terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

A Origem dos Seres







SUMÁRIO – A criação segundo o Materialismo antigo e o contemporâneo. – História científica das gerações espontâneas. – De como a hipótese da geração espontânea não afeta a personalidade de Deus. – Erro e perigo dos que se permitem intermitir Deus em suas controvérsias. – De como a aparição sucessiva das espécies pode resultar de forças naturais, sem que o ateísmo algo possa ganhar com esta hipótese. – A Bíblia é atéia? – Origem e transformação dos seres. – Reinos vegetal, animal, humano. – Ancianidade do homem. – Que todos os fatos da Geologia, da Zoologia ou da Arqueologia não inquietam a Teologia natural.
“Aos primeiros calores da Primavera os voláteis de qualquer espécie alaram-se no espaço, libertos do ovo natal. Nos dias estivais, podemos surpreender a cigarra, rompendo o frágil casulo, partir, cindir os ares ávida de luz e de alimento. Não de outro modo a Terra produziu a raça humana; a onda e o fogo, encerrados no solo, fermentaram e fizeram crescer, nos lugares propícios, germens fecundados, cujas raízes vivas mergulhavam na terra.
Chegado o tempo da maturidade e rompido o invólucro que os enclausurava, cada embrião deixou o âmago úmido da terra e apoderou-se do ar e da luz. Para eles se dirigem os poros sinuosos da terra e, reunidos em suas veias entreabertas, escorrem ondas de leite. Assim, vemos ainda, depois da gestação, as mães se repletarem de um leite saboroso, porque os alimentos, convertidos em suco nutritivo, lhes intumesce o seio. A terra, portanto, alimentou os seus primeiros filhos, que tiveram no calor as primeiras vestes, e, por berço, a relva abundante e macia.
“Assim como a tenra avezinha, ao nascer, se reveste de plumas ou de sedosa lanugem, assim a terra jovem se recobre de macia ervagem e flébeis arbustos. E não tarda, também, a conceber as espécies animadas, mediante combinações inúmeras e variadas: a terra incuba os seus habitantes, que não desceram dos céus nem emergiram dos abismos tenebrosos. É pois, a justo título de reconhecimento, que se lhe dá o nome de mãe. Tudo o que respira foi concebido em seu ventre; e se ainda hoje vemos seres vivos lhe brotarem do limo, quando, molhado da chuva, ele fermenta à luz solar, porque nos admirarmos maiormente que seres mais numerosos e mais robustos lhe saíssem dos flancos, quando ela, a terra e a essência etérica, ainda se incendeiam dos ardores da juventude?”[i]
Assim se exprime o corifeu do velho materialismo. Nisso, ele é bem o intérprete fiel do seu mestre, Epícuro, cujo sistema físico aqui resumimos em poucas palavras[ii]:
À força de percorrerem céleres e ao acaso a imensidade, os átomos se reuniram e se combinaram; daí, massas ainda informes e inorgânicas, mas já apreciáveis por sua composição. Com o correr dos tempos, essas massas, diferentes em peso, foram arrastadas a direções diferentes, ou com velocidades diferentes, umas caindo e subindo outras.
Uma vez existente a água, em virtude da sua fluidez, encaminhou-se para os lugares mais baixos, para as cavidades mais próprias a contê-la. Outras vezes, houve ela mesma de preparar o seu leito. As pedras, os metais, os minerais em geral, nasceram no âmago do globo, segundo a espécie de átomos ou de germes nele encerrados, quando a atmosfera se destacou do céu. Daí, essas colinas, montanhas, acidentes numerosos, que diversificam a superfície do solo: montes a prumo, ao lado de vales profundos, de extensos altiplanos cobertos de vegetação multifária, que lhe são indumenta garrida, quanto para nós a seda, as penas, a lã, etc. Resta explicar o nascimento dos animais. É verossímil que, contendo a Terra germes fresquíssimos e adequados à geração, produzisse em sua crosta uma espécie de bolhas cavas, à maneira de úteros, e que essas bolhas, em atingindo a maturidade, rebentassem e dessem à luz os incipientes animaizinhos.
Intumesceu-se, então, a Terra de humores semelhantes e os recém-nascidos viveram a expensas deste alimento.
Os homens, diz Epícuro, não nasceram de outro modo. Pequenas vesículas à maneira de úteros, ligados à terra pelas raízes, avolumaram-se batidos pelos raios ardentes do Sol, produziram tenros rebentos e mantiveram sua vida a expensas do líquido lácteo que a Natureza lhes preparara. Os homens primários são o talo da espécie humana, que, depois, se propagou por vias usuais, até hoje.
Eis, creio, uma hipótese bem simplista. Ela explica, simultaneamente, como o homem contemporâneo é menor e menos robusto que o primitivo. A espécie humana nascia, então, espontaneamente, do solo mesmo da terra e hoje os homens procedem uns dos outros[iii].
O pensamento manifesta-se por entrosagem dos movimentos, que, desenvolvidos primariamente numa substância desprovida de racionalidade, acabam reproduzindo-se artificial e não espontânea e cegamente.
Os movimentos atômicos foram, indubitavelmente, obra do acaso, sem contingência de racionalidade e, nada obstante, desde os primórdios do mundo, existiam animais que se diriam protótipos raciais.
Uma vez formados esses animais pelos átomos errantes em todas as direções, a engendrarem movimentos de aproximação, de repulsão, de exclusão ou de junção, alguns, apenas, vinham adaptar-se e conjugar-se aos átomos do animal protótipo, isto é, os que com estes se identificavam em natureza. Os outros, ao contrário, eram repelidos, por dissímeis dos constitutivos do animal.
Tudo se explica, portanto, exceto a maneira como, nos primórdios do mundo, se formaram os protótipos. Isto é o que Epícuro não explica, ao menos com raciocínios claros.
Pois é sob os auspícios desta filosofia, que ousam colocar-se os senhores materialistas do século XIX[iv].
Graças à capciosa linguagem de Lucrécio e à doutrina simultaneamente estóica e displicente de Epícuro, essa gênese simplista conta sempre muitos partidários. E no entanto, apesar de tudo, nada existe de menos científico. Reparai, pela manhã, num bando de insetos que voam de um torrão de argila esfarelado! o barão de Munchausen põe a mão num montículo de terra, bem no centro do campo arroteado, e logo uma ninhada de melros brancos, seguida de aves outras, põe-se a correr pela jeira em fora. Até hoje só sabemos de alguém que haja testemunhado um tal nascimento, de um ser nosso irmão: é Cyrano de Bergerac, quando, de sua viagem ao Sol, realizada aos 30 de Fevereiro de 1649, no momento de lá aportar, houve de parar para tomar fôlego em um dos planetóides que gravitam em torno do astro-rei[v].
Notemos, todavia, que o materialismo de Lucrécio não é tão grosseiro qual o interpretam.
A alma do poeta diviniza as forças da Natureza. D’Holbach, ao contrário, não tem alma; desdenha a força, não vê senão a matéria.
Podem seres vivos nascer espontaneamente de elementos químicos como o hidrogênio, o carbono, o amoníaco, a lama, a podridão? Houve quem o acreditasse por muito tempo, e ainda hoje existe uma escola positiva, empenhada em demonstrar experimentalmente a veracidade da hipótese. Ouçamos alguns corifeus, antigos e modernos.
Colhamo-los ao acaso. Van Helmont diz: se espremermos uma camisa suja (sic) no orifício de um vaso que contenha grãos de trigo, este se transformará em ratos adultos ao fim de 21 dias, mais ou menos. Perfurai um buraco num tijolo, metei nele manjericão pilado e justaponde ao tijolo outro tijolo, de maneira a vedar completamente o buraco, exponde ao Sol os dois tijolos e, no fim de alguns dias, o cheiro do manjericão, operando como fermento, transformará a erva em legítimos escorpiões. O mesmo alquimista pretendia que a água da fonte mais pura, lançada em vaso impregnado do odor de um fermento, corrompe-se e engendra vermes.
Dêem-me farinha e tutano de carneiro – dizia Needham em o seu Novas Descobertas Microscópicas – e eu vos pagarei com enguias.
Voltaire, a sorrir, respondia-lhe que também esperava ver um dia a fabricação de homens por esse mesmo processo. Sachs ensina que os escorpiões são produto da decomposição da lagosta.
Na matéria dos corpos mortos e decompostos, dizia o próprio Buffon, as moléculas orgânicas, sempre ativas, trabalham para revolver a matéria putrecida e formam uma chusma de corpúsculos organizados, dos quais alguns, como as minhocas, os cogumelos, etc., são assaz volumosos. Todos estes corpos só vivem por geração espontânea. Presentemente, o Dr. Cohn, de Breslau, pretende que a morte da mosca comum, no Outono, é ocasionada pela formação de cogumelos no corpo do inseto. Há em tudo isso, sem dúvida, como em tantas outras coisas, que traçar um limite a essas faculdades dos elementos organizados; e nós nos disporíamos melhor a crer na formação dos cogumelos microscópicos sobre o órgão atrofiado da mosca, tanto quanto do fúcus num pulmão enfermo, ou de mofo num tronco de madeira, do que acreditar com as boas velhas fiandeiras do cânhamo em nossa infância, quando nos diziam que a crina arrancada à cauda de cavalo branco e atirada a um regato se transformava, dentro de três dias, numa enguia branca. Este é também um absurdo bem cotado em algumas regiões do Este da França. Lembra-nos de o haver tentado, ao tempo de Luís Filipe, mas, como só contávamos seis anos de idade, também é admissível que a nossa cândida ignorância não nos permitisse um legítimo triunfo.
Por não ter levado a termo final as suas observações, Arístoto manteve-se na erronia de que os insetos nascem das folhas verdes, assim como os piolhos da carne e os peixes do lodo. Muito curioso ver até que ponto Plínio, traduzindo Arístoto, chega à descrição desse nascimento imaginário. “A lagarta – diz – sai de uma gota de orvalho, caída nos primeiros dias da Primavera e que, condensada pelo Sol, se reduz ao tamanho de um grão de milho. Assim elaborada, essa gota, estendendo-se, faz-se pequeno verme (ros porrigitur vermiculus parvua) que, dentro de três dias, transforma-se em lagarta”. Nada, porém, ultrapassa a argumentação de Plutarco nas Symposiacas, ou Colóquios à Mesa, no intuito de resolver a velha questão aventada por Pitágoras, ou seja: a prioridade do ovo ou da galinha. Esse discrime dá uma idéia das opiniões suscitadas na antigüidade e agora revividas, sem contudo levar em conta o ultraje irreparável dos anos.
Plutarco conta-nos, pois, que tão logo propôs a questão, seu amigo Sila o advertiu de que, por uma causa tão simples, qual uma alavanca, haveriam de acionar a pesada máquina da conformação do mundo e, por isso, desistia de o acompanhar.
Aelevandre, irônico, declara que a questão é meramente ociosa e Fírmus, seu parente, tomando a palavra, exclama: dai-me, pois, os átomos de Epícuro, visto que, se importa presumir que minúsculos elementos são os geradores de grandes corpos, é bem provável que o ovo tenha precedido a galinha, e ainda porque, tanto quando podemos julgar pelos sentidos, ele é o mais simples e ela o mais complexo.
Em regra, o princípio é anterior ao que dele procede. Dizem que as veias e as artérias são as primeiras partes que se formam no animal. É possível, também, que o ovo tenha existido antes do animal, pela razão de que o continente precede o conteúdo. As artes começam por esboços grosseiros e informes, que se aperfeiçoam parcialmente, na forma que mais lhes convêm. Dizia o escultor Policleto nada haver mais difícil na sua arte do que dar à sua obra o último toque de perfeição. É de crer, assim, que a Natureza, ao imprimir à matéria o movimento inicial, tendo-a encontrado menos dócil, só haja produzido massas informes, sem linhas definidas, quais são os ovos, e que o animal não viesse a existir senão depois do aperfeiçoamento dos primeiros esboços. A lagarta foi a primeira formação: quando, mais tarde, endurecida e ressequida, parte-se-lhe o casulo, dele se libra o volátil a que chamamos ninfa. No caso vertente, do mesmo modo, o ovo preexistiu como matéria prima de toda a produção, pois em toda a metamorfose o ser que muda de estado é, necessariamente, anterior ao de que toma a forma. Vede como o líquen e o caruncho se engendram nas folhas e nas madeiras, como produtos da putrefação, ou da cocção das partes úmidas, e ninguém negará que esta umidade não seja anterior aos animais que ela origina e que, naturalmente, o que origina não seja anterior ao originado”.
A prioridade do ovo parecia bem estabelecida com este excelente palanfrório, quando um tal Senésio se intrometeu a contraditar. “É natural – diz ele – que o perfeito anteceda ao imperfeito, o completo ao incompleto e o todo à parte. Insensato é supor que a existência de uma parte preceda à do seu todo. Assim é que, ninguém diz: – o homem do germe, a galinha do ovo, mas, o ovo da galinha, o germe do homem, por isso que aqueles são posteriores a estes; devem-lhes o nascimento e pagam, posteriormente, sua dívida à Natureza, pela geração. Até então, não têm o que convém à sua natureza e que lhes dá um desejo e um pendor de produzir um ser semelhante ao que os originou. Eis, porque, também se define o germe uma produção tendente a reproduzir-se. Ora, ninguém deseja o que não existe, ou jamais tenha existido. Ao demais, vemos que os ovos têm uma substância cuja natureza e composição são quase as mesmas do animal e que só lhes falta os mesmos vasos e órgãos. Daí, jamais se haver dito, a qualquer tempo e em parte alguma, que um ovo, seja qual for, tenha saído da terra. Os próprios poetas inculcam o que originou os Tindaridas como havendo caídos do céu. Hoje, a terra melhor produz animais perfeitos, com sejam os ratos, no Egito, e as serpentes, rãs, cigarras, noutras regiões. Um princípio exterior fá-la mais apta para essa produção. Na Sicília, durante a guerra dos escravos, que derramou tanto sangue, a grande quantidade de corpos insepultos, putrefazendo-se à flor do solo, produziu um número prodigioso de gafanhotos, que, espalhando-se por toda a ilha, devoraram os trigais. Esses insetos nascem da terra e de terra se nutrem. A fartura do alimento lhes dá a faculdade de produzir e, uma vez atraídos pelo gozo de se acasalarem, eles produzem, conforme a sua natureza, ovos ou animais vivos. Isso prova, claramente, que os animais, a princípio nascidos da terra, tiveram depois, no seu coito, uma outra via de geração.
“Eis por que perguntar como poderia haver galinhas antes que houvesse ovos formados equivale a perguntar como existiram homens e mulheres, antes dos órgãos destinados à sua reprodução. Eles são o resultado de certas cocções que alteram a natureza dos alimentos, não sendo possível que, antes de nascido o animal, algo nele exista, capaz de justificar uma superabundância de nutrição. Acrescento eu que o germe, a certos respeitos, é um princípio; ao passo que o ovo não tem essa propriedade, visto não ser o primeiro a existir. E, tão pouco é um todo, pois não possui toda a perfeição. Eis por que não dizemos que o animal não tivesse princípio, mas que tem um princípio de sua produção, que imprime à matéria a sua primeira transformação e lhe comunica uma faculdade generativa.
“O ovo, ao invés, é uma superfectação, que, qual o leite e o sangue, sobrevém ao animal depois que ele faz a cocção dos alimentos. Nunca se viu ovo saído do lodo, pois só se forma no animal. Entretanto, no lodo nasce uma infinidade de animais. De parte outros exemplos, considere-se essa quantidade de enguias apanhadas todos os dias e entre as quais nenhuma apresentará um germe ou um ovo. Esgote-se um poço, retire-se-lhe o lodo, e tanto que o encham novamente d'água, lá se engendrarão de novo enguias. Portanto, tudo o que depende de outro elemento para que possa existir, deve ser posterior a esse elemento e, ao contrário, tudo o que existe sem dependência de outrem, tem prioridade de geração, pois é disto que se trata. Dessarte, podemos crer que a primeira produção vem da terra, conseqüente à propriedade que tem ela, a terra, de gerar por si mesma, sem necessidade de órgãos e vasos que a Natureza imaginou mais tarde, a fim de prover a fraqueza dos seres geradores.”
Estes raciocínios, que hoje nos causam pasmo, não são exclusivos de Plutarco. Todos os autores antigos são concordes neste ponto, e não raro encontramos os que levam a sua ousadia a representar Minerva batendo o pé para extrair do solo parelhas de cavalos e rebanhos. O relato de Verguio nas Geórgicas, a respeito de Aristeu, não é fantasia poética, é expressão geral da crença de que as abelhas nasciam da carne putrefata. O pastor Aristeu perdera as suas queridas abelhas, invoca sua divina mãe e consegue criar novas colméias, imolando novilhos:
Hic verum (subitum ac dictum mirabile monstrum)
Auspícunt liquefacta boum per viscera toto
Stridere apes utero, etc.[vi]
Esta velha pendência das gerações equívocas foi há pouco resumida por Milne-Edwards sob aspecto assaz interessante. Depois de mostrar que no reino mineral os corpos se formam por simples aderência molecular:
“Todos sabem – diz ele[vii] – que, quando se trata da formação de uma árvore, de um cavalo, a matéria que constitui essa árvore, esse cavalo, seria impotente para integrar esse vegetal, esse animal, desde que não fosse atuada por um corpo já vivente – um animal da espécie do que vai nascer, ou um vegetal da mesma natureza. Assim, na árvore como no cavalo, esta propriedade particular, a que chamamos vida, transmite-se, evidentemente. O novo ser é engendrado por um parente, que produz um ser semelhante.
“Há, portanto, uma espécie de sucessão, de transmissão de força vital, ininterrupta, entre os indivíduos, que formam, no espaço e no tempo, uma cadeia de que se compõe cada espécie.
“Eis, por conseguinte, uma diferença fundamental, essencial, entre os corpos brutos e os corpos vivos. O que dizemos da árvore e do cavalo é aplicável a todos os vegetais e animais conhecidos. Todavia, em dadas circunstâncias, essa espécie de filiação não é fácil de verificar e tem escapado a observadores menos atentos e até, por vezes, aos mais hábeis. Assim, quando o cadáver de qualquer animal é entregue à influência atmosférica do ar, da umidade, numa temperatura conveniente, – no Estio por exemplo – esse cadáver sofre uma alteração particular, a que chamamos putrefação. Em tal caso, vemos manifestarem-se no âmago dessa substância corpos vermiformes, gozando de todas as propriedades peculiares aos seres animados e, portanto, animais. Milhões de seres vivos nascem desse cadáver, ao passo que, enquanto vivo o animal, seu corpo nunca apresentou algo de análogo.
“À primeira vista pelo menos, o que parece interromper-se é a filiação geradora. É comum ver-se nos campos poças d’água, formadas pela chuva, logo se coalharem de insetos, de alguns crustáceos.
“Outras vezes vemos, também, na vizinhança de sítios pantanosos, povoar-se o solo de pequenos répteis. Na maioria destes casos é difícil, à primeira vista, explicar por via de geração normal o surgimento desses novos seres. Tão grandes se afiguraram essas dificuldades aos naturalistas de antanho, que houveram de recorrer a uma hipótese particular para explicar a origem desses animais. Assim, julgaram indispensável admitir que a Natureza não segue o mesmo processo, quando se trata de animais superiores, quais os que emprega na constituição de espécies inferiores, como os insetos, morcegos, ratos e mesmo alguns peixes. Entre os filósofos antigos o papel da geração espontânea era considerado importantíssimo. Os naturalistas e filósofos da Idade Média seguiram de olhos fechados os seus predecessores, e daí resultou que, durante catorze séculos, uma tal opinião imperou inconteste nas escolas. Admitia-se, como coisa bem comprovada, que os animais nasciam de duas formas: ora, à maneira dos corpos brutos, ora por transmissão da força vital, que sabemos existente nos animais que se engendram sucessivamente, devendo aos progenitores a existência, a forma, o tipo. Mas, na época da Renascença, houve uma grande reviravolta nos espíritos. No século 17 constituiu-se em Florença uma sociedade de físicos, de naturalistas e médicos, com o fim de solucionar algumas questões por meios experimentais. Essa agremiação denominou-se del cimente, isto é – da experiência. Um de seus membros, Redi, quis submeter a investigações positivas a teoria assaz generalizada da geração espontânea. Quis saber se os seres novos eram engendrados sem progenitura de corpos vivos, ou se eram produto de organização espontânea da matéria morta; verificar, em suma, se a hipótese dos antigos tinha visos de verdade. Tentou, então, a produção desses corpos vermiformes vulgarmente chamados minhoca, que, de modo algum, pertencem à classe dos vermes e são larvas de insetos. Sabe-se que, nas matérias animais em putrefação, essas larvas logo se revelam à temperatura mais elevada, e isso foi o que observou o naturalista florentino. Notou que algumas moscas eram atraídas de longe pelo cheiro da carne corrompida, adejavam-lhe em torno, nela pousavam amiúde e, contudo, não pareciam alimentar-se com essa matéria. Conjeturou, então, que os vermes havidos como espontânea e exclusivamente formados pela matéria poderiam ser a prole das ditas moscas. E notou, ainda mais, que esses presumidos vermes, desenvolvendo, transformavam-se em moscas. São pois, na verdade, filhotes de mosca. Essa verdade não podia satisfazer ao espírito do naturalista. Colocou, então, a carniça em vasos diferentes, uns abertos e outros cobertos de papel crivado de orifícios impenetráveis às moscas, mas arejáveis. Assim viu que as moscas acorriam procurando insinuar o ventre nos orifícios do papel e que, neste caso, não se produziu um só corpo vermiforme. Noutra experiência, utilizou um pano com alguns buraquinhos acessíveis à operação das moscas e viu desenvolver-se uma certa quantidade de óvulos na carne apodrecida.”
A presença de seres vivos no interior de um corpo ou de uma fruta, tanto quanto nas regiões profundas do cadáver animal, era igualmente atribuída à geração espontânea. Supunha-se que matérias orgânicas em putrefação nos intestinos eram a origem dos vermes.
As observações de Vallisniéri e outros fisiologistas da época, com frutos e galhos, desmascararam essa crença. Reconheceu-se que todos esses parasitas não passavam de óvulos depositados por insetos.
O mesmo se verificou com os infusórios, animálculos que parece formarem-se de elementos em dissolução n'água. Certa feita, Leuwenhoeck examinou ao microscópio a água da chuva caída na sua janela e exposta ao ar por algum tempo: a princípio, a água lhe pareceu pura, mas examinando-a ao fim de alguns dias, notou incalculável quantidade de pequeninos seres, de uma tenuidade extrema, a moverem-se vivaces e com as características de verdadeiros animais. Tal descoberta teve grande repercussão e foi confirmada por outros observadores. Leuwenhoeck constatou que, todas as vezes que expunha ao ar um pouco d'água contendo feno, papel e matérias orgânicas quaisquer, surgia um turbilhão de pequeníssimos seres de animalidade bem caracterizada. Para explicar essa nova população, importava coligir que esses animálculos, provindos de seres preexistentes, eram carreados pelo ar atmosférico e depositados em germe, a menos que admitissem a hipótese dos antigos, da geração espontânea. A primeira teoria ressaltou, em geral, das observações mais completas e rigorosas.
Daí para cá, durante o último século e no transcurso do atual, a tese da geração espontânea foi intercorrentemente retomada e interrompida: retomada a propósito de novas descobertas microscópicas, e interrompida quando as experiências atestavam a origem animal ou vegetal dos germes desabrochados. Na hora atual a controvérsia ressurge apaixonadamente, tratada por diversos experimentalistas, à frente dos quais citaremos Pouchet e Pasteur, o primeiro pró, e o segundo contra. Mas, ei-la já de novo suspensa e por um motivo que, diga-se, não deixará de parecer pueril para os nossos descendentes. É o caso que os contendores de ambos os campos não conseguem fazer-se entendidos, com o se reprocharem reciprocamente, e ao mesmo título de legitimidade, de estar combatendo no vácuo.
As experiências realizadas nestes últimos anos e que recuaram a questão, sem resolvê-la, podem comparar-se às precedentes, já pela forma, já pelos resultados colhidos. Sucintamente, eis aqui uma dessas experiências:
“Introduzamos num tubo de vidro de paredes muito delgadas e achatadas – diz o heterogenista Joly – um pouco d’água, um pouco de ar e alguns fragmentos de tecido vegeto-celular.
“Fechemos a fogo a extremidade do tubo e observemos o que se vai passar. Em primeiro lugar, veremos formar-se um amálgama de finas granulações, proveniente, sem dúvida, do tecido vegetal já em desorganização. Pouco a pouco, nas bordas do amálgama granuloso, destacar-se-ão pequenas excrescências de transparência perfeita, mas, ainda inertes. É o bacteríum terma em vias de formação. Esperemos ainda três ou quatro horas e já os animálculos livres se agitarão visíveis, como se ensaiassem uma existência; outros virão juntar-se-lhes e bem depressa o número será tal que não podereis contá-los. Após 6 horas de observação contínua, vossos olhos recusarão obedecer-vos, estareis fatigado como aconteceu a Mantegazza, mas, tanto quanto ele, maravilhado de haver surpreendido a vida no seu berço.”
Qual a origem desses seres vivos, articulados peça a peça sobre essa matéria orgânica, sem filiação de progenitura? Os adversários respondem que o ar está povoado por miríades de germes em suspensão e que destes germes provêm aqueles seres. Antes que o demonstrem, vão eles ao cume do “Montanvert”, fervem as substâncias orgânicas e parece que a dita geração espontânea não mais se produz.
Eis o em que se resume o debate. Para nós, sem prevenções contra ou a favor, pensamos haver um fato no qual não se há pensado bastante, nem talvez de modo algum, e que nos parece digno de representar um papel nesse drama de microscopia.
A vida está universalmente difundida por toda a Natureza, a Terra é ânfora assaz exígua para conter a vida, que desborda em qualquer parte e, não contente de repletar águas e terras, inorgânica, ela se acumula em si mesma, vive à sua própria custa, cobre de parasitas animais e plantas, desdobra florestas no dorso de um elefante e faz, de uma simples folha verde, o pascigo de rebanhos inumeráveis. Ora, essa vida múltipla, insaciável, inumerável, povoa de animálculos cada espécie de seres e de substâncias. Quando, pois, vemos os saltões crescerem no interior do queijo; vermes aflorarem do cadáver; infusórios flutuarem num líquido, não se trataria de animálculos já existentes em germe num estado inferior, no leite, no animal vivo, no líquido, e que se metamorfoseiam por influência das condições novas em que se encontram colocados? Sabemos, porventura, quantas espécies de vegetais e animais vivem em nosso corpo?
O ovo da tênia semeia-se em profusão; nos tecidos do porco e do carneiro ele é o humílimo cisticerco, e só no intestino começa a desenvolver seus inumeráveis anéis, vivendo nas duas hospedarias, isto é, no animal e no homem. Nós o absorvemos na costeleta de porco ou na fatia de carneiro, e daí por diante ela – a tênis – se instalará em nossa casa, sem outros cuidados que os de primeiro inquilino.
As moscas da semente de couve e da farinha fazem morada em nosso estômago. Em sua maioria, estes familiares da nossa intimidade são inofensivos, mas alguns há, pérfidos, que acabam matando o seu benfeitor. Quem não acompanhou a discussão concernente à triquinose? Desde a descoberta do microscópio, quantos parasitas não se hão encontrado em nosso sangue, em nossa carne, em nosso pulmão; nos dentes, nos olhos, nas papuas nasais? Nutrimos carnívoros e herbívoros; temos peixes de água doce a circular em nossas veias, e peixes de água salgada a nadarem no oceano de nossas artérias. Há uma espécie de fúcus que vegeta nos pulmões tuberculosos. As excreções da língua de um febrento compõe-se de multidão de infusórios. Um médico célebre, nosso amigo, tem observado muitas vezes erupções bruscas de milhares de piolhos em doentes atacados de tifo (a extraordinária prolificidade desses ápteros bastaria para explicar essa multiplicação). Os coleópteros não esperam nossa morte para abandonar o seu domicílio habitual. Imperceptíveis insetos penetram-nos os pulmões e aí proliferam, de geração em geração. Já se encontrou no esôfago dos bois famílias inteiras de sanguessugas, indubitavelmente engolidas em estado microscópico e lá criando o seu “habitat”. O estômago do cavalo constitui ambiente atmosférico insalubre, adequado à vida das ostras. Quantas espécies não vivem nos seres animados, sem que estes os percebam, isto sem falarmos dos parasitas externos, quais a pulga, o piolho. o percevejo, o sarcopto, etc.? Disse um filósofo que todas as partes de um ser vivo são individualmente viventes e que já é ousada temeridade enxergar nos animais superiores um edifício celular habitado por multidão inconcebível de animais elementares. Ora, assim sendo, tudo é vida na Natureza. Não somente no ar como nas águas, corpúsculos flutuantes, elementos orgânicos e inorgânicos são portadores de uma vida invisível, espécies que experimentam três fases comuns ao mundo dos insetos, a revelarem-se sob uma ou outra dessas metamorfoses, conforme as condições térmicas de calor e umidade que as envolvam.
Encaradas sob este aspecto, as gerações espontâneas deixariam de ter seu verdadeiro nome, deveriam somente nos representar uma modalidade da vida universal, que palpita em cada átomo de matéria. – E esta maneira de prismar a questão é tanto mais fundada quanto cada espécie surge e se mantém constante, em relação à substância particular que parece pertencer-lhe. O infusório do feno não se encontra na sua fervura e o fermento do vinho não é o mesmo que o do queijo.
Mas, seja como for, o mistério desvendado sob a aparência da geração espontânea está longe de aclarar-se. Qualquer dia e certo sem muita delonga, hão de retomar o debate no ponto em que Láquesis acaba de o encerrar. Quanto ao mais, no pé em que está a questão, o que diz com a criação da vida conserva a sua velha independência, indene das armas da Heterogenia, quanto da Panspermia. A luta cessou à míngua de recursos. Atualmente é impossível saber se o ar mais puro, colhido no cume das montanhas nevadas, não contém germes. Impossível, igualmente, saber se esses germes não resistem a temperaturas de mais de cem graus. A nós nos pareceu que os experimentadores teriam o insucesso (o que de resto é natural), e não operavam com o rigor que teriam se fossem estrangeiros ou adversários. De qualquer forma, porém, o problema continuou insolúvel. O que mais vivamente nos impressionou na justa foi a idéia preconcebida de ambos os lados, aliás, mais de um que do outro. Pretendia-se encarar de um modo absoluto a questão, como de natureza teológica, quando a verdade é que o resultado das experiências em nada afeta a Teologia. É uma declaração que vai talvez surpreender alguns leitores. Entretanto, se profundarmos o assunto, haveremos de convir que a pecha de ateísmo lançada em rosto aos partidários da geração espontânea não cabe aos que, a exemplo ao Sr. Pouchet, não interpretam teologicamente tais experiências; e os que assim não procedem, incidem na maior das vanidades, quando concluem pela inexistência de Deus[viii].
Acreditar que seres vivos, vegetais ou animais, possam nascer espontaneamente da combinação de certos elementos, não é maior sacrilégio que acreditar os planetas destacados do Sol, ou que a galga seja prima do cão dos Pireneus. O Ser Supremo nada tem a ver com essas interpretações superficiais, que constituem, por assim dizer, o campo de carnagem dos míticos pensadores.
Os micrógrafos mutuamente desacreditaram a sua causa, fazendo baixar às suas retortas as potências criadoras. Acreditarão eles que, dado pudesse a matéria inerte tornar-se semi-organizada, e depois organizada, sob a influência de tais e quais forças, teriam suprimido a causa soberana dos domínios da Natureza? Absolutamente. O que tais experiências inculcam, e eles em sua maioria ignoram, é o protesto contra o Deus humano e a elevação do espírito a concepções mais puras e mais grandiosas, do misterioso Criador.
Será rebaixar a idéia de Deus o considerar o Universo um como gigantesco desdobramento de uma obra única, cujas modalidades se manifestam multifárias e cujos poderes se traduzem em forças particulares, distintas? A substância primitiva ocupa o espaço ilimitado. O plano divino está em que esta substância seja um dia condensada em mundos, nos quais a vida e a inteligência hajam de irradiar esplendores. A luz, o calor, a eletricidade, o magnetismo, a atração, o movimento sob modalidades desconhecidas percorrem, atravessam essa substância primordial, como o vento da Grécia, que, ao tempo de Pan, timbrava as harpas eólias no âmbito da noite. Que mão empunha o arco e preludia o mais magnificente dos coros? Não pode a inteligência humana defini-lo. Escutemos, atentos, o longínquo concerto da Criação.
No amanhecer da Natureza terrestre, já os sóis esplendiam, de há muito, na amplidão dos céus, a gravitarem harmônicos em suas órbitas, sob a regência da mesma lei universal que ainda hoje os rege. Era o primeiro dia da Terra. Solidões oceânicas, tempestades ígneas, rupturas formidáveis de águas e nuvens viram chegar-lhes, alfim, uma paz desconhecida. Raios de ouro atravessaram as nuvens; um céu azul tonalizou a atmosfera; um belo leito de púrpura se ofereceu ao Sol nesse dia. Então, já não eram dias e anos a contar, pois períodos imensos, incalculáveis, já lhe haviam coberto o berço. Os astros são jovens, ainda quando miríades de gestações tenham sucumbido. As ilhas surgiram, então, do seio das ondas e a primeira verdura estendeu pelas praias o seu manto virginal. Muito tempo depois, das galhadas vindes rebentaram flores, de cujos lábios entreabertos se exalavam perfumes. Mais tarde, no bojo profundo das florestas repercutiu o canto das aves e os hóspedes fabulosos dos mares primitivos cruzaram-se no reino ondulante. Sucessivamente, a Terra se dava aos espasmos da vida, animada pelo sopro imortal, vendo luzes e sombras perpassarem-lhe a face. Suponhamos, um momento, que a força orgânica, que hoje se transmite de geração a geração, tenha aparecido como uma resultante natural e inevitável das condições fecundas em que se achava a Terra quando soou a era da vida; suponhamos as primeiras células orgânicas diversamente constituídas, formando tipos primordiais distintos, ainda que simples, pobres, grosseiros, sejam as cepas de sucessivas variedades; suponhamos, enfim, que todas as espécies vegetais e animais, inclusive a humana, sejam o resultado de transformações lentas, operadas sob condições progressivas do planeta, e perguntemos em que, e como, pode essa teoria nulificar a necessidade dum criador e organizador imanente? Quem deu essas leis ao Universo? Quem organizou essa fecundidade? Quem imprimiu à Natureza essa tendência perpetuamente progressiva? Quem deu aos elementos materiais a faculdade de produzir ou de receber a vida? Quem concebeu a arquitetura desses corpos animados, desses edifícios maravilhosos, nos quais todos os órgãos tendem a um mesmo fim? Quem presidiu à conservação dos indivíduos e das espécies na trama inimitável dos tecidos, dos arcabouços, dos mecanismos – pelo dom previdente do instinto, por todas as faculdades, enfim, que possuem respectivamente todos os seres vivos e cada qual de acordo com o seu papel no cenáculo do mundo? Numa palavra: – se a força vital é uma força da mesma natureza das forças moleculares, insistamos no perguntar: – quem é o seu autor? Seria por não haver esse autor fabricado tudo com as próprias mãos, que haveríeis de o negar?
De boa fé, supondes que, se em lugar de escrever letra a letra, palavra a palavra, esta obra e enviá-la à Livraria Acadêmica, que a confiou a um tipógrafo; o qual, por sua vez, entregou-a ao paginador, que, por sua vez, a confiou aos contra-mestres e aprendizes, etc.; e depois, ainda me obrigou a corrigir provas – sem falarmos na escolha do papel, do formato, número de páginas, encadernação, tudo enfim que representa a fatura de um livro; – supondes, repito, que, depois de haver o livro passado por tantos trâmites, deixasse eu de ser o seu legítimo autor, bastando apenas querê-lo para que o plano instantaneamente se completasse? Acreditais que, por haver simplesmente coordenado certas regras, em virtude das quais a idéia expressa em tinta, papel, chumbo; – agentes inertes e cegos, atuados sob a minha vigilância constante – se materializou em parte, tão invisivelmente quanto me eclodiu do cérebro, me tenha destituído de legítima autoria desta obra? Por mim, senhores materialistas, ficaria muito satisfeito só com o poder evitar a revisão das provas, que, já o dizia Balzac, é o suplício infernal dos escritores. E se algum pândego de mau gosto apregoasse pelas ruas de Paris que meu livro se fizera por si mesmo, eu haveria de rir à vontade e não deixaria de interessar-me por um tão precioso privilégio.
Fosse-me permitido o paralelo entre o livro da Natureza e o meu, e creio que faria coisa assim como comparar uma boneca mecânica à Vênus de Milus, viva, ou, então, as rodas do relógio apresentado a Carlos Magno pelo califa Haron-al-Raschid, ao mecanismo do sistema universal.
Todavia, não sereis vós quem há de elevar meu trabalho às alturas da Criação natural. Se a bonequinha mais insignificante e o mecanismo mais tosco revelam a Voltaire a existência de um ou de vários fabricantes, a que se reduz a negação dos que recusam identificar um arquiteto na sublimada harmonia do edifício cósmico?
Assim é que, seja qual for o círculo arbitrário, imaginado em torno da ação sensível do Criador e mediante o qual pretendamos limitar a sua presença, a idéia de Deus nos escapa, sempre, pela tangente, com singular sutileza. Essa propriedade particular da idéia do ser incriado manifesta-se em cada conclusão do nosso arrazoado!
Disseram-nos que Darwin tinha sempre a seu lado um teólogo anglicano incumbido de ajeitar as coisas e manter em perpétuo acordo a consciência do naturalista eminente com as pretendidas conseqüências da sua teoria da seleção natural. De resto, o tradutor feminino da obra teve o cuidado de nos advertir que, “em vão, protesta o autor não ser o seu sistema em nada contrário à idéia de divindade”. Pelo que nos toca, é com íntima satisfação que aqui juntamos às nossas convicções pessoais as do autor da Origem das Espécies: “Não vejo em que possam as teorias expostas nesta obra melindrar os sentimentos religiosos de quem quer que seja. Por demonstrar quanto são inconscientes essas impressões, basta lembrar que a maior das descobertas humanas – a da lei de gravitação – foi hostilizada pelo próprio Leibnitz como subversiva da religião natural. Notável autor sacro escreveu-me, em tempo, ter chegado gradativamente a convencer-se de que a criação divina das formas simples, originais, capazes de por si evoluírem e transformarem-se em formas úteis, era concepção mais justa e compatível com a majestade do Supremo Ser, do que presumir a necessidade de um novo ato criador, a fim de encher os vácuos causados pelo funcionamento das suas próprias leis. Autores eminentes mostram-se inteiramente satisfeitos com a hipótese da criação independente de cada espécie. A meu ver, o que conhecemos das leis impostas à matéria, pelo Criador, está mais de acordo com a formação e extinção dos seres presentes e passados por causas secundárias, semelhantes às que determinam o nascimento e a morte dos indivíduos. Quando encaro todos os seres não como criações especiais, mas como descendentes em linha direta de seres que viveram anteriormente aos depósitos do sistema siluriano, eles me parecem enobrecidos.”
Mais adiante, acrescenta o mesmo naturalista:
“Que interesse nos desperta o espetáculo de uma praia coberta de vegetação, pássaros cantando, insetos voejando, anelídeos ou larvas rastejando no solo úmido, ao pensarmos que todas essas formas elaboradas com tanto cuidado, paciência, habilidade e dependentes umas de outras por uma série de relações complicadas, foram todas produzidas por leis de uma contínua atividade em torno de nós! Essas leis, tomadas em seu mais lato sentido, enumeramo-las aqui: – de crescimento e reprodução; de hereditariedade, quase implícita nas precedentes; de variabilidade sob a ação direta ou indireta das condições exteriores da vida, e do uso ou da falta de exercício dos órgãos; da multiplicação das espécies em sentido geométrico, a produzir a concorrência vital e a eleição natural e, daí, a divergência de caracteres e extinção das formas específicas.
“É assim que, da guerra natural, da fome e da morte, resulta o mais admirável dos efeitos que possamos conceber: – a formação lenta dos seres superiores. No encarar a vida e suas potências animando originariamente algumas ou uma única forma simples, ao influxo do Criador, também há grandeza. E enquanto o planeta seguiu descrevendo os seus círculos perpétuos, de acordo com as leis fixas da gravitação, formas inumeráveis, cada vez mais belas e maravilhosas, se desenvolveram e se desenvolverão, mediante uma evolução sem fim”[ix].
Declarações interessantes que importa registrar, para opô-las aos nossos materialistas.
Pretendem estes que a doutrina da geração espontânea, sustentada pelo Sr. Pouchet e a da origem das espécies, amparada pelo Sr. Darwin, destroem, ambas, a idéia de Deus, e eis que, nem um nem outro admite essa acusação e protestam contra a ilusão dos nossos adversários. Nisto, pois, como em tudo o mais, são eles logrados por uma falsa miragem. Consignemos, assim, como novos dados, este duplo e valioso fato. Em primeiro lugar, os materialistas não têm o direito de se apoiarem na geração espontânea para concluir pela não existência de Deus:
1º -       porque essa geração não está provada, e
2º -       porque, se o estivera, não acarretaria uma tal conseqüência.
Em segundo lugar, não têm o direito de afeiçoar ao seu ponto de vista o sistema do transformismo das espécies, já porque tal sistema não está provado, e já porque ele não afeta a questão dominante das origens da vida.
Se estivesse provado que os vegetais e animais inferiores são formados por geração espontânea, no âmago da matéria inorgânica, haveria grandes probabilidades para crer que assim sucedesse, e com mais forte razão, com a origem das espécies. Os partidários das transformações específicas chegaram mesmo a apoiar-se na doutrina das gerações espontâneas para explicar a existência, ainda hoje, de inúmeras formas inferiores, apesar da tendência das espécies primitivas para se aperfeiçoarem. Por isso, admitem que a Criação não completou a sua tarefa e ainda hoje se verifica nesses extremos. Era a opinião de Lamarck. Cumpre observar que o chefe do movimento atual não compartilha tais idéias e nem mesmo acredita na geração espontânea. “A seleção natural – diz Darwin – não afeta nenhuma lei necessária e universal de desenvolvimento e de progresso. Ela cogita, apenas, de toda e qualquer variação que se apresenta, quando vantajosa à espécie ou aos seus representantes. Tenho apenas necessidade de aqui dizer – declara ele mais além – que a Ciência em seu estado atual não admite, em geral, que seres vivos, ainda hoje, se elaborem no seio da matéria inorgânica.”
Vale notar que não são os sábios, nem mesmo os experimentadores, que proclamam as doutrinas por nós combatidas e sim pretensos filósofos, que, apoderando-se dos estudos científicos daqueles, querem, a toda força, tirar conclusões repudiadas pelos próprios cientistas. Temos o dever de desmascarar-lhes o jogo e demonstrar com a confissão dos próprios experimentadores ilustres, que, se o sistema materialista se obstina ingenuamente a exibi-los de público, assentados no seu palco teatral, não passa isso de mero efeito fantasmagórico, pura ilusão ótica.
Está neste caso um químico ilustre, o Sr. Fremy, que pensou ter notado corpos indecisos na fronteira dos dois reinos (corpos a que chamou semi-organizados) e foi por isso logo inculcado pelos doutrinaristas como porta-bandeira do materialismo para a hipótese da geração espontânea. Pois vejamos o que disse este químico no Instituto:
“Precisarei dizer que recuso, sem hesitação, a idéia de geração espontânea, tomada no sentido de produção de um ser organizado, por mais simples que seja, com elementos que não possuem a força vital. A síntese química permite, sem dúvida, reproduzir grande número de princípios imediatos de origem vegetal ou animal, mas a organização opõe, a meu ver, uma barreira intransponível às reproduções sintéticas. Ao lado dos princípios imediatos, definidos, que a síntese pode formar, há substâncias outras menos estáveis que as precedentes, mas também muito mais complexas quanto à sua constituição e que podem ser designadas sob o título genérico de corpos semi-organizados.
“Esses corpos apresentam-se em conexão com a organização, com a formação dos tecidos, com a produção dos fermentos e a putrefação, quase no mesmo estado da semente ressequida, que leva anos e anos sem apresentar sinais de vegetação, para germinar logo que submetida às influências do ar, do calor e da umidade.
“Eles podem, tal como a semente seca, manter-se em estado de imobilidade orgânica durante muito tempo, mas também podem sair desse estado à custa da própria substância, sob os elementos de organização, desde que as circunstâncias favoreçam o desenvolvimento orgânico.”
Na atualidade não se pode, portanto, cientificamente, depor a favor nem contra a geração espontânea. Essa indecisão forçada longe está de esclarecer a questão da geração primitiva. O mistério permanece tão profundo como ao tempo de Pitágoras. Existem seres vivos na Terra, eis o fato. De onde vêm eles? Conhecemos astrólogos (ainda os há) que escreveram grandes calhamaços para demonstrar que esses seres nos chegaram de outros planetas, na asa de qualquer cometa aventuroso, ou grudados nalgum bojudo aerólito. Conhecemos sonhadores que pretendem hajam os seres aflorado à superfície do orbe terrestre pela fecundação de eflúvios planetários e estelares. Isso, porém, é romantismo. De onde, pois, vêm os seres? Responder-nos-ão que sempre existiram? Essa maneira de esquivar-se à dificuldade teria contra si a agravante da falsidade, de vez que as camadas geológicas nos apresentam, em fases regressivas, as épocas em que surgiram diferentes espécies. Se não existe ser orgânico algum sem filiação, quem formou o primeiro casal de cada espécie? A Bíblia responde que foi Deus. Perfeitamente, mas como? Por uma simples maravilha verbal? Mas, antes de tudo: – Deus fala? – objetam os gracejadores, lembrando-se de que o som não se propaga no vácuo... Súbito efeito da vontade divina? Neste caso, de que forma? Os livros revelados nada têm de explícitos e podemos interpretá-los a favor da geração espontânea (em que pese aos senhores teólogos), tanto como em sentido contrário: “Deus diz: – Que a terra produza a erva tenra, contendo a semente e árvores que dêem fruto, cada qual da sua espécie, e que encerrem consigo a sua semente, a fim de proliferar sobre a terra. E assim se fez. A terra, portanto, produziu a erva contendo a semente de sua espécie, bem assim as árvores, com as suas sementes peculiares à espécie. E Deus viu que isso era bom.
“E da noite da manhã surgiu o terceiro dia. Disse Deus, então: Que as águas produzam animais vivos que flutuem nelas, e aves que voem acima da terra e sob o firmamento do céu. E os abençoou, dizendo: Crescei e multiplicai, povoai as águas do mar e que as aves se multipliquem sobre a terra.
“E da noite e da manhã surgiu o quinto dia. Deus disse, então: Que a terra produza animais vivos, cada qual na sua espécie, os domésticos, os répteis e as feras bravias. E assim foi feito”[x].
Aí temos o que muito se assemelha à geração espontânea. De resto, os Santos Padres professaram essa doutrina. A de Humboldt achou muito curioso que Santo Agostinho, encarando o povoamento das ilhas, após o dilúvio, não se mostrasse muito longe de recorrer à hipótese de uma geração espontânea (Generatio aequivoca apontanea atst primaria). “Se os anjos ou os caçadores do continente – diz esse Pai da Igreja – não transportaram animais a essas ilhas afastadas, é força admitir que o solo os tenha engendrado; mas, neste caso, pergunta-se: – por que encerrar na Arca animais de toda espécie?” Dois séculos antes do bispo de Hipona, vamos encontrar no compêndio de Trogue-Pompéia, já estabelecida a propósito da dissecação primitiva do mundo antigo, do planalto asiático, analogia com a geração espontânea ou, seja, uma conexidade semelhante à que se depara na teoria de Linneu, acerca do paraíso terreal, com as investigações do século 18 sobre a Atlântida fabulosa.
Quanto ao mais, em que pese à ignidade dos seus discursos, estes Mirabeaus da tribuna positivista encontram-se, fundamentalmente, em ignorância e indecisão absolutas, no que concerne à origem da vida. Em vão lançam sobre o mistério o véu dos talvez; em vão se entretêm a imaginar mil metamorfoses.
Quando olhamos para o fundo do vaso, percebemos que o caldo não é tão claro quanto o supõem. De tempos a tempos, sem maior alarde, eles deixam perceber confissões que nos permitimos aqui glosar para edificação do auditório. “Enigma insolúvel – diz B. Cotta – que não podemos deixar de atribuir à potência imperscrutável de um Criador, eis o que se nos afigura sempre a origem da matéria, bem como o nascimento dos seres orgânicos.” Eis uma confissão digna de um espiritualista. Büchner, por outro lado, diz: – “É preciso atribuir à geração espontânea um papel mais importante nos tempos primitivos em relação aos atuais, visto não se poder negar que ela tenha engendrado, então, organismos mais perfeitos do que hoje.” E acrescenta logo: “Verdade é que nos faltam provas e mesmo conjeturas plausíveis dos pormenores desses espécimes, o que estamos longe de negar.” E, voltando à idéia dominante, declara imediatamente que – “seja qual for a nossa ignorância, devemos dizer convictamente que a criação orgânica pode e deve ter ocorrido sem intervenção de qualquer força exterior”.
Carl Vogt, a exemplo dos pré-citados, reconhece que as forças físico-químicas conhecidas não bastam, só por si, para explicar a origem dos organismos. Todo ser vivo, vegetal ou animal, tem sua origem essencial na célula orgânica, ou ovo. Antes de tudo, havemos de admitir que essa origem essencial foi criada, sem sabermos como. Só depois dessa premissa admitida é que começam as demonstrações físico-químicas. “Se admitirmos que isso tivesse sucedido uma única vez – diz o autor das Lições sobre o Homem – mediante ação simultânea de fatores diversos, que não conhecemos, é lícito concluir que houvesse podido formar-se uma célula orgânica a expensas dos elementos químicos, e torna-se evidente que a mais ligeira modificação devesse determinar imediata modificação no objeto produzido, isto é, na célula. Mas, como não podemos admitir que, sobre toda a superfície terrestre, as mesmas causas tenham atuado e ainda atuem nas mesmas condições e com a mesma energia, na criação da célula primitiva; e que, por outro lado, a criação orgânica haveria de estender-se por toda a Terra, conclui-se, necessariamente, que as primitivas células geradoras de organismos deviam ter aptidões de desenvolvimento diferentes.”
Wirchow não explica melhor a questão de origem. “Em certa fase de desenvolvimento da Terra – diz – sobrevieram condições anormais, sob as quais, entrando em novas combinações, os elementos recebiam o movimento vital, donde as condições ordinárias se tornaram vitais.”
Quanto a Carlos Darwin, em vão temos rebuscado a sua opinião, mesmo quanto à origem das espécies. Contenta-se ele com o explicar a variabilidade possível dum certo número de tipos primitivos, e é uma nota no mínimo singular, que, em obra tão volumosa e opulenta sobre a origem dos seres, não se trate absolutamente dessa origem!
O problema é obscuro: a distância do nada a alguma coisa é maior que de alguma coisa a tudo. Seja qual for o sistema a que se filiem nossas crenças íntimas, espiritualistas ou materialistas, todos estamos assomados pelo inexplicável mistério da vida. Porque não reconhecer com franqueza a nossa absoluta ignorância neste particular? E, contudo, essa ignorância deveria moderar um pouco o ardor negativista dos ateus, levando-os a tratar o enigma com menos arrogância. É de convir que, quando nos assoberba uma tal incerteza, ninguém pode cantar vitória. Quiséssemos voltar à questão e fácil nos seria pôr todas as vantagens do nosso lado; poderíamos impor Deus aos adversários, sem que eles pudessem subtrair-se ao seu domínio. Não demonstrando a Ciência que as afinidades da matéria possam criar a vida, o papel do Criador, aqui, fica íntegro como nos tempos de Adão e até dos pré-adamitas. E ainda que o demonstrasse, a origem e o entretenimento da vida deixam ver claramente a existência de uma força criadora, ou seja, por outras palavras, um Deus oculto.
Tal, porém, a força da nossa tática, que jamais queremos abusar de uma posição privilegiada e preferimos combater sempre em paridade de terreno e de armas. Contentamo-nos, assim, em insinuar apenas essa superioridade aos adversários, para sua edificação momentânea e baixando, logo a seguir, das alturas favoráveis ao triunfo, para voltar ao plano da organização da vida, sem nos prevalecermos dos argumentos oferecidos pelo problema dessa mesma vida. Ninguém dirá que, do ponto de vista singular da organização, a existência do Ser inteligente não esteja soberanamente demonstrada. Ainda mesmo que, em virtude de forças desconhecidas, pudesse a vida aflorar espontaneamente em dadas circunstâncias materiais, e ainda que os seres primários se tivessem formado de uma única célula primordial, gerada ao influxo de um conjunto de circunstâncias fortuitas; ainda assim, repetimos, a organização dos seres vivos seria uma prova irrefragável da soberania da força coordenada. Seria, sempre, em virtude de uma que tais leis superiores que a vida haveria de repontar e organizar-se, leis que não traduzem uma causa cega ou louca, mas causa que deve, no mínimo, saber o que faz. Assim, também, chegasse o homem a descobrir o nascimento espontâneo dos infusórios ou dos vermes intestinais, nem por isso teria criado esses ínfimos seres e sim, apenas, constatado que a Natureza opera à sua revelia, com poderes superiores aos seus e mediante processos que, a despeito de sua inteligência, lhe teriam custado séculos a descobrir (dado que lá chegasse).
Mas, finalmente, nem por isso a causa da razão divina restaria mais esclarecida.
Dado o mistério que envolve ainda a origem da vida na Terra, ninguém há com autoridade para declarar proscrita a ação do Criador. Suponha-se que os primeiros seres nascessem no estado de animalidade rudimentar e que as variedades sucessivas fossem a cepa das espécies hoje tão distintas; ou que os primeiros pais de cada família houvessem despertado à voz de comando de um grande mágico, e teremos que estas conjeturas não afetam mais a base da Teologia natural, do que se admitíssemos que essas espécies aqui aportassem trazidas de outros mundos nas asas de qualquer celeste mensageiro. Quanto à formação ou transformação das espécies, não está por sua vez melhor conhecida que a origem da vida, qual o confessa Ch. Lyell: “O que sabemos da Paleontologia é nada em comparação com o que resta a aprender.”
Examinemos, agora, com este geólogo eminente[xi], quais os principais caracteres da teoria de Lanck e de Geoffroy Saint Hilaire acerca da progressão e transformação das espécies. Os homens superficiais facilmente imaginam que a Ciência está organizada com regras absolutas e nenhuma dificuldade encontra em sua marcha ascendente. Nada menos exato. Nem mesmo as grandes definições têm caráter absoluto. Os zoólogos, por exemplo, não se entendem sobre os vocábulos espécie e raça. Sucedeu o que Lamarck predissera – declara Lyell –: quanto mais se multiplicam as novas formas, menos nos capacitamos de precisar o que seja uma variedade, ou uma espécie. De fato, zoologistas e botânicos se vêem, não só mais embaraçados que nunca por definir a espécie, como também para certificar se ela realmente existe na Natureza, ou se não passa de simples abstração da inteligência humana. Pretendem uns que ela seja constante dentro de certos limites de variabilidade, restritos e intransponíveis; querem-na outros suscetível de modificações indefinidas e ilimitadas. Desde os tempos de Linneu até o começo deste século, acreditava-se definir suficientemente a espécie, dizendo:
“A espécie compõe-se de indivíduos semelhantes e reproduzindo-se de seres a eles semelhantes”.
Lamarck, tendo reconhecido uma grande quantidade de espécies fósseis, das quais umas eram idênticas a espécies vivas, enquanto que outras não passavam de variedades, aditou o fator tempo à definição de espécie, assim formulando: “Compõe-se a espécie de indivíduos inteiramente semelhantes entre si e reproduzindo-se por seres semelhantes, desde que as condições de vida não experimentem alterações capazes de lhes variar os hábitos, caracteres e formas.” Finalmente, chega ele a concluir que, dos animais e plantas contemporâneas, nem um exemplar existe da criação primordial, sendo todos derivados de formas preexistentes, as quais, depois de haverem reproduzido, por séculos sem conta, seres semelhantes, teriam, finalmente, experimentado variações graduais e conseqüentes a mudanças de clima e do reino animal, adaptando-se às novas circunstâncias. Alguns, entretanto, com o correr dos tempos se afastaram tanto do tipo original, que mereciam ser agora considerados espécie nova.
Em apoio dessa opinião, apresenta o contraste das plantas agrestes com as cultivadas, dos animais selvagens com os domésticos, a lembrar como e quanto se lhes modificam gradualmente a cor, a forma, a estrutura, os caracteres fisiológicos e até os instintos, em presença de novos inimigos e sob a influência de alimentação e regime de vida diferentes.
Lamarck sustenta, não somente que as espécies foram constantemente submetidas a alterações, passando de um a outro período, mas, também, que houvesse um progresso constante do mundo orgânico, desde os primeiros aos hodiernos tempos, dos seres mais simples aos mais complexos, dos mais baixos aos mais altos instintos, e, finalmente, da mais rudimentar inteligência às maiores expressões do racionalismo humano. Para ele, o aperfeiçoamento teria sido moroso e constante, a própria raça humana ter-se-ia, enfim, desgalhado do grupo de mamíferos organicamente mais evoluídos. Um professor da Universidade de Cambridge nos deu um resumo conciso e racional desta teoria[xii].
“Encontramos nos antigos depósitos da crosta terrestre – diz ele – o traço de uma progressão na organização das formas viventes, sucessivas. Podemos notar, por exemplo, a ausência de mamíferos nos grupos mais antigos e as suas raras aparições nos grupos secundários mais recentes. Animais de sangue quente (em grande parte de gêneros desconhecidos) encontram-se bastante espalhados em todas as velhas camadas terciárias e abundam (freqüentemente com formas genéricas conhecidas) nas partes superiores da mesma série; e, por fim, temos que a aparição do homem na superfície do solo é um fato recente.”
Esse desenvolvimento histórico, das formas e funções da vida orgânica em períodos sucessivos, parece-nos indicial de uma evolução gradativa da energia criadora, a manifestar-se por uma tendência progressiva para o tipo mais elevado da organização animal.
Hugh Miller[xiii] também nota o fato extraordinário de ser a ordem adotada por Cuvier, no seu Reino Animal – a que coloca as quatro classes de vertebrados segundo as suas relações mútuas e categóricas – a mesma ordem cronológica que apresentavam. O cérebro, cujo volume em relação ao da medula está na razão de dois para um, é o do peixe, que foi o primeiro a aparecer. Sucedeu-lhe o que apresenta a relação média de dois e meio por um, ou seja, o réptil. Em seguida, vem a relação de três por um, que é a das aves; a média de quatro por um, peculiar aos mamíferos. Por fim, o último, um cérebro cuja relação média é de vinte três por um, o cérebro do homem, que raciocina e calcula.
O cérebro poderia não ser mais que uma florescência da medula espinal. – Nas espécies inferiores (rãs por exemplo) a faculdade de sentir pertence à medula, quanto ao cérebro. Sem dúvida, pode-se fazer sérias objeções à doutrina da progressividade, mostrando algumas plantas e animais menos perfeitos e surgidos posteriormente a espécies mais perfeitas, tais como o embrião monocotiledôneo e os vegetais endógenos, depois do embrião monocotiledôneo e dos vegetais exógenos (o das coníferas de caule glanduloso), bem como a perfeição das mais antigas criptogâmicas, o movimento retrogressivo dos répteis, o aparecimento da boa (jibóia) depois do iguanodonte, etc. Exemplos não faltam, mas, persuadidos de que essa teoria não alcança a nossa tese da presença de “Deus na Natureza”, e simpatizando com ela, em si mesma, nós a sustentaremos. Consideramo-la com Lyell, não apenas útil mas, no estado atual da Ciência, como hipótese indispensável, que, destinada embora a sofrer de futuro muitas e grandes modificações, jamais poderá ser absolutamente aniquilada.
Sem dúvida, poderão julgar paradoxal que os mais firmes sustentáculos da transmutação (Darwin e Hooker, por exemplo) guardem singular reserva quanto à progressão, e que os maiores apologistas desta combatam, não raro com veemência, a transmutação. Não poderão ser verdadeiras e conciliarem-se essas duas teorias? Uma e outra nos representam em definitivo os tipos de vertebrados a elevarem-se gradualmente no curso das idades, a partir do peixe, a mais simples forma, para os mamíferos placentários, até chegar ao último elo da série, aos mamíferos antropóides e, enfim, ao homem. Este último grau afigura-se, portanto, nesta hipótese, uma parte integrante da mesma série contínua de atos desenvolvidos, anel da mesma cadeia, coroamento da obra, por isso que entra na mesma e única série das manifestações da potência criadora.
Passemos agora à teoria da origem das espécies por meio da seleção natural.
Esta teoria nos apresenta grosso modo a ação da Natureza, observada na criação e educação dos animais domésticos. Sabem os criadores que é possível, ao fim de algumas gerações, obter uma nova classe de rebanhos, de chifre curto ou sem chifre, desde que tenham escolhido reprodutores de cornos menos desenvolvidos. Dizem, então, que é assim que opera a Natureza, alterando no curso das eras as condições da vida, os traços geográficos de um país, seu clima, a associação de animais e plantas e, por conseqüência, a alimentação e os inimigos de uma espécie e o seu “modus vivendi”. E assim se vão elegendo certas variedades mais bem adaptáveis à nova ordem de coisas. Dessarte, podem as novas raças suplantar, muitas vezes, o tipo original de sua ascendência.
Lamarck opinou que o pescoço longo da girafa procede de uma longa série de esforços para colher o alimento de árvores cada vez mais altas. Darwin e Wallace limitam-se a conjeturar que, na intercorrência de alguma calamidade sobreviveram os espécimes de pescoço comprido, por lhes ser possível pastarem em sítios inacessíveis aos outros.
Graças a ligeiras modificações, multiplicadas em curso de milhares de gerações e à transmissão, por hereditariedade, das aquisições novas, supõe-se uma divergência cada vez maior do tipo primitivo, até resultar em uma nova espécie, ou em um novo gênero, se mais longo o tempo decorrido. O moderno autor dessa explicação fisiológica da origem das espécies, Sr. Carlos Darwin, expõe ele próprio[xiv], como se segue, os fatos gerais em que se baseia.
Na domesticidade, constata-se uma grande variabilidade, que parece devida ao fato de ser o sistema reprodutor muitíssimo sensível às mudanças de condições de vida, deixando de reproduzir exatamente a forma matriz. A variabilidade das formas específicas é governada por um certo número de leis muito complexas, tais como o uso ou a falta de exercício dos órgãos e a ação direta das condições físicas da vida. Nossas espécies domésticas sofreram modificações profundas, que se transmitiram por hereditariedade, durante período assaz longos. Assim, também, enquanto se mantiverem as mesmas condições de vida por períodos longos, poderemos admitir possa manter-se e transmitir-se uma modificação já adquirida durante uma série quase infinita de graus genealógicos. Por outro lado, está provado que a variabilidade, uma vez começando a manifestar-se, não cessa totalmente de operar, visto como novas variedades ainda se verificam, de tempos a tempos, entre as nossas espécies domésticas mais antigas.
Não é, porém, o homem que produz a variabilidade. Ele apenas expõe, e muitas vezes sem desígnios, os seres orgânicos a novas condições de vida. Então, a Natureza, agindo sobre o organismo, produz variações. Podemos escolher, então, essas variedades e as acumular na direção que nos prouver. Assim, adaptamos animais ou plantas às nossas conveniências e até aos nossos caprichos. Tal resultado pode ser obtido sistematicamente e mesmo sem objetivo preconcebido, qualquer, bastando que, sem propósito de alterar a raça, se conservem de preferência os indivíduos que, num dado tempo, lhe são os mais úteis. Certo é que se podem transformar os caracteres de uma espécie escolhendo-se de cada geração sucessiva as diferenças individuais; e esse processo seletivo foi o agente principal de produção das raças domésticas, mais distintas e mais úteis. Os princípios que atuaram com tanta eficácia, no estado de domesticidade, podem, igualmente, operar no estado de natureza. A conservação das raças e dos indivíduos favorecidos na luta perpetuamente renovada com o meio ambiente, é fator poderosíssimo, e sempre ativo, de seleção natural.
A concorrência vital é uma conseqüência necessária da multiplicação, em razão geométrica mais ou menos elevada, de todos os seres organizados. A rapidez dessa progressão está provada não só pelo cálculo, como pela pronta multiplicação de muitos animais e plantas durante uma série de estações particulares, ou quando se aclimatavam em novas regiões. O número dos indivíduos que nascem excede sempre o dos que podem viver.
Um grão na balança pode determinar a variedade que deve crescer e a que haja de diminuir. Como os indivíduos da mesma espécie são os que mais concorrem entre si, em todos os sentidos, a luta torna-se para eles, em regra, mais severa. Ela o é quase tanto entre as variedades da mesma espécie, e grave, ainda, entre as espécies do mesmo gênero. Mas a luta também pode existir, muitas vezes, entre seres muito afastados na escala da Natureza. A mais leve vantagem adquirida por um indivíduo, em qualquer idade ou estação, sobre o seu concorrente, ou uma melhor adaptação ao meio físico ambiente, o mais insignificante aperfeiçoamento, enfim, fará pender a concha da balança.
Vantagens aparentemente medíocres podem acarretar essa variação crescente. Entre animais de sexos distintos, diz o naturalista, haverá guerra, as mais das vezes entre machos, para posse da fêmea. Os indivíduos mais vigorosos e os que lutaram com melhor êxito contra as condições físicas ambientes, hão de deixar uma progenitura mais numerosa. Mas, o seu êxito também dependerá, muitas vezes, dos meios de defesa de que disponham, ou de sua mesma beleza e, ainda neste caso, a mínima vantagem lhes granjeará a vitória.
Uma vez admitida a variabilidade, bem como a existência de um poderoso agente sempre pronto a funcionar, chegaremos a concluir, facilmente, que variações algo úteis ao indivíduo em suas relações vitais possam ser conservadas, transmitidas e acumuladas? Se o homem pode, com paciência, escolher as variações que lhe sejam mais úteis, porque deixaria a Natureza de escolher as variações proveitosas aos seus produtos sujeitos a condições mutáveis de existência? Que limites poderíamos atribuir a esse poder, quando ele opera mediante períodos longos e escruta, rigorosamente, a estrutura, toda a organização e os hábitos de cada criatura, por favorecer o prestável e rejeitar o inútil? Parece não haver limite algum a esse poder, cujo efeito é a adaptação lenta e admirável de toda a forma às mais complexas relações da vida.
Cada espécie, dada a progressão geométrica de reprodução que lhe é peculiar, tende a aumentar desordenadamente e, multiplicando-se os descendentes modificados de cada espécie, tanto mais quanto se diversificam, nos hábitos e na estrutura, a lei de seleção natural apresenta, por sua vez, uma tendência constante para conservar os descendentes mais divergentes, de qualquer espécie.
Daí se segue que, durante o curso perseverante de sucessivas modificações, as mais leves diferenças características das variedades de uma espécie tendem a aumentar e atingir as grandes diferenças que caracterizam espécies do mesmo gênero. Variedades novas e mais perfeitas suplantarão e exterminarão inevitavelmente as mais antigas, as menos perfeitas e intermediárias, e, daí, tornarem-se as espécies mais bem determinadas e mais distintas.
Pode-se objetar que ao presente ninguém percebe tais mudanças.
O teórico responde, porém, que, operando a seleção natural somente por acúmulo de variações favoráveis, leves e sucessivas, não pode produzir grandes alterações instantâneas. Ela opera a passos lentos e curtos. Essa lei natural não existiria, sem dúvida, se cada espécie houvera sido independentemente criada.
O testemunho geológico apóia a teoria da descendência modificada. As espécies novas apareceram lentamente e por intervalos sucessivos no cenário do mundo, e a soma das mudanças efetuadas em tempos iguais é muito diferente nos diversos grupos. A extinção de espécies e de grupos inteiros de espécies, que representou papel tão importante na história do mundo orgânico, é uma série quase inevitável do princípio de seleção natural, pois as formas antigas devem ser suplantadas por novas formas mais perfeitas. Nem as espécies isoladas, nem os grupos de espécies podem reaparecer, uma vez interrompida a cadeia das gerações regulares. A extensão gradual das formas dominantes e a lenta modificação dos seus descendentes concorrem, depois de tantos intervalos de tempo transcorrido, para fazer supor que as formas da vida houvessem mudado simultaneamente no mundo inteiro. O caráter intermediário dos fósseis de cada formação, comparados aos de formação inferiores e superiores, explica-se muito simplesmente pela posição média que eles ocupam na cadeia geológica. O grande fato constatado, de pertencerem todos os seres extintos ao mesmo sistema dos atuais, integrando-se nos mesmos grupos, ou nos grupos intermediários, atesta o parentesco e a descendência original.
O autor invoca também em seu apoio a importância única dos caracteres embriológicos, observando que as afinidades reais dos seres organizados são devidas à hereditariedade e comunidade de origem. O sistema natural é uma árvore genealógica cujos lineamentos precisamos descobrir com o auxílio dos caracteres mais permanentes, por leve que seja a sua importância vital.
Não despreza ele, tampouco, a analogia. A disposição dos ossos é análoga na mão do homem, na asa do morcego, na membrana natatória da tartaruga e na perna do cavalo; o mesmo número de vértebras forma o pescoço da girafa e do elefante. Estes e outros fatos semelhantes explicam-se por si mesmos na teoria da descendência lenta e sucessivamente modificada. A identidade de plano da asa e da perna do morcego, que, no entanto, servem a fins tão diferentes; mandíbulas e patas de caranguejo, pétalas, estame e pistilo de uma flor, explicam-se do mesmo modo pela modificação gradual de órgãos outrora semelhantes nos primitivos antepassados de cada classe.
A falta de exercício, às vezes auxiliada pela seleção natural, tende, amiúde, a reduzir as proporções de um órgão, que a mudança de hábitos ou as condições de vida pouco a pouco tornaram inútil.
Dessarte, é fácil conceber a existência de órgãos rudimentares.
Pode-se, enfim, perguntar até onde se estende a doutrina da modificação das espécies.
Todos os membros de uma classe podem ser religados em conjunto, pelos laços de afinidade e igualmente classificados, em virtude dos mesmos princípios, por grupos subordinados a outros grupos. Darwin não pode duvidar que a teoria da descendência não abranja todos os membros de uma classe. Ele pensa, até, que todo o reino animal descende de quatro ou cinco tipos primitivos, pelo menos, e o reino vegetal de um número igual ou mesmo inferior.
A analogia – acrescenta –, levá-lo-ia um pouco mais longe, isto é, à crença de que todas as plantas e animais descendem de um protótipo único; mas, que a analogia pode ser um guia enganador. No mínimo, a verdade é que todos os seres vivos têm muitos atributos comuns: composição química, estrutura celular, leis de crescimento e faculdade de serem afetados por influências nocivas.
Em todos os seres organizados, tanto quanto podemos julgar pelos conhecimentos atuais, a vesícula germinativa é uma só. De sorte que, cada indivíduo organizado parte de uma mesma origem.
Mesmo que consideremos as duas principais divisões do mundo orgânico, ou sejam os reinos vegetal e animal, vemos que certas formas inferiores apresentam caracteres intermédios assaz pronunciados, a ponto de divergirem os naturalistas na sua respectiva classificação. O professor Cl. Gray notou que “os esporos de muitas algas inferiores poderiam vangloriar-se de ter possuído, de início, os caracteres da animalidade, passando depois a uma vida vegetal equívoca”. Assim, partindo do princípio da seleção natural com divergência de caracteres, torna-se crível que animais e plantas tenham de algum modo derivado de uma forma intermediária. Importa admitir também que, quantos seres lograram viver até hoje, podem descender de uma forma primordial e única. Tal conseqüência porém, funda-se principalmente na analogia e pouco importa seja ou não aceita. Outro tanto não se dá com as grandes classes, tais como articulados, vertebrados, etc., pois aí é nas leis da Homologia e da Embriologia que o autor vai encontrar provas muito especiais de uma descendência única[xv].
Tal a teoria de Darwin, exposta por ele mesmo.
Se, enfim, a nossa legítima curiosidade se atreve a aplicar essa teoria à nossa própria espécie, logo percebemos, num misto de admiração e tristeza, que talvez descendamos dum exemplar de símio desaparecido. Indubitavelmente, nossa dignidade sente-se ofendida diante da só possibilidade de uma tal jerarquia; mas, se observarmos a Natureza, sem idéias preconcebidas, não parece que façamos exceção à lei geral? Muitos de nós preferem descender de um Adão degenerado, antes que de um macaco aperfeiçoado. E contudo, a Natureza não nos consultou a respeito.
Pelo que nos toca, jamais dedicamos algumas horas ao estudo da Embriologia, que não ficássemos assaz impressionados com as suas abscônditas revelações. Jamais pudemos comparar embriões, em fases diferentes, que não víssemos neles um vestígio rudimentar das fases correspondentes, pelas quais a nossa humanidade haveria de ter passado em tempos anteriores.
Os vertebrados superiores revestem, sucessivamente, como no estado de esboço, os principais caracteres das quatro grandes classes do entroncamento, sem contudo passarem pelas formas dos outros troncos zoológicos. Desde o começo de sua existência secreta, a célula germinativa manifesta um sistema de desenvolvimento característico, sem tomar a forma do verme articulado, do molusco, ou do radiário. Sem dúvida, esta sucessão representa uma imagem das fases que, no curso das idades, a mesma classe de animais atravessou sucessivamente, avançando na escala dos seres. Quem já deixou de surpreender-se com a semelhança que o embrião humano oferece, sucessivamente, com o do peixe, do réptil e da ave? A hora presente não seria, pois, o espelho de um passado longínquo?
Não se ousa encarar de frente essa origem e, sem embargo, a questão é assaz importante para merecer um esto de coragem. Examinemos, pois, sob o seu aspecto geral, a posição do homem na sua natureza terrena. Ao terminar este capítulo sobre a origem dos seres, esta perspectiva continuará mostrando-nos um governo intelectual na marcha ascendente da Criação.
A hipótese zoológica que encara o homem como descendente de uma raça símia, antropóide, não é imoral nem antiespiritualística. Os que a abraçaram nestes últimos tempos não o fizeram com o propósito de hostilidade ao Cristianismo e por professarem doutrinas pagãs. Muito ao contrário, fizeram-no a despeito de grandes prevenções, favoráveis à superioridade dos nossos primitivos ancestrais, de quem deveriam considerar-se descendentes abastardados. De resto, não compreendemos como sábios dignos desse nome possam afagar o prazer pueril de fazer fosquinhas ao Cristianismo. Pensamos que a Ciência deve ventilar os seus problemas sem se ocupar, de modo algum, com artigos de fé.
Declaremos, antes de tudo, que a primeira característica do homem é a sua inteligência. Portanto, o seu lugar filosófico não se enquadra nas classificações da História Natural. Por sua perfectibilidade, que se poderá atribuir à linguagem, pela inteligência racional, por suas faculdades espirituais, em suma, o homem domina toda a Natureza terrestre. Seu espírito não incide nos domínios do escalpelo. Seu valor não se afere pelo corpo, pelo esqueleto, pelo fígado ou pelos rins, mas, pelo seu caráter intelectual. Descenda, pois, de uma ou de outra fonte o nosso corpo, isso em nada nos afeta a alma. O mundo da inteligência não é o mundo da matéria. Não somos menores por isso, nem menos puros. Somente por estreiteza de espírito é que intermitimos na filosofia psicológica imaginários temores, suscitados pela ciência zoológica. Se nosso berço terrestre fosse a manjedoura de rústico estábulo, qual o de Jesus, nem por isso nossa vida e nossa missão seriam menos santas e altanadas. A superioridade está em nossas faculdades intelectuais.
“O corpo humano – diz o naturalista inglês Wallace –, estava nu e desprotegido e foi o espírito que o provisionou de vestes, para preservá-lo das intempéries. O homem não teria podido competir em agilidade com o gamo, em força com o touro selvagem, e foi o espírito que lhe deu armas para domar e utilizar esses animais. Ele era menos apto que outros animais para alimentar-se de ervas e frutos, que a Natureza espontaneamente oferecia, e foi essa faculdade admirável que lhe ensinou a governar e adequar a Natureza aos seus fins, dela extraindo o alimento, quando e onde quer.
“Desde o instante em que utilizou a primeira pele na indumentária, a primeira lança na caçada, a primeira semente no plantio, o primeiro tronco na enxertia, uma grande revolução se operou na Natureza, revolução que não tivera símile em qualquer fase da história do mundo, de vez que um ser existia forrado às mutações do Universo; um ser, até certo ponto superior à Natureza, pois possuía os meios de controlá-la, de lhe regular as atividades, e podendo manter-se em harmonia com ela, não modificando a sua forma corporal, mas aperfeiçoando o seu espírito.”
Nisso é que vemos, unicamente, a verdadeira grandeza e dignidade do homem.[xvi]
O lugar anatômico do homem ocupa graus superiores ao em que se assenta o chimpanzé; a diferença entre os cérebros do negro e do primata não é maior que a que separa o chimpanzé do saju e, sobretudo, dos lemurianos. Depois do chimpanzé (trogloditas) vêm, na ordem decrescente, o orango (pitécus), o gibon (hilobatos), o seninopíteco, o bugio, etc. Tal como escreveu Geoffroy Saint-Hilaire em polêmica célebre com Cuvier, o homem é a primeira família da ordem dos primatas, estabelecida por Linneu no século passado. Aqui, cabe dizer que falamos do ponto de vista anatômico, unicamente. Qualquer outro raciocínio invalida as classificações precedentes. Somos, porém, de opinião que, quando se faz anatomia, é preciso fazer a anatomia.
No seguinte capítulo, teremos ensejo de prosseguir na comparação do homem com o macaco, pelo estudo do cérebro.
O lugar geológico do homem recua a origem de nossa espécie à época longínqua em que viviam as raças antediluvianas, hoje desaparecidas: o veado de grandes chifres, o urso das cavernas, o rinoceronte ticórnis, o elefante primigêneo, o mamute, a rena fóssil, etc. A mais antiga data conhecida e atestante da presença do homem, é muito posterior à fauna e flora atuais. Entretanto, verifica-se não existirem já, em nossos dias, umas tantas espécies contemporâneas do homem. Os fósseis humanos encontrados nos arrecifes coralíneos da Flórida, nas cavernas do Languedoc e da Bélgica, o esqueleto exumado nos arredores de Dusseldorf, o crânio da caverna de Êngis, o de Barreby, na Dinamarca, o homem fóssil de Puy e de Natchez, no Mississipi, os restos humanos em Loes, indiciam nas variedades humanas primitivas um estado de manifesta inferioridade, aproximando-as singularmente dos selvagens contemporâneos e mesmo dos símios antropóides. Hoje ninguém contesta a existência do homem anterior ao período glaciário e desde o começo da época quaternária.
O lugar arqueológico do homem concorda com os precedentes, a favor da teoria progressiva. Quem duvidaria, hoje, da idade da pedra e do bronze, pelas quais transitou a Humanidade antes que inventasse qualquer arte ou indústria, cujos vestígios se encontram por toda a parte? Que ancianidade poderíamos atribuir a esses períodos? A idade da pedra, na Dinamarca, coincidia com o período da primeira vegetação, seja a dos pinheiros da Escócia, e, em parte, com a segunda vegetação – a do carvalho. A idade do bronze desenrolou-se durante a época do carvalho, pois foi nas camadas da turfa, onde abunda o carvalho, que se encontraram espadas e escudos desse metal. Antes dele não havia faias. A idade do ferro, menos pristina, corresponde à bétula. Quanto tempo duraria a primeira idade? Sendo o bronze um composto de mais ou menos nove partes de cobre e uma de estanho, o aparecimento dos primeiros utensílios denota uma indústria não já elementar. A fusão dos minerais, a decoração lenta dos objetos moldados, só poderiam ser conseguidas depois de longos tateamentos.
A que época devemos atribuir as cidades lacustres da Suíça e as quarenta mil estacas de Wangen? As escavações nos têm revelado vinte povoações no lago de Genebra, doze no de Neufchâtel, dez no de Bienne, contemporâneas das idades da pedra e do bronze.
As da Irlanda (Crammoges) parecem provir da mesma época. Essas povoações castoreanas deviam oferecer alguma semelhança com as da Nova-Guiné, descritas por Dumont d’Urville. Os ossos encontrados por Lartet na caverna de Aurignac são contemporâneos das hienas das cavernas e do rinoceronte de narinas separadas.
Foi muito tempo depois que Tebas e Mênfis, capitais do alto e baixo Egito, atingiram o seu grande esplendor e que as quarenta pirâmides foram erigidas, tipificando uma civilização lentamente desenvolvida, com uma forma especial de culto, de cerimônias esplêndidas, um singular estilo de arquitetura e inscrições, barragem de rios, etc. Essas glórias, entretanto, estavam desvanecidas muito tempo antes de Homero. “Foi preciso – diz Lyell – para formação lenta e gradual de raças como a caucásica, a mongol ou a negra, um lapso de tempo bem mais longo que o possível de ser abrangido por qualquer sistema de cronologia popular.”
Ao problema cronológico do aparecimento do homem na Terra, a Ciência nada responde por enquanto. Demais, se o homem não apareceu espontaneamente, tal data não existe. Quanto aos vestígios de humanidade, ou do homem em si mesmo, as opiniões (pois que se não trata, no caso, senão de opiniões) são vagas quão variáveis. Um tijolo de carvão encontrado entre Assouan e Cairo, a uma profundidade de 18 metros, contaria treze mil anos de existência, admitindo-se um aumento de 15 centímetros por século, no depósito de vasa, no delta do Nilo. A estimativa mais baixa do prazo necessário a formar o delta do Mississipi é de cem mil anos.
O esqueleto humano encontrado perto de Nova-Orleans, a 5 metros de profundidade e sob uma camada de quatro florestas extintas, não contaria menos de cinqüenta mil anos, na opinião do Dr. Dower (é uma cifra exagerada, ao nosso ver). Agassiz calculou que a formação dos recifes de coral da Flórida representa cento e trinta e cinco mil anos. Os sílex talhados e recolhidos em diversas regiões do globo, particularmente no vale do Somme, parece terem servido de armas a uma raça distanciada de cem séculos.
A Arqueologia concorda com os historiadores e poetas da antigüidade, quais Heródoto, Diodoro, Éschylo Vitrúvio, Xenóphontes, Plínio, no concernente ao primitivismo bárbaro da raça humana e à sua predileção pelas cavernas. Mas, esse estado nós o podemos considerar fora dos domínios históricos e a cronologia, que remonta à época já misteriosa das grandes migrações arianas, a mais de cem séculos pretéritos, mergulha em noite profunda, quando tenta sondar a nossa verdadeira origem.
Tudo quanto podemos afirmar é que a Humanidade é muito mais antiga do que se supôs até agora, tendo começado por graus inferiores, antes que se elevasse à noção de justiça e de moral. Se nos fora permitido remontar a essas épocas, não poderíamos reconhecer a civilização da nossa era na caligem das idades bárbaras, quando a inteligência em seus primórdios esforçava por desprender-se das possantes constrições da matéria.
Preferimos confessar essa ancianidade e essa possível origem da nossa espécie, sem escrúpulos para com o Espiritualismo e sem acompanhar o mau exemplo dos que intrometem as crenças religiosas a propósito de tudo, e mesmo sem propósito. Constatamos os fatos e a nossa ignorância, com sincera franqueza, persuadidos de que não se podendo antepor duas verdades entre si, a Ciência da Natureza não pode afetar a causa do Ser supremo. Como diz Helmholtz, os homens costumam medir a grandeza e a sabedoria do Universo pela duração e vantagem que daí lhes advêm; mas a história dos séculos transcorridos nos mostra quão insignificante é o período do advento da existência humana, em relação com a idade do planeta.
A Ciência não admite de bom grado a aparição miraculosa do primeiro casal humano. Diz Carlos Lyell que “se a fonte original da espécie humana tivesse sido realmente dotada de faculdades intelectuais superiores de natureza perfectível, como a de sua posteridade; se a Ciência lhe tivesse sido inspirada, o progresso atingido seria simplesmente muito mais expressivo. No curso dos evos teria havido tempo de realizar conquistas inimagináveis e os mais diferentes caracteres teriam sido impressos nos utensílios que ora procuramos interpretar. Nos areais de Saint-Acheul, como na porção de leito do Mediterrâneo aflorada nas costas da Sardenha, ao invés da mais grosseira cerâmica e dos sílex de feitura tão defeituosa e incompleta, que mal indiciam ao observador bisonho um esforço manual voluntário, encontraríamos esculturas superiores às obras-primas de Fídias e Praxiteles, caminhos de ferro e telégrafos nos quais os nossos engenheiros colheriam inestimáveis apontamentos; microscópios e telescópios aperfeiçoados como os não conhecemos na Europa e inúmeras provas, outras, de perfeição artística e científica, que o nosso século 19 ainda não logrou testemunhar. Em vão esgotaríamos a imaginação para adivinhar a utilidade de relíquias que tais. Talvez maquinaria de locomoção aérea ou destinada a cálculos aritméticos, aparelhos desproporcionados às necessidades e quiçá à concepção dos matemáticos vivos.”
Esta explicação física da origem das espécies não arrebata o cetro das mãos do Governador do mundo. Já assinalamos acima a declaração de Darwin a favor do sentimento religioso e parece-nos que, sobre as conseqüências imediatas de qualquer doutrina, devemos reportar-nos antes à opinião do mestre que à dos discípulos. Carlos Lyell emite os mesmos conceitos, citando a seguinte declaração do geólogo Asa Grei, em que este evidencia claramente que a doutrina da variação e da seleção natural não tende a destruir os alicerces da Teologia natural e que a hipótese da derivação das espécies em nada contraria qualquer dos sãos princípios da História Natural.
“Podemos imaginar que os acontecimentos e em geral as operações da Natureza ocorrem, simplesmente, em virtude de forças comunicadas desde o início e sem qualquer ulterior intervenção, ou podemos admitir tenha havido, de tempos em tempos, e somente de tempos em tempos, uma intervenção da Divindade. E podemos, enfim, supor ainda que todas as mudanças produzidas resultem da ação metódica e constante, mas, infinitamente variada, da causa inteligente e criadora.
“Os que pretendem, de um modo absoluto, que a origem de um indivíduo, tanto quanto a de uma espécie ou de um gênero, não se possa explicar senão por ato direto de uma causa criadora, podem, sem renunciar à teoria favorita, admitir a teoria da transmutação, que lhe não é incompatível. O conjunto e sucessão dos fenômenos naturais podem não ser mais do que a aplicação material de um plano preconcebido; e se essa sucessão de fatos pode explicar-se pela transmutação, a perpétua adaptação do mundo orgânico a condições novas deixa, mais valioso que nunca, o argumento de um plano e, conseguintemente, de um arquiteto.”
Parece-nos, com efeito, que o teimo nada de maior tem a ganhar com esta hipótese do que com qualquer outra teoria natural.
Quanto à pecha de materialismo imputada a todas as modalidades da teoria transformista, já vimos mais acima que a teoria da gravitação e grande número de outras descobertas foram averbadas de subversivas da Religião. Mas, onde iríamos parar se houvéssemos de ouvir os lamentos de todos os teologistas sobressaltados?
Longe de possuir tendência materialista, esta hipótese da intermissão na Terra, em épocas geológicas sucessivas, primeiramente da vida, depois da sensação, do instinto e da inteligência dos mamíferos superiores convizinhos da racionalidade e, finalmente, da razão perfectível do próprio Homem, parece-nos, ao invés, o desdobramento de um plano grandioso, apresentando-nos o quadro da predominância crescente do espírito sobre a matéria.
Temos sido assaz prolixos no encarar as relações do homem com os animais que o precederam, sem embargo da névoa de mistério que ainda as envolve. É que acreditamos, com Pascal, essas comparações sempre têm algum valor.
“É perigoso – dizia o autor de Pensamento – demonstrar ao homem o quanto ele se iguala aos animais, sem lhe mostrar ao mesmo tempo a sua grandeza. Perigoso, também, mostrar-lhe a sua grandeza, sem lhe fazer sentir sua baixeza. Mais perigoso, ainda, é deixá-lo na ignorância de ambas.”
Ainda que o problema da antigüidade e origem da espécie humana varie para o geólogo, para o arqueólogo e para o etnólogo, nem por isso deixa de averiguar-se que a Humanidade procede de época muito mais remota do que se pudera crer. Ainda que esse mesmo problema se definisse divergente para a Zoologia ou para a Teologia, não é menos provável, tampouco, que os nossos antepassados foram inferiores a nós e que o progresso se manifestou na Humanidade tal como na escala de toda a Criação. Perguntamos, então, aos espíritos de boa fé: – em que, a crença na ancianidade do homem, e mesmo na sua origem simiesca, colide com a crença num absoluto? Que a vida tenha surgido na Terra, que se tenha desenvolvido mediante leis orgânicas e que, do vegetal ao homem, a criação antidiluviana não tenha formado senão uma unidade, em que pode esta hipótese destruir a ação divina? Aqui, como no que precede, a matéria não obedeceu às suas forças? E a vida dos seres não é uma força especial, regente de átomos, diretora de todos os movimentos? Particularmente, na teoria da seleção natural, não é a força vital que dirige a marcha do mundo? Aqui, como por toda a parte, a matéria não é a escrava e a força a soberana?
Mesmo admitindo-se a mais alta influência dos meios na transformação dos órgãos, essa transformação não será, sempre, o efeito da vida e vida regida pela inteligência e dotada de uma espécie de obediência ativa à lei intelectual do progresso?
Abordando a tese da apropriação dos órgãos às funções que lhes incumbe executar, bem como da construção homogênea de cada espécie, dos dentes aos pés, segundo o seu papel no cenário do mundo, entramos nos domínios da destinação dos seres e das coisas. Nosso 4º livro objetivará este vasto problema.
Assim, em resumo, vimos de demonstrar que, seja do ponto de vista da circulação na matéria dos seres vivos, seja no da origem e da perpetuidade da vida, esta se constitui de uma Força única e central para cada ser, que dispõe a matéria organizável segundo um plano, do qual o indivíduo deve ser a expressão física. Nesta segunda, como na primeira parte, temos refutado todos os pontos dos nossos adversários. Eles não mais sustentam a sua hipótese materialista e, com os seus exageros mais temerários, antes auxiliam a nossa tese, pois conceituando a matéria capaz de tudo fazer, mal se precatam que apenas substituem a idéia da força. Esperamos que esses inconseqüentes negadores fiquem agora mais satisfeitos com este capítulo. E antes de passar ao seguinte, pedimos-lhes notar, para edificação de sua vaidadezinha, que os gregos e o próprio Arístoto lhes marchara à frente, visto que para eles as radicais força e vida eram sinônimos. O filósofo de Stagira já houvera sustentado que – “a alma é a causa eficiente e o princípio organizador do corpo vivo”.
Não vale a pena fazer tão grande alarde de ciência, para ficar abaixo dos Gregos.



Camille Flammarion

Deus na Natureza

Traduzido do Francês
Camille Flammarion - Dieu dans la nature
(1866)





[i]     Lucrèce – De Natura Rerum, parte 5ª, Edição Pongerville.
[ii]    Resumo de A. Grandsagne, segundo os trabalhos de Gassend acerca das descobertas de Herculanum.
[iii]   A origem do homem e dos animais muito preocupou os antepassados. Plutarco conta que alguns filósofos ensinavam que tudo nascia do seio da terra umedecida, cuja superfície enxugada pelo calor atmosférico formara uma crosta, que, rachando-se afinal, franqueava passagem aos germes. Segundo Diodoro da Sicília e Cêlius Rhodiginus, assim pensavam os egípcios. Esta velha nação pretendia ser a mais antiga do mundo e presumia provar com os ratos e rãs, que diziam ver sair do solo da Tebaída quando o Nilo baixava, e que à primeira vista se lhes afiguravam seres semi-organizados. Ovídio assim descreve o fenômeno: – Logo que o Nilo de sete bocas abandona os campos fertilizados com a inundação e volta a encerrar-se no seu leito normal, o lodo depositado e dissecado pelo astro do dia produz numerosos animais, que o lavrador vai encontrando em cada sulco. São seres incompletos, que começam o desabrochar, privados, em sua maioria, de vários órgãos vitais e tendo uma parte do corpo animada e outra formada de grosseira argila. Assim, dizia ele, saíram os homens da própria terra. A opinião mais abaixo exposta, (Parte 4ª) de provir dos peixes o gênero humano, é hipótese das mais antigas. Plutarco e Eusébio nos transmitiram, a respeito, o pensamento de Anaximandro.
[iv]   Ver particularmente La Libre Pensée e o seu poema De Nature Rerum.
[v]    Esta aventura merece ser oferecida aos nossos adversários. Cyrano encontra um homenzinho que lhe fala mais ou menos nestes termos:
     “Reparai, atento, neste solo que pisamos! Não há muito, era ele uma informe e confusa massa, um caos de matéria indefinível, uma pasta negra e viscosa, da qual o Sol se expulgara. Ora, depois que, pelo vigor dos seus raios, ele misturou e condensou essas numerosas nuvens de átomos; depois, digo, que mediante uma longa e poderosa cocção separou, nesta bola, os corpos mais díspares e reuniu os mais símeis, a massa superaquecida transpirou de tal modo que desencadeou um dilúvio de mais de quarenta dias.
     “Da mistura dessas torrentes humorais formou-se o mar, como o atesta o sal nele contido, que deve ser um amálgama de suor, de vez que todo o suor é salgado. Retiradas as águas, ficou ao solo uma borra graxenta e fecunda, na qual, incidindo os raios solares, formou-se uma como ampola que, devido ao frio, deixou de produzir os germes latentes. Ela houve de receber, contudo, uma nova coação, que, retificando-a mediante uma mistura mais perfeita, engendrou a germinação. Mas, o Sol, ainda dessa vez, lhe recusou o crescimento e foi-lhe preciso uma terceira digestão.
     “Uma vez aquecida fortemente, de feição a vencer o frio ambiente, a ampola rebentou e pariu um homem que retém no fígado – sede da alma vegetativa e região de incidência da primeira cocção – a faculdade do crescimento. No coração, sede da atividade e local da segunda cocção, a inteligência e o raciocínio.”
     Assim terminou – prossegue Cyrano – o seu discurso, mas, depois de uma confidência sobre segredos mais íntimos, dos quais retenho uma parte e de outra não me lembro, disse-me ele que ainda três semanas antes, num monte de terra emprenhado pelo Sol, tinha ele mesmo nascido. “Veja este tumor.” E mostrou-me sobre um montículo algo de intumescido e semelhante a uma pupila. “É um nascituro, ou, por melhor dizer, uma matriz que engendra, há nove meses, um conterrâneo, e eu aqui estou para lhe servir de parteira.”
     Nisso, calou-se, ao notar que o terreno em torno estremecia, o que o fez julgar que era chegada a hora do parto.
[vi]   Ela diz: O pastor vai então em seus grandes rebanhos, quatro touros viris imolar prestamente; e outras tantas vitelas, soberbas, que a relva, mansamente, no campo esmaltado, pastavam. E tão logo no céu reponta a luz da aurora, ao inditoso Orfeu oferta o seu tributo e volta, esperançoso, à floresta profunda. Prodígio! o sangue, então, com o seu calor, fecunda Nos flancos animais, um numeroso enxame! Alados turbilhões a jorrar das entranhas, Como nuvens se espalham a zumbir pelos ares, E no tronco vizinho em cachos se penduram.
[vii]   Curso da Faculdade de Ciências, V. A. Revista dos Cursos Científicos, 5 de Dezembro de 1863.
[viii]  Andaram mal em deslocar, assim, a questão: o Sr. Pasteur foi a ponto de, em plena Sorbonne, trovejar as seguintes acusações: Que triunfo para o Materialismo se ele pudesse protestar que se apóia sobre o fato da Matéria, organizando-se por si mesma! A Matéria, que já em si e de si contém todas as forças conhecidas! Ah! se pudéssemos juntar-lhe ainda essa outra força chamada vida e a vida variável em suas manifestações, de conformidade com as nossas experiências! Que pode haver de mais natural que a deificação dessa matéria? Para que recorrer à idéia de uma criação primordial, diante de cujo mistério é força inclinar-nos?”
     O Sr. Pouchet, alarmado com o libelo, replicou judicioso:
     “Afivelar a máscara da Religião, para vencer adversários, é fato insólito e inaudito, quanto impróprio de cátedras científicas. Atribuir aos adversários opiniões que eles sabidamente não possuem é indignidade.” Houve quem dissesse que era em conseqüência de uma ilusão teológica desta espécie que a Academia recusava a geração espontânea. Corre que há uns 60 anos Cuvier, secretário da Universidade, interpelado por um tal se acreditava na geração espontânea, respondeu: – “O imperador não quer”. Oh! libertas libertatum!
[ix]   Da Origem das Espécies. Últimas notas.
[x]    Gênese.
[xi]   Charles Lyell – The Antiquity of Man... A ancianidade do homem provada pela Geologia e anotações sobre a origem das espécies, por variação.
[xii]   Professor Sedgwick’s – Discurse on the Studies of the University of Cambridge, 1850.
[xiii]  Edinburgh – Footprints of the Creator, 1849.
[xiv]  On the Origine of Species by the mean of natural selection.
[xv]  O tradutor francês de Darwin adverte, a propósito da unidade dos centros de criação específica, que seria extremamente rigorista a acepção do termo “paternidade” única, por um só indivíduo, ou casal único.
     “Mais incrível, ainda, supor que toda a forma primordial, o antepassado comum e arquétipo absoluto da criação viva não tivesse sido representado senão por um único indivíduo. De onde teria provindo esse indivíduo único? Seria preciso, depois de eliminar tantos milagres, deixar subsistisse um? Se um tal indivíduo existiu, ele só podia ser o planeta. Nada impede admitir tenha tido esta matriz universal, em uma de suas fases existenciais, o poder de elaborar a vida. Mas, um só ponto da sua superfície teria auferido o privilégio de produzir germes? Ou deveremos crer lhe houvessem estes desabrochado do seio? Todas as analogias levam antes a supor a Terra fecunda em toda a sua superfície; que o seu invólucro aquoso fosse o primeiro laboratório e que inumerável fosse a produção dos germes, sem dúvida semelhantes. Células verminativas, nadando esparsas, em cachos ou em filamentos, nas águas, uma cristalização orgânica e nada mais. Evidentemente, um tipo, uma forma, uma espécie única, mas não um só indivíduo, do qual se formassem sucessivamente todos os organismos.
     Se se admitir a simplicidade desses germes primitivos, reconhece-se que as possibilidades de desenvolvimento deveriam apresentar-se entre um número considerável de seres. Em virtude do grande número de esboços orgânicos, o aperfeiçoamento sucessivo da organização seguindo um certo número de séries típicas, paralelas ou mais ou menos divergentes, nada há de surpreendente no princípio vital repousando em estado latente em cada germe.
     As leis gerais da vida seriam em primeiro lugar fixadas, nesta hipótese discutível, segundo as condições físicas peculiares ao nosso planeta, ao mesmo passo que começasse a divergência dos tipos necessariamente adaptados à diversidade pouco profunda dessas condições. À medida que as raças se houvessem fixado e aperfeiçoado, teriam diminuído de número, ao mesmo tempo em que cada qual visse diminuir seus representantes. A posteridade crescente de um certo número de cepas primitivas deveria, sucessivamente, tomar o lugar das raças que sucumbiam na luta universal, por efeito de inferioridade orgânica relativa.
[xvi]  Grandes homens contemporâneos não compartilham destas idéias e consideram a Humanidade como uma raça degenerada. Permitimo-nos citar aqui como exemplos, que o Sr. Cousin, com quem conversamos ao iniciar esta obra (1865), sustentava essa opinião e o Sr. de Lamartine, a quem propuséramos a mesma questão quando corrigíamos estas provas (1867), encara as raças arianas como tendo sido superiores à sociedade atual. O problema ainda está longe de solução, mas a verdade é que nem por isso a característica do homem deixa de consistir na sua inteligência progressiva.



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