terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

O Céu





SUMÁRIO – As harmonias do mundo sideral – Leis de Képler. – Atração universal. – Coordenação dos mundos e dos seus movimentos. – A força rege a matéria. – Caráter inteligente das leis astronômicas; condições da estabilidade do Universo. – Potência, ordem, sabedoria. – Negação ateísta, inquinações curiosas ao organizador, objeções singulares ao mecânico. – Será verdade que não existe no parque da Natureza sinal qualquer de Inteligência? – Resposta aos julgadores de Deus.
A contemplação da Natureza oferece ao homem culto, incontestavelmente, inefáveis, particulares encantos. Na organização dos seres descobre-se o incessante movimento dos átomos que os compõem, tanto quanto a permuta constante e operante entre todas as coisas.
Justa é a nossa admiração por tudo o que vive na superfície da Terra. O mesmo calor solar, que mantém no estado líquido a água dos rios e dos mares, conduz a seiva à fronde das árvores e faz pulsar o coração dos abutres e das pombas. A luz que espalha a viridência nos prados e nutre as plantas com um sopro impalpável também povoa a atmosfera de maravilhosas belezas aéreas. O som que estremece a folhagem canta na orla dos bosques, ruge nas plagas marinhas. Em tudo vemos, enfim, uma correlação de forças físicas, que abrange num mesmo sistema a totalidade da vida sob a comunhão das mesmas leis. Ora, quanto mais fervente for a nossa admiração pelo radiamento da vida planetária, mais extensiva e aplicável se tornará, em relação aos mundos que aí fulguram acima de nossas cabeças, no cenáculo das noites silenciosas. Esses mundos longínquos que, qual o nosso, se embalam no mesmo éter, sob o império das mesmas energias e das mesmas leis, são igualmente sedes de atividade e vida. Poderíamos apresentar este grandioso e magnífico espetáculo da vida universal como eloqüente testemunho da inteligência, sabedoria e onipotência da causa anônima, que houve por bem reverberar, dos primórdios da Criação, o seu mágico esplendor no espelho da Natureza criada. Mas, não é sob este prisma que desejamos aqui desdobrar o panorama das grandezas celestes. Apenas, para o teatro das leis que regem o nosso mundo, queremos convocar os negadores da inteligência criadora.
Se, abrindo os olhos diante desse espetáculo, eles persistirem em sua negativa, já não teremos como nos eximir de responder-lhes, em consciência, que também duvidaremos de suas faculdades mentais. Porque, para falar com franqueza, a inteligência do Criador nos parece infinitamente mais curta e incontestável que a dos ateus franceses e estrangeiros.
E, como o método positivo consiste em não julgar antes de observar os fatos, corre-nos o dever de examinar primeiro os fatos astronômicos de que falamos e depois da interpretação com que se satisfazem os nossos antagonistas. Se, depois disso, essa sua interpretação satisfizer, subscreveremos de antemão as suas doutrinas; mas, se, ao contrário, revelar-se insensata, temos, como dever de honra e por amor à verdade, de a desmascarar e entregar ao apupo da platéia.
Esqueçamos por momentos o átomo terrestre, no qual o destino nos fixou por alguns dias. Que o nosso espírito se lance ao espaço e veja rolar diante de si o mecanismo gigantesco – mundos e mundos, sistemas após sistemas, na infinita sucessão de universos estrelados. Ouçamos, com Pitágoras, as harmonias siderais nas amplas e céleres revoluções das esferas e contemplemos, na sua realidade, esses movimentos simultaneamente vertiginosos e regulares que enfeudam as terras celestes nas suas órbitas ideais. Observamos que a Lei suprema, universal, dirige esses mundos. Em torno do nosso sol, centro, foco luminoso, elétrico, calorífico do sistema planetário, giram os planetas obedientes. Os mais extraordinários labores do espírito humano deram-nos a fórmula da lei, que se divide em três pontos fundamentais, conhecidos em Astronomia por leis de Képler, operoso sábio que a descobriu graças ao seu gênio, como à sua paciência, e que discutiu opiniaticamente, 17 anos, as observações do seu mestre Ticho-Brahe, antes que distinguisse sob o véu da matéria a força que a rege.
Esses três pontos são:
1º -       Cada planeta descreve em torno do Sol uma órbita elíptica, na qual o centro do Sol ocupa sempre um dos focos.
2º -       As áreas (ou superfícies) descritas pelo raio vetor[i] de um planeta em redor do foco solar são proporcionais aos tempos que levam a descrevê-las.
3º -       Os quadrados dos tempos de revolução planetária, em torno do Sol, são proporcionais aos cubos dos grandes eixos orbitários.
A síntese dessas leis integra o grande axioma que Newton foi o primeiro a formular na sua obra imortal sobre os Princípios.
Nesse livro, ensina-nos ele – como bem adverte Herschel – que todos os movimentos celestes são conseqüências da lei, isto é: – que duas moléculas materiais se atraem na razão direta do volume de suas massas e na inversa do quadrado das distâncias.
Partindo deste princípio, ele explica como a atração exercida entre as grandes massas esféricas, componentes do nosso sistema, é regulada por uma lei cuja expressão é exatamente idêntica, como os movimentos elípticos dos planetas ao redor do Sol e dos satélites ao redor dos planetas, tal como os determinou Képler, se deduzem conseqüentes necessários da mesma lei, e como as próprias órbitas dos cometas não são mais que casos particulares dos movimentos planetários. Passando em seguida às aplicações difíceis, faz-nos ver como as desigualdades tão complicadas do movimento lunar prendem-se à ação perturbadora do Sol, assim como se originam as marés da desigualdade de atração que esses dois astros exercem sobre a Terra e o oceano que a rodeia. E demonstra-nos, enfim, como também a precessão dos equinócios não passa de conseqüência necessária da mesma lei.
Pois é à execução dessas leis que está confiada a harmonia do sistema planetário; é a elas que os mundos devem os seus anos, as suas estações, os seus dias; é nelas que haurem a luz e o calor distribuídos em diversos graus pela fonte cintilante; é delas que derivam a eclosão da vida, a forma e ornamento dos corpos celestes. Sob a ação incoercível dessas forças colossais, os mundos se transportam no espaço com a rapidez do relâmpago e percorrem centenas de mil léguas por dia, sem parar, seguindo estritamente a rota certa e previamente traçada por essas mesmas forças.
Se nos fora dado libertar-nos um momento das aparências, sob cujo império nos acreditamos em repouso no centro do Universo, e se pudéramos abranger num olhar de conjunto os movimentos que animam todas as esferas, haveríamos de ficar surpreendidos com a imponência desses movimentos. Aos nossos olhos maravilhados, enormíssimos globos turbilhonariam rápidos sobre si mesmos, projetados no vácuo a toda a velocidade, quais gigantescas balas que uma força de projeção inimaginável houvesse enviado ao infinito. Admiramo-nos desses comboios ferroviários que devoram distâncias como dragões flamantes e, no entanto, os globos celestes mais volumosos que a nossa Terra deslocam-se com uma rapidez que ultrapassa a das locomotivas tanto quanto a destas ultrapassa a das tartarugas. A terra que habitamos, por exemplo, percorre o espaço com a velocidade de seiscentos e cinqüenta mil léguas por dia. Rodeando esses mundos, veríamos satélites em circulação e a distâncias diferentes, mas adstritos e submissos às mesmas leis. E todas essas repúblicas flutuantes inclinam os pólos alternativamente para o calor e para a luz, a gravitarem sobre o próprio eixo, apresentando, cada manhã, os diferentes pontos de sua superfície ao beijo do astro-rei. Tiram, assim, da combinação mesma dos seus movimentos, a renovação da beleza e da juventude; renovam a fecundidade no ciclo das primaveras, dos estios, dos outonos e dos invernos; coroam de frondes as montanhas onde o vento suspira; refletem no espelho dos lagos a magia de suas paisagens; envolvem-se, às vezes, na lanugem atmosférica, fazendo dela um manto protetor, ou transformando-a em cadinho retumbante de raios e granizos; desdobram por superfícies imensas a força das ondas oceânicas, que, também por si, se alteiam sob a atração dos astros, qual seio ofegante; iluminam crepúsculos com os matizes policrômicos dos ocasos comburentes e fremem nos seus pólos às palpitações elétricas despedidas dos leques de boreais auroras; geram, embalam e nutrem a multidão de seres que as povoam; e renovam o filão da vida desde as plantas fósseis, do passado, até o homem que pensa e sonda o futuro. Todos esses mundos, todas essas moradas do espaço, departamentos da vida, nos apareceriam quais naves bussoladas, conduzindo através do oceano celeste tripulantes que não têm a temer escolhos nem imperícias de comando, nem falta de combustível, nem fome, nem tempestades.
Estrelas, sóis, mundos errantes, cometas fúlgidos, sistemas estranhos, astros misteriosos, todos proclamariam harmonia, seriam todos os acusadores de quantos decretam não passar a força de cego atributo da matéria. E quando, acompanhando as relações numéricas que ligam todos esses mundos ao Sol – qual coração palpitante de um mesmo ser – houvermos personificado o sistema planetário do próprio Sol – foco colossal que a todos absorve na sua esplendente e poderosa personalidade – então, não tardaremos a ver nesse Sol, com o seu sistema, em trânsito pelos espaços infinitos, o atestado de que todas as estrelas são outros tantos sóis, cercados, como o nosso, de uma família que deles recebe luz e vida, e veremos que todas as estrelas são guiadas por movimentos diversos e que, muito longe de ficarem fixas na imensidade, caminham com velocidades terrificantes, ainda mais céleres que as retro mencionadas.
Só então, o Universo inteiro brilhará aos nossos olhos sob o verdadeiro prisma e as forças que o regem proclamarão, com a eloqüência maravilhosamente brutal de fato concreto, o seu valor, a sua missão, autoridade e poder. Diante desses movimentos indescritíveis – inconcebíveis mesmo, poderíamos dizer – que transportam pelos desertos do infinito essa infinidade de sóis; diante dessa catadupa de estrelas do infinito; diante dessas rotas, dessas órbitas imensuráveis, seguidas com a passividade dos ponteiros de um relógio, da maçã que cai, ou da roda do moinho, obedientes à lei da gravidade; diante da submissão dos corpos celestes a regras que a mecânica e as fórmulas analíticas podem traçar de antemão, bem como da condição suprema de estabilidade e duração do mundo, quem ousará negar que a Força não governe, não dirija soberanamente a Matéria, em virtude de uma lei inerente ou afeta à própria Força? Quem pretenderá subordinar a Força à cegueira constitucional da Matéria e afirmar, à maneira retrógrada dos peripatéticos, que ela não passa de atributo oculto, reduzindo-a ao papel de escrava, quando ela se impõe de tal arte e reivindica credenciais de absoluta suserania? Que Deus tal nunca permita. Que sucederia se ela, a Força, deixasse de agir e abdicasse o seu cetro? A só imaginação desta hipótese dissolve a harmonia do mundo e o faz esboroar-se num caos informe, digno resultado, aliás, de tão insensata tentativa.
Leis universalmente demonstradas proclamam a unidade do Cosmos e evidenciam que o mesmo pensamento que regula as nossas marés oceânicas preside às revoluções siderais das estrelas duplas, nos latifúndios do céu. Tais duplos, triplos, quádruplos sóis giram em conjunto, ao redor do centro comum de gravidade, obedecendo às mesmas leis que regem o nosso sistema planetário. Nada mais próprio do que esses sistemas para nos dar uma idéia da escala da construção dos mundos – diz John Herschel.
Quando vemos esses corpos imensos, encasalados, descreverem órbitas enormes, cujo percurso lhes demanda séculos, somos levados a admitir simultaneamente que eles preenchem, na Criação, uma finalidade que nos escapa e que atingimos os limites da humana inteligência para confessar a nossa inópia e reconhecer que a mais fecunda imaginação não pode ter do mundo uma concepção aproximativa sequer, da grandeza do assunto.
Os astrônomos que humildemente remontam ao princípio ignoto das causas não podem eximir-se de considerar nas mãos de um ser inteligente essa atração universal, que rege inteligentemente o Cosmos. “A lei de gravitação – dizia o saudoso diretor do Observatório de Toulouse[ii] – enfeixa implicitamente as grandes leis que regem os movimentos celestes e, por uma dessas coincidências notáveis que são o mais seguro índice da verdade – longe de temer as exceções aparentes, as perturbações dos movimentos normais, antes delas extrai as mais brilhantes confirmações. Assim é que vemos os geômetras modernos explicarem a precessão dos equinócios pela combinação da força centrífuga, oriunda da rotação da Terra, com a ação do Sol sobre o nosso menisco equatorial. Assim é que vemos, ainda, explicar-se a nutação por uma influência análoga, da Lua, sobre a luminescência mesma da Terra e, mais: – as atrações planetárias, a oscilação da eclíptica e do movimento do apogeu solar; do retardamento de Júpiter quando Saturno se acelera, e vice-versa, quando a aceleração se dá em Júpiter, etc. Finalmente, é assim que sabemos por que, sob a influência solar, a média do nosso movimento terráqueo se vai acelerando de século em século e deverá diminuir mais tarde, por que a linha dos nós da Lua perfaz a sua revolução em movimento retrógrado dentro de dezoito anos e por que o perigeu lunar se completa em pouco menos de nove anos, etc.[iii]
Não somente, em resumo, esse princípio notável explica todos os fenômenos conhecidos, como permite, muitas vezes, descobrir efeitos que a observação não indica, de modo que se poderia estabelecer a priori, pela análise, a constituição do mundo e não nos socorrermos da observação senão em alguns pontos de referência, de que se utilizam os geômetras sob a denominação de constantes, nos seus cálculos. – Tudo pois, no Universo, marcha por efeito de uma organização admirável de simplicidade, visto que os movimentos, aparentemente mais complicados, resultam da combinação de impulsos primitivos com uma força única agindo sobre cada molécula material; força única, com a qual, e conseqüentemente, haja de ocupar-se, por assim dizer, o Criador. Mas, também, que desenvolvimento de poder não requer a produção incessante dessas forças, cuja existência não é essencialmente inerente à matéria! Oh! como deve ser vigilante a mão eterna que sabe, a cada momento, renovar tais forças, até nos mais impalpáveis átomos dos inumeráveis astros destinados a povoar as regiões de infinita imensidade. Não será o caso de dizer com o rei-profeta, inclinando-se perante tanta grandeza: Coeli enarrant gloriam Dei?
A partir de Newton e Képler, sabemos que o Universo é um dinamismo imenso, cujos elementos em sua totalidade não cessam de agir e reagir na infinidade do tempo e do espaço, com atividade indefectível. Esta a grande verdade que a Astronomia, a Física e a Química nos revelam nas imponentes maravilhas da Criação.
Tal o sublime espetáculo do mundo, tais as leis constitutivas da sua harmonia. Ora, qual a perfídia de linguagem, ou de raciocínio, que os materialistas utilizam para traduzir pró-domo sua esses fatos e concluírem pela ausência de todo e qualquer pensamento divino?
Eis aqui os argumentos inscritos em letras berrantes num catecismo materialista que, por seu colorido de Ciência, se tem imposto a muita gente:[iv]
“Todos os corpos celestes, pequenos ou grandes, se conformam, sem relutância, sem exceções nem desvios, com esta lei inerente a toda a matéria e a toda partícula de matéria, como podemos experimentar a cada momento. É com uma precisão e certeza matemáticas que todos esses movimentos se fazem reconhecer, determinar e predizer. Os espiritualistas vêem nestes fatos o pensamento de um Deus eterno, que impôs à Criação as leis imutáveis de sua perpetuidade. Os materialistas, porém, ao contrário, não vêem nisso senão a prova de que a idéia de Deus não passa de uma pilhéria. Outro fora o caso, se existissem corpos celestes caprichosos ou rebeldes, se a grande lei que os rege não fosse soberana. É fácil (diz Büchner) conciliar o nascimento, a constelação (?) e o movimento dos orbes com os processos mais simples que a matéria de si mesma nos possibilita. A hipótese de uma força pessoal criadora é inadmissível. Por que? Ninguém, jamais, pôde sabê-lo. Os espiritualistas admiram o movimento dos astros, a ordem e harmonia que a eles preside. Ingênuos! No Universo não há ordem nem harmonia e sim, pelo contrário, a irregularidade, os acidentes, a desordem, que excluem a hipótese de uma ação pessoal regida pelas leis da inteligência, mesmo humana.”
Ponderemos: Copérnico publicou Revoluções Celestes, após trinta anos de árduos labores; Galileu só depois de vinte anos fecundou a lei do pêndulo; Képler não levou menos de dezessete para formular suas leis e Newton, já octogenário, dizia não ter ainda chegado a compreender o mecanismo dos céus; e, depois disso, vêm propor-nos acreditar que essas leis sublimes e que tudo quanto esses gênios possantes mal puderam encontrar e formular não revelam no ascendente que as impôs à matéria, uma inteligência sequer igual à do homem!
E o Sr. Renan escreve então esta frase: “Por mim, penso não haver no Universo inteligência superior à humana.” E ousam compadrinhar-se com acidentes que propriamente o não são, para afirmarem que não existe harmonia na construção do mundo.
Que seria, então, preciso para vos satisfazer, senhores criticistas de Deus?
Vamos dizê-lo: primeiro, que não houvesse espaço (!) ou que esse espaço fosse menos vasto, visto haver, decididamente, muito espaço no infinito: “se houvéramos de atribuir a uma força criadora individual – diz Büchner – a origem dos mundos para habitação de homens e animais, importaria saber para que serve esse espaço imenso, deserto, vazio, inútil, no qual flutuam planetas e sóis? Porque os outros planetas do sistema não se tornaram habitáveis para o homem?” Na verdade, formulais uma pergunta bem simples. E aí temos como esses senhores se dão à fantasia de declarar inútil o espaço, a querer que todos os globos se comuniquem entre si. O caricaturista Granville já tivera a mesma idéia, quando representou num dos seus encantadores desenhos os jupterianos em excursão a Saturno, atravessando uma ponte, de charuto à boca. E o anel de Saturno lá está como um grande alpendre, onde os saturninos vão à noite refrescar-se. Se esse é o desejado universo, cujo primeiro resultado seria imobilizar o sistema planetário, mais avisados andariam os inventores dirigindo-se seriamente à Escola de Pontes e Calçadas, antes que à Filosofia.
Que esta, na verdade, nada tem com isso.
Se houvesse um Deus – ajuntam –, para que serviriam as irregularidades e desproporções enormes de volume e distância entre os planetas e o nosso sistema solar? Porque essa completa ausência de ordem, de simetria, de beleza? Havemos de convir que é preciso ser um tanto pretensioso para admirar cenografias de bastidores teatrais e recusar ao mesmo tempo a beleza e a simetria às obras da Natureza. Parece-nos mesmo que é a primeira increpação que se faz neste sentido.
De resto, esses senhores não nos oferecem senão negações. Negação de Deus, da alma, do raciocínio e seus poderes, sempre, e em tudo, negação. Isso é o que propriamente lhes concerne, e nada mais. Sua pretensa consciência científica é simples burla. Nossos espirituosos adversários não raro resvalam no plano raso das puerilidades. Um dentre eles adverte que a luz caminha com a velocidade de 75.000 léguas por segundo, achando que é pouco e que é ridículo para um Criador o não poder acelerá-la. Outro acha que a Lua também não gira suficientemente célere. “A Lua – diz o americano Hudson Tuttle – não gira senão uma vez sobre si mesma, enquanto completa a sua revolução em torno da Terra, de sorte que lhe apresenta sempre a mesma face. Assiste-nos legítimo direito de perguntar porque, pois se houvesse nisso um intuito qualquer, a sua execução deveria ser assinalada.” Na verdade, o Criador foi assaz negligente deixando de admitir esses senhores na intimidade da sua técnica. Já se viu uma coisa assim? Deixá-los em completa ignorância dos fins que se propôs ao fazer rodar tão lerdamente a nossa amável Luazinha!
Mas, de fato: será que Deus não poderia ter tido melhor conduta a benefício de nossa instrução pessoal? Nós! “Por que, perguntamo-nos ainda[v], a força criadora não gravou em linhas de fogo (certo em alemão) o seu nome no céu? Porque não deu aos sistemas siderais uma ordem que nos desse a conhecer, de maneira evidente, sua intenção e desígnios?” Que estúpida divindade!
Com efeito, senhores, sois admiráveis e a vossa maneira de raciocinar iguala à vossa ciência, o que aliás não é pouco.
Que pena não terdes vós mesmos construído o Universo! Sim, porque então teríeis prevenido todos estes inconvenientes...
Mas, dizei-me: estais bem certos de conhecer integralmente a matéria para afirmar que ela substitui Deus, com vantagem?
Será que ela vos explica completamente o estado do Universo?
Que respondeis? – Bem duvida, atada não nos é dado saber ao certo porque a matéria tomou tal movimento em tal momento, mas, a Ciência atada não dispõe a última palavra e não é impossível que ela nos revele um dia a época em que nasceram os mundos.” Tal a definitiva resposta desses senhores. Por ela, ainda se confessam um tanto ignorantes.
Que sucederá, então, quando se compenetrarem de que conhecem tudo, em absoluto? Ó Ciência! senão estes os frutos da tua árvore?
Aqui, é bem o caso de confessar, com o próprio Büchner, que a comumente invocada profundeza do espírito alemão é antes perturbação que profundeza de espírito. “O que os alemães chamam filosofia – acrescenta o mesmo escritor – não é mais que mania de jogar com idéias e palavras, e com o que se atribuem o direito de olhar outros povos por cima dos ombros.”
Não há sabedoria, inteligência, ordem, harmonia no Universo.
Semelhante acusação será mesmo feita a sério?
Por nós, temos que é lícito duvidar.
Em Outubro de 1604, magnífica estrela surgiu de improviso na constelação da Serpente.
Os astrônomos ficaram assaz surpresos, por isso que uma tal aparição parecia contrária à harmonia dos céus. As estrelas variáveis ainda não eram conhecidas. Como, pois, nascera aquela? Fortuitamente? Engendrada ao acaso? Estas as interrogações de Képler, quando sobreveio um pequeno acidente...
“Ontem – disse-o ele –, no curso das minhas elucubrações, fui chamado para o jantar. Minha mulher trousse à mesa uma salada. – Pensas, disse-lhe eu, que, se desde os primórdios da Criação flutuassem no ar, sem ordem nem direção, pratos de estanho, folhas de alface, grãos de sal, azeite e vinagre e pedaços de ovo cozido, o acaso os juntaria hoje para fazer uma salada? – Não tão boa como esta, seguramente – respondeu-me a bela esposa.”
Ninguém ousou considerar a nova estrela como produto do acaso e hoje sabemos que o acaso não tem guarida no mecanismo dos astros. Képler viveu adorando a harmonia do mundo e só como extravagância admitia dúvidas a respeito. Os fundadores da Astronomia – Copérnico, Galileu, Tieha-Brahé, Newton, todos se acordam no mesmo culto de Képler.[vi]
Não são, portanto, os astrônomos que increpam o céu de falta de harmonia.
Ó mundos esplendorosos! sóis do infinito, e vós, terras habitadas que gravitais em torno desses focos brilhantes, cessai o vosso movimento harmonioso, sustai vosso curso. A vida vos irradia da fronte, a inteligência mora em vossas tendas e os vossos campos recebem, dos multifários sóis que os iluminam, a seiva fecunda das existências. Sois levados, no infinito, pela mesma soberana mão que sustenta o nosso globo, mercê da suprema lei que inclina o gênio à adoração da grande causa. Daqui, seguimos os vossos movimentos, mau grado às inomináveis distâncias que nos separam, e observamos que esses movimentos são regulados, qual os nossos, pelas três regras que a genialidade de Képler vingou formular. Do fundo abismal dos céus, vós nos ensinais que uma ordem soberana e universal rege os mundos. Vós nos contais a glória de Deus em termos que deixam a perder de vista os com que a proclamava o rei-profeta, escreveis no céu o nome desse ente desconhecido, que nenhuma criatura pode sequer pressentir. Astros de movimentação maravilhosa, gigantescos focos da vida universal, esplendores do céu! – vós nos fazeis genufletir, como crianças, à vontade divina e os vossos berços balançam confiantes na imensidade, sob o olhar do Onipotente. Percorreis humildemente a rota a cada qual traçada, ó viajores celestes! E desde os mais remotos séculos, desde as idades inacessíveis em que saístes do primitivo caos, eis-vos manifestando a previdente sabedoria da lei que vos conduz... Insensatos! massas inertes, globos cegos, brutos notívagos, que fazeis? Parai, cessai com esse eterno testemunho...
Detende o turbilhão colossal dos vossos cursos múltiplos. Protestai contra a força que vos avassala. Que significa essa obediência servil? Então, filhos da matéria, não será ela a soberana do espaço? Dar-se-á que haja leis inteligentes? Forças diretoras? Nunca, jamais. Laborais num erro insigne, ó estrelas do infinito! sois vítimas do mais ridículo ilusionismo...
Escutai, pois: no fundo dos vastos desertos siderais, dormita obscuro um pequenino globo desconhecido. Não tendes acaso percebido, uma que outra vez, entre as miríades de estrelas que branqueiam a Via-Láctea, uma estrelinha de ínfima grandeza?
Pois bem, essa estrelinha, como vós, é também um sol e em torno dele rolam algumas miniaturas de mundos tão pequeninos que rolariam quais grãos de areia, na superfície de um de vós. Ora, sobre um dos mais microscópicos planos desses microscópicos mundículos, há uma raça de racionalistas e, no seio da raça, um núcleo de filósofos que acabam de declarar positivamente, ó magnificências! – que o vosso Deus não existe.
Soberbos pigmeus levantaram-se na ponta dos pés, pensando ver-vos assim de mais perto. Eles vos acenaram para que vos detivésseis e proclamaram, em seguida, que os ouvísseis e que toda a Natureza estava com eles. Em alto e bom som, proclamam-se os intérpretes únicos dessa Natureza imensa. A lhes darmos crédito, pertence-lhes, doravante, o cetro da razão e o futuro do pensamento humano está em suas mãos. Firmemente convencidos estão eles, não só da verdade, mas, sobretudo, da utilidade de sua descoberta e da benéfica influência resultante para o progresso desta pequena humanidade. Ao demais fizeram constar que todos quantos lhes não compartilhassem a opinião estavam em contradita com a ciência natural e que a melhor qualificação cabível a esses dissidentes retardatários é de ignorantes obcecados. Não vos exponhais, portanto, a serdes tão desfavoravelmente julgadas por esses senhores, ó portentosas estrelas!
Procedei de maneira a distinguir o nosso imperceptível sol, o nosso átomo terrestre, a nossa vermínea racionalidade e, aderindo a esta declaração capital, paralisai o mecanismo do Universo e com ele a dimensão e harmonia; substituí o movimento pelo repouso, a luz pela treva, a vida pela morte e, depois, quando toda a capacidade intelectual for aniquilada, todo o idealismo banido da Natureza, suprimida toda a lei, atrofiada toda a força, o Universo se pulverizará, vós vos dispersareis em pó no bojo da noite infinita, e se o átomo terrestre ainda subsistir, os senhores filósofos, últimos viventes, estarão satisfeitos. Não mais se poderá dizer que haja inteligência na Natureza.



Camille Flammarion

Deus na Natureza

Traduzido do Francês
Camille Flammarion - Dieu dans la nature
(1866)


www.autoresespiritasclassicos.com
 


 
 
 
[i]     Assim se denomina a linha ideal que liga um planeta ao Sol.
[ii]    F. Petit – Traité d’Astronomie, 24º et dernlère leçon.
[iii]   Curioso é que Clairaut, tendo encontrado em seus cálculos um período de dezoito em vez de nove anos, declarasse insuficiente, para este caso, a gravitação inversa ao quadrado da distância e que fosse precisamente um naturalista, Buffon, que, persuadido de que a Natureza não podia ter duas leis diferentes, insistisse com o geômetra para que revisse os seus cálculos. Clairaut, após um novo exame, reconheceu que a primeira assertiva estava errada, pois que havia negligenciado, nas séries, termos indispensáveis.
[iv]   Büchner – Força e matéria.
[v]    Kraft und Steft; 8º.
[vi]   Quanto mais profunda o homem os segredos da Natureza, mais se lhe desvenda a universalidade do plano eternal. “Si stelles, fixae – diz Newton (Phil. nat Principia math, Scholgen) –, sint centra similium systematum, hoec omnia simili consilio constructa suberunt uniuns dominio”. – Cf. também Képler, Harmonices Mundi.

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