando desmesuradamente as hostes
materialistas, primeiro na Alemanha e depois na França, na Inglaterra, na Suíça
e na própria Itália.
Ora, nós não tememos dizer que, mestres ou discípulos,
quantos se apoiam em testemunhos da ciência experimental para concluir que Deus
não existe, cometem a mais grave inconsequência.
Acusando-os dessa erronia, haveremos de justificar-nos,
ainda que os incriminados possam, sob outro prisma, ser considerados homens
eminentes e respeitáveis. De resto, é mesmo em nome da ciência experimental que
vimos combatê-los.
Deixamos de lado toda a ciência especulativa e
colocamo-nos, exclusivamente, no mesmo terreno dos adversários.
Não pensamos com Demócrito que, vazar os olhos, para evitar
as seduções do mundo exterior, seja o melhor meio de cultivar frutuosamente a
Filosofia e, muito pelo contrário, permanecemos firmes na esfera da observação
e da experiência.
Nessa posição, declaramos que, por um lado, não se prende
imediatamente à existência de Deus, mas, por outro lado, desde que venhamos
aplicar ao problema os atuais conhecimentos científicos, longe de conduzirem à
negativa, afirmam eles a inteligência e sabedoria das leis da Natureza.
A elevação para Deus, mediante o estudo científico da
Natureza, nos mantém em situação equidistante dos dois extremos, isto é: – dos
que negam e dos que se permitem definir, simploriamente, a causa suprema como
se houveram sido admitidos ao seu concelho. Assim, com as mesmas armas,
combatemos duas potências opostas: – o materialismo e a ilusão religiosa.
Pensamos que é igualmente falso e perigoso crer num Deus
infantil, quanto negar uma causa primária.
Em vão se nos objetará não podermos afirmar a existência
de uma entidade que não conhecemos. Precatemo-nos de presunções que tais.
Certo, não conhecemos Deus, mas, sem embargo, sabemos que existe. Também não
conhecemos a luz e sabemos que ela irradia das alturas celestes. Tampouco, conhecemos
a vida e sabemos que ela se desdobra em esplendores na superfície da Terra.
“Longe estou de crer – dizia Goethe a Eckermann – que
tenha uma exata noção do Ser supremo. Minhas opiniões, faladas ou escritas,
resumem-se nisto: Deus é incompreensível e o homem não tem a seu respeito mais
que uma noção vaga e aproximativa. De resto, toda a Natureza, e nós com ela,
somos de tal modo penetrados pela Divindade que dela nos sustentamos, nela
vivemos, respiramos, existimos. Sofremos ou gozamos em conformidade de leis
eternas, perante as quais representamos um papel ativo e passivo ao mesmo
tempo, quer o reconheçamos, quer não. A criança regala-se com o bolo, sem
cogitar de quem o fez, o pássaro belisca a cereja, sem imaginar como a mesma se
formou. Que sabemos de Deus? E que significa, em suma, essa íntima intuição que
temos de um Ser supremo? Ainda mesmo que, a exemplo dos turcos, eu lhe desse
cem nomes, ficaria infinitamente abaixo da verdade, tantos são os seus
inumeráveis atributos... Como o Ente supremo, a que chamamos Deus, manifesta-se
não só no homem como no âmbito de uma Natureza rica e potente quanto nos
grandes acontecimentos mundiais, a ideia que dele se faz é, evidentemente,
exígua.”
A ideia que os antepassados formavam de Deus, em todas as
épocas, sempre esteve de acordo com o grau de ciência sucessivamente adquirido
pela Humanidade. Tal como o saber humano, essa ideia é variável e deve, necessariamente,
progredir, pois, seja como for, cada uma das noções que constituem o patrimônio
da inteligência deve seguir a par com o progresso geral, sob pena de ficar
distanciada.
No conjunto de um sistema em movimento, toda a peça que
se obstinasse em estacionar recuaria realmente. Em nossos dias, já não é admissível
dizer-se, dogmaticamente, que tal ou tal noção é perfeita e deve guardar o
ataque da infalibilidade: ou se faz, ou se não faz parte da marcha progressiva
do espírito. No primeiro caso, importa acompanhá-lo integralmente e, no
segundo, há que confessar-se em atraso. Eis o que precisa ficar bem claro.
Digamo-lo francamente: em ciência experimental, Deus não
pode ser admitido a priori e muito menos a destinação, ou finalidade, que presumimos
apreender nas obras da Natureza.
As doutrinas apriorísticas caducaram, já se não admitem.
Confessemo-nos com os materialistas e perguntemos se os
que tomaram Deus e não a Natureza como ponto de partida explicaram, algum dia,
as propriedades da matéria ou as leis que governam o mundo. Puderam eles
dizer-nos da mobilidade ou imobilidade do Sol? – se a Terra era plana ou
esférica? – quais os desígnios de Deus, etc.? Absolutamente. Mesmo porque,
seria impossível. Partir de Deus para investigação e exame da Criação é
processo baldo de nexo e de sentido. Esse precário método para estudar a
Natureza e inferir consequências filosóficas, no pressuposto de poder, com uma
simples teoria, construir o Universo e fixar as verdades naturais,
desacreditou-se, felizmente, há muito tempo.
Mas, pelo fato de havermos substituído a hipótese
precedente pelos resultados do exame a posteriori, segue-se que devamos fechar
os olhos e negar a inteligência, a sabedoria, a harmonia reveladas pela própria
observação? Haverá motivo para repudiar toda e qualquer conclusão filosófica e
ficar a meio caminho, temerosos de atingir o fim? E deveremos, por isso,
rendermo-nos aos cépticos contemporâneos que, sem embargo de evidência,
rejeitam toda luz e toda conclusão?
Pensamos que não. Muito ao contrário, pelo método que
preconizam, constatamos as suas recusas e inconsequências.
Antes de qualquer controvérsia, importa determinar as
posições recíprocas, por evitar mal-entendidos, esperando nós que as declarações
precedentes bastem para esclarecer categoricamente a nossa atitude.
Combateremos francamente o materialismo, não com as armas
da fé religiosa, não com os argumentos da fraseologia escolástica, não com as
autoridades tradicionais, mas pelos raciocínios que a contemplação científica
do Universo inspira e fecunda.
Examinemos preliminarmente, num lanço-de-olhos, de
conjunto, o processo geral do ateísmo hodierno.
Esse processo assemelha-se sensivelmente ao de que se
utilizou o barão de Holbach, nos fins do século passado, para fundamentar o seu
famoso Sistema da Natureza, obra de um materialismo vulgar, para a qual achava
Goethe não haver suficiente desprezo e costumava averbar de – “legítima
quintessência da senectude, inepta e insulsa”. O novo processo, mais
exclusivamente científico, todavia, consiste principalmente em declarar que as
forças que dirigem, não dirigem o mundo, isto é: que em vez de governarem a
matéria, antes se lhe escravizam e que é a matéria (inerte, cega, desprovida de
inteligência) que, movendo-se de si mesma, se governa mediante leis, cujo
alcance ela não pode, todavia, apreciar.
Pretendem os nossos materialistas atuais que a matéria
existe de toda a eternidade, revestida de umas tantas propriedades, de certos
atributos e que essas propriedades qualificativas da matéria bastam para
explicar a existência, estado e conservação do mundo.
Dessarte, substituem um Deus-espírito por um
Deus-matéria.
Ensinam que a matéria governa o mundo e que as forças
químicas, físicas, mecânicas, não passam de qualidades.
Para refutar um tal sistema, há que tomar, por conseguinte,
o partido contrário e demonstrar um Deus-espírito, antes que um Deus-matéria,
incompreensível, a reger a matéria; estabelecer que a substância é escrava
antes que proprietária da força; provar que a direção do mundo não cabe às
moléculas cegas que o constituem, mas a forças sob cuja ação transparecem as
leis supremas.
Fundamentalmente, o problema se resume nesta demonstração
e nós esperamos que ela ressaltará brilhante dos estudos objetivados neste
nosso trabalho.
E de vez que os adversários se apoiam em legítimos fatos
científicos para estabelecer o erro, cumpre-nos contrabatê-los com esses mesmos
fatos.
A bem dizer, ainda que se demonstrasse que o Universo não
é mais que um mecanismo material, cujas forças não se conjugam a um motor, mas
remontam a matéria, subindo e descendo incessantes num sistema de motilidade
perpétua, nem por isso a causa divina estaria perdida.
Contudo, desde os primórdios da Filosofia, a partir de
Heráclito e Demócrito, o sistema mecânico do mundo constituiu-se o refúgio e o
argumento dos ateus, enquanto o sistema dinâmico albergava e escorava os
espiritualistas.
Nós, por princípio, filiamo-nos à concepção dinâmica e
combatemos o sistema incompleto de um mecanismo sem construtor. Muito judiciosamente,
diz Caro:[i]
– por um lado o mecanismo tudo explica, mediante combinações e agrupamentos de
átomos eternos. Todas as variedades de fenômenos, o nascimento, a vida, a
morte, mais não são que o resultado mecânico de composições e decomposições, a
manifestação de sistemas atômicos que se reúnem e se separam.
O dinamismo, ao contrário, subordina todos os fenômenos e
todos os seres à ideia de força.
O mundo é a expressão, seja de forças opostas e harmoniosas
entre si, seja de uma força única, cuja metamorfose perpétua engendra a universalidade
dos seres.
Pode-se constatar que, não obstante ser a explicação
secundária das coisas, até certo ponto, independente da primária, ou
metafísica, a História atesta o fato constante de uma afinidade natural: de um
lado, entre a explicação mecânica e a hipótese supressiva de Deus; e de outro
lado, entre a teoria dinâmica e a hipótese que diviniza o mundo em seu princípio.
A teoria mecânica, estabelecendo a pura necessidade matemática
nas ações e reações que formam a vida do mundo, é incompleta, por isso que
suprime a causa e dissipa em névoa o mundo moral. A teoria de uma força única,
universal, sempre atual e formando a variedade dos seres pelas suas metamorfoses,
ajusta essa misteriosa universalidade a uma força primordial.
Poder-se-ia, portanto, acusar simplesmente o processo
geral dos nossos contraditores de um erro gramatical, atribuindo à matéria um
poder só cabível à força e pretendendo não passar está de mero adjetivo
qualificativo, quando lhe cabem os mesmos direitos daquela, na classe dos
substantivos.
Examinemos agora, nesta mesma visada de conjunto, quais
os grandes erros que marcham de paralelo e sustentam essa conduta e que havemos
de encontrar sob várias formas, no curso das nossas contraditas.
O primeiro erro geral de que abusam os materialistas é
imaginarem que, pelo fato de existir Deus, importa atribuir-lhe uma vontade
caprichosa e não constante e imutável, em sua perfeição.
Ersted, por exemplo, sábio escrutador do mundo físico,
exprimiu sensatamente as relações de Deus com a Natureza, dizendo que “o mundo
é governado por uma razão eterna, cujos efeitos se manifestam nas leis da
Natureza”.
O Dr. Büchner opõe a esse conceito a seguinte especiosa
objeção: – “Ninguém poderia compreender como uma razão eterna, que governa, se
conforme com leis imutáveis. Ou são as leis naturais que governam, ou é a razão
eterna. Que umas ao lado de outras entrariam, a cada instante, em colisão. Se a
razão eterna governasse, supérfluas se tornariam as leis naturais e se, ao
revés, governam as leis imutáveis da Natureza, elas excluem toda intervenção
divina.” – “Se uma personalidade governa a matéria num determinado sentido –
opina Moleschott – desaparece da Natureza a lei da necessidade. Cada fenômeno
se torna partilha de jogo do acaso e de uma arbitrariedade sem pelas.”
Havemos de convir que esta grave objeção é singularíssima.
É um raciocínio extravagante que cai pela base. A nós nos
parece, pelo contrário, que a inteligência notória nas leis da Natureza
demonstra, no mínimo, a inteligência da causa a que se devem essas leis, que
são, elas mesmas, precisamente a expressão imutável dessa inteligência eterna.
E não será algo ridículo pretender que essa causa deixe
de existir, pelo motivo do íntimo acordo com essas mesmas leis?
Vejamos, por exemplo, um excelente harpista: a sua
virtuosidade é tão perfeita que os acordes frementes parecem-nos identificados
com a poesia da sua alma! Diremos, então, que essa alma não existe, visto que
para lhe admitir existência fora preciso que ela estivesse eventual e
arbitrariamente em desacordo com as leis da Harmonia! Essa maneira de
raciocinar é tão falsa que os próprios autores que a utilizam são os primeiros
a reconhecê-lo implicitamente. Assim é que Büchner, referindo-se a milagres e
ao fato de haver o clero inglês solicitado a decretação de um dia de jejum e de
preces para conjurar a cólera, elogia Palmaraton por haver respondido que o
surto epidêmico dependia mais de fatores naturais, em parte conhecidos, e poderia
melhor jugular-se com providências sanitárias, antes que com preces.
Muito bem! O autor, melhor ainda, acrescenta: “Essa
resposta lhe acarretou a pecha de ateísmo e o clero declarou pecado mortal não
crer pudesse a Providência transgredir, a qualquer tempo, as leis da Natureza.”
Mas, que singular ideia faz essa gente de Deus que por si
criou! Um legislador supremo a deixar-se comover por preces e soluços, a
subverter a ordem imutável que ele mesmo instituiu, a violar por suas próprias
mãos a atividade das forças naturais! – “Todo o milagre, se existisse – diz
também Cotta – provaria que a Criação não merece o respeito que lhe tributamos
e os místicos deveriam deduzir, da imperfeição do criado, a imperfeição do
Criador.”
Aí temos os adversários em contradição consigo mesmos,
quando, por um lado, não querem admitir uma razão eterna em concordância de
leis imutáveis, e por outro pensam conosco, que a ideia de imutabilidade ou,
pelo menos, a regularidade, identifica-se muito melhor com a perfeição ideal do
ser desconhecido que denominamos Deus, do que a ideia de mutabilidade e
arbitrariedade, que umas tantas crenças pretendem impor-lhe.
Um segundo erro geral, não menos funesto que o precedente
e que por igual ilude nossos contraditores, é o de acreditarem que, para
existir Deus, importa colocá-lo fora do mundo.
Não vemos pretexto algum racional que possa justificar
uma tal necessidade. E antes do mais, que significa essa ideia de uma causa
soberana extramundo? Onde os limites do mundo? Pois o mundo, isto é, o espaço
no qual se movem estrelas e terras, não é infinito por sua mesma essência?
Imaginais um limite a esse mesmo espaço e supondes que
ele se não renova além? Será, então, possível traçar limites à extensão? Onde,
pois, imaginar Deus fora do mundo? Será fora da matéria, o que se quer dizer?
Mas, que é a matéria em si? – agrupamentos de moléculas intangíveis. Portanto,
impossível determinar uma semelhante posição. Deus não pode estar fora do
mundo, mas no mesmo lugar do mundo, do qual é o sustentáculo e a vida.
Não fosse temer a pecha de panteísta e ajuntaríamos que
Deus é – a alma do mundo. O Universo vive por Deus, assim como o corpo obedece
à alma. Em vão pretendem os teólogos que o espaço não pode ser infinito, em vão
se apegam os materialistas a um Deus fora do mundo, enquanto sustentamos que
Deus, infinito, está com o mundo, em cada átomo do Universo – adoramos Deus na
Natureza.
Entretanto, nossos adversários combatem insensatamente o
seu fantasma. “Não há considerar o Universo – diz Strauss – como ordenação
regrada por um Espírito fora do mundo, mas, como razão imanente às forças
cósmicas e às suas relações.”
A essa razão, chamamo-la Deus, enquanto os modernos
ateístas aproveitam essa declaração para sentenciar que, em não existindo fora
do mundo, é que Deus não existe.
“Tudo, – diz H. Tuttle – desde a tinha (perdoem a
expressão) que baila aos raios do Sol, à inteligência humana, que verte das
massas medulosas do cérebro, está submetido a princípios fixos. Logo, não
existe Deus.” Logo, existe – dizemos nós – “Livre é cada qual de franquear os
limites do mundo visível – pondera Büchner – e de procurar fora dele uma razão
que governa, uma potência absoluta, uma alma mundial, um Deus pessoal”, etc.
Mas, que é o que vos fala disso? “Nunca, em parte alguma – diz o mesmo literato
– nos mais longínquos espaços revelados pelo telescópio, pôde observar-se um
fato que fizesse exceção e pudesse justificar a necessidade de uma força
absoluta, operando fora das coisas.”
“A força não impelida por um Deus, não é uma essência das
coisas isoladas do princípio material” – adverte Moleschott.
Ninguém terá visão tão limitada – afirma ele alhures –
para enxergar nas ações da Natureza forças outras não ligadas a um substrato
material. Uma força que planasse livremente acima da matéria seria uma
concepção absolutamente balda de sentido.
Positivamente, ainda hoje existem cavaleiros errantes, à
guisa dos que outrora manobravam em torno dos castelos do Reno, e de bom grado
arremetem moinhos de vento. Lídimos heróis de Cervantes, visto que, no fim de
contas, qual o filósofo que hoje propugna um Deus ou forças quaisquer fora da
Natureza?
Vemos em Deus a essência virtual que sustenta o mundo em
cada uma de suas partes microscópicas, daí resultando ser o mundo como que por
ele banhado, embebido em todas as suas partes e que Deus está presente na
composição mesma de cada corpo.
Dessarte, a primeira trincheira cavada pelos adversários
para bloquear o Espiritualismo foi por eles mesmos entulhada; e a segunda nem
sequer objetiva a cidadela, e os nossos soldados alemães não fazem mais que
bater o campo.
Um terceiro erro, capital e imperdoável em cientistas de
certa idade, é imaginarem-se com direito de afirmar sem provas, a embalarem-se
com a doce ilusão de serem os outros obrigados a acreditar sob palavra. Coisas
que a verdadeira Ciência profundamente silencia, afirmam-nas eles, categóricos.
Afirmam, como se houvessem assistido aos concelhos da Criação, ou como se fossem
os próprios autores dela.
Eis alguns espécimes de raciocínios, cuja infalibilidade
é tão ciosamente proclamada.
Que os espíritos um tanto afeitos à prática científica se
deem ao trabalho de analisar as seguintes afirmações:
Moleschott diz que a força não é um deus que impele, não
é um ser separado da substância material das coisas (quer dizer separado ou
distinto?). É a propriedade inseparável da matéria, a ela inerente de toda a
eternidade. Uma força, não ligada à matéria, seria um absurdo. O azoto, o
carbono, o oxigênio, o enxofre e o fósforo têm propriedades que lhes são
inerentes de toda a eternidade... Logo, a matéria governa o homem.”
Cada uma destas afirmativas, ou negativas, é uma petição
de princípios, a depender do sentido que dermos aos termos discutíveis
utilizados; mas, em suma, o que elas resumem é que a força vale como
propriedade da matéria. Ora, essa é, precisamente, a questão. Os campeões da
Ciência, que pretendem representá-la e falar com e por ela, não se dignam de
seguir o método científico, que é o de nada afirmar sem provas. Nas dobras do
seu estandarte, com letras douradas, estereotiparam uma legenda fulgurante, a
saber: – toda proposição não demonstrada experimentalmente só merece repúdio –
e, no entanto, logo de início, esquecem a legenda. São pregadores de uma nova
espécie: façam o que digo e não o que eu faço.
Veremos, com efeito, que, quantos afirmam que a força não
impulsiona a matéria, exprimem um conceito imaginativo, nada científico.
Ouçamos, ainda, outras afirmativas gerais: “A matéria –
diz Dubois-Reymond – não é um veículo ao qual, à guisa de cavalos, se
atrelassem ou desatrelassem alternativamente as forças. Suas propriedades são
inalienáveis, intransmissíveis de toda a eternidade.”
Quanto ao destino humano, eis como se exprime Moleschott:
“Quanto mais nos convencemos de trabalhar para o mais alto desenvolvimento da
Humanidade, por uma judiciosa associação de ácido carbônico, de amoníaco e de
outros sais, de ácido húmico e de água, mais se nobilitam a luta e o trabalho”,
etc.
E também em nosso país: “Uma ideia – diz a Revista Médica
– é uma combinação análoga à do ácido fórmico; o pensamento depende do fósforo;
a virtude, o devotamento, a coragem, são correntes de eletricidade orgânica”,
etc.
Quem vos disse tal coisa, senhores redatores? Olhem que
os leitores hão de pensar que os vossos mestres ensinam esses gracejos, quando
tal se não dá, absolutamente. Mesmo porque, do ponto de vista científico, esses
raciocínios são totalmente nulos. De fato, não se sabe o que mais admirar em
tais expoentes da Ciência: se a singular audácia, se a ingenuidade de suas presunções.
Newton não se cansava de repetir: “parece-nos...”, e
Képler dizia: “submeto-vos estas hipóteses...”. Aqueles outros, porém dizem:
afirmo, nego, isto é, aquilo não é, a Ciência julgou, decido, condenou, posto
que no que dizem não haja sombra de argumento científico.
Um tal método pode ter o merecimento da clareza, mas
ninguém o inquinará de modesto, nem de verdadeiramente científico.
É que tais senhores têm a ousadia de imputar à Ciência a
carga pesada das suas próprias heresias. Se a Ciência vos ouvisse, senhores
(mas deve ouvir, porque sois seus filhos) – se a Ciência vos ouve, não pode
deixar de sorrir das vossas ilusões.
A Ciência, dizeis, afirma, nega, ordena, proíbe... Pobre
Ciência, em cujos lábios pondes grandes frases, atribuindo-lhe ao coração um
descomunal orgulho.
Não, meus senhores, e vós bem o sabeis (cá entre nós)
que, nestes domínios, a Ciência nada afirma, nem nega, porque apenas procura.
Refleti, pois, que a armadura das vossas parlandas ilude
os ignorantes e pode induzir em erro quantos não tiveram a faculdade de
perlustrar os vossos estudos, e considerai que, quando nos arrogamos o título
de intérpretes da Ciência, ficamos na obrigação de não falsear o título, de
permanecer-lhe fiel e, por consequência, modestos tradutores de uma causa que
tem na modéstia o seu primacial merecimento.
Se, da questão da força, em geral, passarmos à da alma,
observaremos que, na esfera da vida animal, ou humana, os adversários não
vacilam em afirmar, igualmente sem provas, que não existe personalidade no ser
vivente e pensante; que o espírito, como a vida, mais não é que o resultado
físico de certos grupamentos atômicos e que a matéria governa o homem tão
exclusivamente quanto, a seu ver, governa os astros e os cristais. O fenômeno
mais curioso é o de imaginarem que aclaram o problema com as suas explicações
obscuras:
– “O espírito, diz o Dr. Hermann Scheffler[ii],
outra coisa não é senão uma força da matéria, imediatamente resultante da atividade
nervosa” ...
Mas... de onde provém essa atividade nervosa?
– Do éter (?) em movimento nos nervos. De sorte que,
os atos do espírito são o produto imediato do movimento nervoso, determinado
pelo éter, ou do movimento deste nos nervos – ao qual importa ajuntar uma variação
mecânica, física ou química, da substância imponderável dos nervos e de outros
elementos orgânicos...
– Eis aí, suponho, bem esclarecida a questão.
Virchow diz que “a vida não é mais que modalidade particular da mecânica”; e
Büchner afirma que “o homem não passa de produto material; que não pode ser o
que os moralistas pintam; que não tem faculdade alguma privilegiada”.
– Que há em todos os nervos uma corrente elétrica –
predica Dubois-Reymond – e que o pensamento mais não é que movimento da
matéria. Para Vogt, as faculdades da alma valem como funções da substância
cerebral e estão para o cérebro como a urina para os rins[iii].
E Moleschott assegura que a consciência, a noção de si mesmo, mais não é que
movimentos materiais, ligada a correntes neuro-elétricas e percebidas pelo
cérebro.
Teremos ensejo de assinalar, mais adiante, um ditirambo
deste mesmo autor sobre o fósforo, o peso do cérebro, as ervilhas e lentilhas.
Por agora, limitemo-nos a estes edificantes testemunhos.
Admiremos, sobretudo, a conclusão fundamental: “E aí
temos nós porque os sábios definem a força uma simples propriedade da matéria.
Qual a conseqüência geral e filosófica desta noção tão simples quanto natural?
É que aqueles que falam de uma força criadora, tendo de si mesma originado o
mundo, ignoram o primeiro e mais simples princípio do estudo da Natureza,
baseados na Filosofia e no empirismo.”
E, acrescentam – “qual o homem instruído, com um
conhecimento mesmo superficial das ciências naturais, capaz de duvidar não seja
o mundo governado como geralmente se afirma, e sim que os movimentos da matéria
estão submetidos a uma necessidade absoluta e inerente à própria matéria?“
Assim, pela só autoridade de alguns alemães, que vêm
ingenuamente declarar não admitirem, seja como for, a existência de Deus e da
alma, agarrando-se embora a uma sombra de noção científica por justificar as
suas fantasias, teríamos nós, ao seu ver, de abjurar a Ciência, ou deixar de
crer em Deus.
Tivessem tido apenas a precaução de aplicar as regras do
silogismo ao seu método; tivessem tido o cuidado de propor, primeiramente, as
premissas irrefutáveis e não tirar delas senão uma conclusão legítima, e
poderíamos acompanhá-los no raciocínio e conferir-lhes um prêmio de retórica.
Mas, vede em que consiste o seu processo:
Maior – A força é uma propriedade da matéria.
Menor – Portanto, uma propriedade da matéria não pode ser
considerada superior, criadora ou organizadora dessa matéria.
Conclusão – Logo, a idéia de Deus é uma concepção absurda.
É assim que arvoram, antes de tudo, em princípio a tese a
discutir.
Combatendo cerradamente os métodos do Cristianismo, essa
gente muito se assemelha aos que, no intuito de provarem aos Romanos a
divindade de Jesus, assim começavam: – Jesus é Deus, e desse princípio não provado
extraiam todas as deduções.
Convicto estamos de honrar grandemente esses escritores,
aplicando aos seus postulados as regras do raciocínio, que eles talvez nunca
sonharam seguir.
Também poderíamos submeter-lhes as pretensões a uma outra
forma mais ingênua, assim:
Antecedente – Matéria e força encontram-se sempre associadas.
Conseqüente – Logo, a força é uma qualidade da matéria.
Aí temos, penso, um entimema de novo gênero e de conseqüências
bem evidentes, pois não? Mas, é assim que os senhores Alemães raciocinam, bem
como os seus clarividentes imitadores, positivistas da nossa moderna França.
No primeiro caso, o raciocínio peca pela base; e, no
segundo, nem mesmo faz jus a esse reproche, porque é uma infantilidade.
Certo, pesa dizê-lo, mas é a essa puerilidade, ou melhor
– perversão da faculdade de raciocinar – que se reduz o movimento materialista
dos nossos tempos. E nunca, como aqui, vem a pêlo a frase do misantropo que
dizia não ser o homem um animal pensador, mas, falador.
Todo o fundamento desta grande querela, toda a base deste
edifício heterogêneo, cujo desmoronamento pode esmagar muitos cérebros sob os
escombros; toda a força deste sistema que pretende dominar o mundo, presente e
futuro; todo o seu valor e potência, repousam nessa assertiva fantasiosa,
arbitrária e jamais demonstrada, de ser a força uma propriedade da matéria.
E é fingindo acompanhar a rigor as demonstrações
científicas e só se apoiar em verdades reconhecidas; é confungindo-se ao
estandarte da Ciência, apropriando-se de suas fórmulas e atitudes; é, enfim,
com ela mascarando-se, que os pontífices do ateísmo e do niilismo proclamam as
suas belas e edificantes doutrinas.
Mas a Ciência não é uma mascarada. A Ciência fala de
viseira erguida, não reivindica falsas manobras, nem luzes de falso brilho.
Serena e pura na sua majestade, ela se pronuncia simples, modestamente, como
entidade consciente do seu valor intrínseco. Nem procura impor-se e, sobretudo,
não aventa coisas de que não possa estar segura. Em vez de afirmar ou negar,
investiga e prossegue, laboriosamente, no seu mister.
A exposição precedente já deixou adivinhar, sem dúvida, a
tática do ateísmo contemporâneo.
Ele não é fruto direto do estudo científico, mas procura
insinuar-se com essa aparência.
Evidente a ilusão, nesses filósofos, pois sabemos que há
entre eles uns tantos conceitos sinceros. É à força de quererem conjugar à
Ciência as suas teorias, que acabaram por embutir no cérebro essa união
clandestina. Essas teorias não podem invocar a seu favor qualquer das grandes
provas científicas da nossa época e, sem embargo, dão-se como resultantes de
todo o moderno trabalho científico.
Isso repetem, e é com essa hermenêutica que abusam dos ignorantes
e da juventude desprecavida e entusiasta, tendendo a lhes fazer crer que as
ciências, à força de progredirem, acabaram por descobrir e demonstrar que não
há Deus nem alma. São eles que fazem a Ciência.
* * *
No rostro desta obra inscrevemos, por conseguinte, esta
pergunta:
A força rege ou é regida pela matéria? Este o dilema que
os fatos de si mesmos devem resolver.
O panorama geral do Universo vai oferecer-nos uma
primeira demonstração de soberania da força e da ilusão dos materialistas.
Da matéria, nos elevamos às forças que a dirigem; destas,
às leis que as governam, e destas, ainda, ao seu misterioso autor.
A harmonia repleta o mundo dos seus acordes e o ouvido de
alguns ínfimos seres humanos recusam-se a escutá-los. A mecânica celeste lança,
ousadamente, no espaço, o arco das órbitas e o olho de um parasita desses orbes
desdenha a grandeza da sua arquitetura.
A luz, o calor, a eletricidade, pontos invisíveis
projetados de uma a outra esfera, fazem circular nos espaços infinitos o
movimento, a atividade, a vida, a radiação do esplendor e da beleza, e as
imbeles criaturas, apenas desabrochadas à superfície de um parasita desses
orbes desdenha a grandeza a confessar a fulgurância celeste! É loucura ou é
tolice? É orgulho, ou ignorância? Qual a origem e a finalidade de tão estranha
aberração? Porque a força vital, álacre e fecunda, palpita no Sol como na
borboleta que morre com a manhã; no carvalho anoso das florestas como na
primaveril violeta? – porque a vida magnificante doura as messes de Julho e os
cabelos anelados da juventude petulante e freme no seio virginal das noivas? –
porque negar a beleza, mascarar a verdade e desprezar a inteligência? Porque
envenenar as virtudes eternas que sustentam a estrutura do mundo e eclipsar,
tristemente, a luz imácula que desce dos céus?
Antes de penetrar os mistérios do reino tão rico e
interessante da vida, devemos considerar o esboço material do Universo,
começando por demonstrar a soberania da força no tracejar desse mesmo esboço.
Dividiremos esta primeira em duas partes: o Céu e a Terra, para estabelecer em
primeiro lugar, por leis astronômicas e depois pelas terrestres, que, onde quer
que exista a matéria, esta jamais deixou de ser escrava servil, universalmente
dominada pela energia que a rege. Esta divisão não deve sugerir, de modo algum,
a velha comparação do céu com a Terra, que bem sabemos serem termos
incomparáveis. Considerado como valor absoluto, o céu é tudo e a Terra nada é.
A Terra é átomo imperceptível, perdido no seio do infinito; o céu a envolve no
ilimitado e a integra na população astral, sem exceção nem privilégio particular.
Reunir os dois vocábulos, é como dizer: os Alpes são uma
pedrinha, o Oceano é uma gota d’água e o Saara um grão de areia. É comparar o
todo a um mínimo do mesmo todo.
Importa, portanto, não interpretar literalmente a nossa
divisão, que só se justifica por colimar maior clareza do assunto. Para nós,
terrícolas, este globo é alguma coisa, assim como para a minúscula lagarta, que
aflora numa folha, esta folha algo vale, mau grado à sua insignificância no
conjunto da pradaria.
Nossa esfera de observação divide-se também, naturalmente,
em duas partes: o que pertence e o que não pertence ao nosso mundo.
Ora, vamos estabelecer que, fora do nosso mundo, assim
como nele, a matéria está em tudo e por toda a parte e não passa de coisa
inerte, cega, morta, composta de elementos incapazes de se dirigirem por si
mesmos; que não agem nem pensam por impulso próprio e que, nos sendais invisíveis
do espaço, tanto como nos canais da seiva ou do sangue, o que aglutina em
átomos, dirige as moléculas e conduz os mundos, é uma Força na qual transparece
o plano, a vontade, a inteligência, a sabedoria e o poder do seu amor.
Dir-se-ia, em os ouvindo, nada haver além deles. Os
grandes homens da antiguidade e da Idade Média, tanto como os modernos, são
fantasmas, e toda a Filosofia deve desaparecer diante do ateísmo pretensamente
científico.
Preciso se faz que a imaginação popular não se deixe
iludir por simples jogo de palavras, que mais valem, às vezes, por verdadeira
comédia. Importa que as criaturas pensem por si mesmas, julguem com
conhecimento de causa e adquiram a certeza de que os fatos científicos,
perquiridos sem prevenção, não comportam as conclusões dogmáticas que lhes
querem impor.
Vista de perto, a pedra angular a grande custo lançada
pelo materialismo contemporâneo deixa entrever que ela não passa de velho e carcomido
tronco de madeira podre e, no fundo, os partidários do sistema não estão mais
seguros do seu cepticismo do que o estariam os calvos discípulos de Heráclito
ou de Epícuro.
Ainda que queiram convencer-nos do contrário, todo o seu
sistema não passa de hipótese, mais vazia e menos fundamentada que muitos
romances científicos.
E uma vez que são eles próprios a declarar que toda
hipótese deve ser banida da Ciência, não há como deixarmos de começar por esse
banimento.
Realmente, com que direito fazem da força atributo da matéria?
Com que direito afirmam que a força está submetida à
matéria, que lhe obedece passivamente aos caprichos, escrava absoluta de
elementos inertes, mortos, indiferentes, cegos? Maior e mais fundado é o nosso
direito de inverter-lhes a proposição, derrubando-lhes o edifício pela base.
Terminemos assim esta exposição do problema, decidindo
que o discrime se coloca nestes termos fundamentais: é a matéria que domina a
força, ou antes esta que domina aquela?
Trata-se de discutir e escolher uma ou outra, ou, para
falar com mais exatidão – trata-se de observar a Natureza e optar depois.
E, pois que os honrados campeões da matéria afirmam, com
tanta segurança, o primeiro enunciado, começamos revocando-o em dúvida e
propondo a alegação contrária
[i] La
Philosophie de
Goethe, capítulo 6º.
[ii] Körper und Gelst, etc.
[iii] Physiologische Briefe.
Camille Flammarion
Deus na Natureza
Traduzido do Francês
Camille Flammarion - Dieu dans la nature
(1866)
Repassando…