SUMÁRIO – As harmonias
do mundo sideral – Leis de Képler. – Atração universal. – Coordenação dos mundos
e dos seus movimentos. – A força rege a matéria. – Caráter inteligente das leis
astronômicas; condições da estabilidade do Universo. – Potência, ordem,
sabedoria. – Negação ateísta, inquinações curiosas ao organizador, objeções
singulares ao mecânico. – Será verdade que não existe no parque da Natureza
sinal qualquer de Inteligência? – Resposta aos julgadores de Deus.
A contemplação da Natureza oferece ao homem culto, incontestavelmente,
inefáveis, particulares encantos. Na organização dos seres descobre-se o
incessante movimento dos átomos que os compõem, tanto quanto a permuta
constante e operante entre todas as coisas.
Justa é a nossa admiração por tudo o que vive na superfície
da Terra. O mesmo calor solar, que mantém no estado líquido a água dos rios e
dos mares, conduz a seiva à fronde das árvores e faz pulsar o coração dos
abutres e das pombas. A luz que espalha a viridência nos prados e nutre as
plantas com um sopro impalpável também povoa a atmosfera de maravilhosas
belezas aéreas. O som que estremece a folhagem canta na orla dos bosques, ruge
nas plagas marinhas. Em tudo vemos, enfim, uma correlação de forças físicas,
que abrange num mesmo sistema a totalidade da vida sob a comunhão das mesmas
leis. Ora, quanto mais fervente for a nossa admiração pelo radiamento da vida
planetária, mais extensiva e aplicável se tornará, em relação aos mundos que aí
fulguram acima de nossas cabeças, no cenáculo das noites silenciosas. Esses
mundos longínquos que, qual o nosso, se embalam no mesmo éter, sob o império
das mesmas energias e das mesmas leis, são igualmente sedes de atividade e
vida. Poderíamos apresentar este grandioso e magnífico espetáculo da vida
universal como eloqüente testemunho da inteligência, sabedoria e onipotência da
causa anônima, que houve por bem reverberar, dos primórdios da Criação, o seu
mágico esplendor no espelho da Natureza criada. Mas, não é sob este prisma que
desejamos aqui desdobrar o panorama das grandezas celestes. Apenas, para o
teatro das leis que regem o nosso mundo, queremos convocar os negadores da
inteligência criadora.
Se, abrindo os olhos diante desse espetáculo, eles
persistirem em sua negativa, já não teremos como nos eximir de responder-lhes,
em consciência, que também duvidaremos de suas faculdades mentais. Porque, para
falar com franqueza, a inteligência do Criador nos parece infinitamente mais
curta e incontestável que a dos ateus franceses e estrangeiros.
E, como o método positivo consiste em não julgar antes
de observar os fatos, corre-nos o dever de examinar primeiro os fatos astronômicos
de que falamos e depois da interpretação com que se satisfazem os nossos
antagonistas. Se, depois disso, essa sua interpretação satisfizer, subscreveremos
de antemão as suas doutrinas; mas, se, ao contrário, revelar-se insensata,
temos, como dever de honra e por amor à verdade, de a desmascarar e entregar ao
apupo da platéia.
Esqueçamos por momentos o átomo terrestre, no qual o
destino nos fixou por alguns dias. Que o nosso espírito se lance ao espaço e
veja rolar diante de si o mecanismo gigantesco – mundos e mundos, sistemas após
sistemas, na infinita sucessão de universos estrelados. Ouçamos, com Pitágoras,
as harmonias siderais nas amplas e céleres revoluções das esferas e
contemplemos, na sua realidade, esses movimentos simultaneamente vertiginosos e
regulares que enfeudam as terras celestes nas suas órbitas ideais. Observamos
que a Lei suprema, universal, dirige esses mundos. Em torno do nosso sol,
centro, foco luminoso, elétrico, calorífico do sistema planetário, giram os
planetas obedientes. Os mais extraordinários labores do espírito humano
deram-nos a fórmula da lei, que se divide em três pontos fundamentais,
conhecidos em Astronomia por leis de Képler, operoso sábio que a descobriu
graças ao seu gênio, como à sua paciência, e que discutiu opiniaticamente, 17
anos, as observações do seu mestre Ticho-Brahe, antes que distinguisse sob o
véu da matéria a força que a rege.
Esses três pontos são:
1º - Cada planeta
descreve em torno do Sol uma órbita elíptica, na qual o centro do Sol ocupa
sempre um dos focos.
2º - As áreas (ou
superfícies) descritas pelo raio vetor[i]
de um planeta em redor do foco solar são proporcionais aos tempos que levam a
descrevê-las.
3º - Os quadrados
dos tempos de revolução planetária, em torno do Sol, são proporcionais aos cubos
dos grandes eixos orbitários.
A síntese dessas leis integra o grande axioma que
Newton foi o primeiro a formular na sua obra imortal sobre os Princípios.
Nesse livro, ensina-nos ele – como bem adverte Herschel
– que todos os movimentos celestes são conseqüências da lei, isto é: – que duas
moléculas materiais se atraem na razão direta do volume de suas massas e na
inversa do quadrado das distâncias.
Partindo deste princípio, ele explica como a atração
exercida entre as grandes massas esféricas, componentes do nosso sistema, é
regulada por uma lei cuja expressão é exatamente idêntica, como os movimentos
elípticos dos planetas ao redor do Sol e dos satélites ao redor dos planetas,
tal como os determinou Képler, se deduzem conseqüentes necessários da mesma
lei, e como as próprias órbitas dos cometas não são mais que casos particulares
dos movimentos planetários. Passando em seguida às aplicações difíceis, faz-nos
ver como as desigualdades tão complicadas do movimento lunar prendem-se à ação
perturbadora do Sol, assim como se originam as marés da desigualdade de atração
que esses dois astros exercem sobre a Terra e o oceano que a rodeia. E
demonstra-nos, enfim, como também a precessão dos equinócios não passa de
conseqüência necessária da mesma lei.
Pois é à execução dessas leis que está confiada a harmonia
do sistema planetário; é a elas que os mundos devem os seus anos, as suas
estações, os seus dias; é nelas que haurem a luz e o calor distribuídos em
diversos graus pela fonte cintilante; é delas que derivam a eclosão da vida, a
forma e ornamento dos corpos celestes. Sob a ação incoercível dessas forças
colossais, os mundos se transportam no espaço com a rapidez do relâmpago e
percorrem centenas de mil léguas por dia, sem parar, seguindo estritamente a
rota certa e previamente traçada por essas mesmas forças.
Se nos fora dado libertar-nos um momento das
aparências, sob cujo império nos acreditamos em repouso no centro do Universo,
e se pudéramos abranger num olhar de conjunto os movimentos que animam todas as
esferas, haveríamos de ficar surpreendidos com a imponência desses movimentos.
Aos nossos olhos maravilhados, enormíssimos globos turbilhonariam rápidos sobre
si mesmos, projetados no vácuo a toda a velocidade, quais gigantescas balas que
uma força de projeção inimaginável houvesse enviado ao infinito. Admiramo-nos
desses comboios ferroviários que devoram distâncias como dragões flamantes e,
no entanto, os globos celestes mais volumosos que a nossa Terra deslocam-se com
uma rapidez que ultrapassa a das locomotivas tanto quanto a destas ultrapassa a
das tartarugas. A terra que habitamos, por exemplo, percorre o espaço com a
velocidade de seiscentos e cinqüenta mil léguas por dia. Rodeando esses mundos,
veríamos satélites em circulação e a distâncias diferentes, mas adstritos e
submissos às mesmas leis. E todas essas repúblicas flutuantes inclinam os pólos
alternativamente para o calor e para a luz, a gravitarem sobre o próprio eixo,
apresentando, cada manhã, os diferentes pontos de sua superfície ao beijo do
astro-rei. Tiram, assim, da combinação mesma dos seus movimentos, a renovação
da beleza e da juventude; renovam a fecundidade no ciclo das primaveras, dos estios,
dos outonos e dos invernos; coroam de frondes as montanhas onde o vento
suspira; refletem no espelho dos lagos a magia de suas paisagens; envolvem-se,
às vezes, na lanugem atmosférica, fazendo dela um manto protetor, ou
transformando-a em cadinho retumbante de raios e granizos; desdobram por
superfícies imensas a força das ondas oceânicas, que, também por si, se alteiam
sob a atração dos astros, qual seio ofegante; iluminam crepúsculos com os
matizes policrômicos dos ocasos comburentes e fremem nos seus pólos às
palpitações elétricas despedidas dos leques de boreais auroras; geram, embalam
e nutrem a multidão de seres que as povoam; e renovam o filão da vida desde as
plantas fósseis, do passado, até o homem que pensa e sonda o futuro. Todos
esses mundos, todas essas moradas do espaço, departamentos da vida, nos
apareceriam quais naves bussoladas, conduzindo através do oceano celeste
tripulantes que não têm a temer escolhos nem imperícias de comando, nem falta
de combustível, nem fome, nem tempestades.
Estrelas, sóis, mundos errantes, cometas fúlgidos,
sistemas estranhos, astros misteriosos, todos proclamariam harmonia, seriam
todos os acusadores de quantos decretam não passar a força de cego atributo da
matéria. E quando, acompanhando as relações numéricas que ligam todos esses
mundos ao Sol – qual coração palpitante de um mesmo ser – houvermos
personificado o sistema planetário do próprio Sol – foco colossal que a todos
absorve na sua esplendente e poderosa personalidade – então, não tardaremos a
ver nesse Sol, com o seu sistema, em trânsito pelos espaços infinitos, o
atestado de que todas as estrelas são outros tantos sóis, cercados, como o
nosso, de uma família que deles recebe luz e vida, e veremos que todas as
estrelas são guiadas por movimentos diversos e que, muito longe de ficarem
fixas na imensidade, caminham com velocidades terrificantes, ainda mais céleres
que as retro mencionadas.
Só então, o Universo inteiro brilhará aos nossos olhos
sob o verdadeiro prisma e as forças que o regem proclamarão, com a eloqüência
maravilhosamente brutal de fato concreto, o seu valor, a sua missão, autoridade
e poder. Diante desses movimentos indescritíveis – inconcebíveis mesmo, poderíamos
dizer – que transportam pelos desertos do infinito essa infinidade de sóis;
diante dessa catadupa de estrelas do infinito; diante dessas rotas, dessas
órbitas imensuráveis, seguidas com a passividade dos ponteiros de um relógio,
da maçã que cai, ou da roda do moinho, obedientes à lei da gravidade; diante da
submissão dos corpos celestes a regras que a mecânica e as fórmulas analíticas
podem traçar de antemão, bem como da condição suprema de estabilidade e duração
do mundo, quem ousará negar que a Força não governe, não dirija soberanamente a
Matéria, em virtude de uma lei inerente ou afeta à própria Força? Quem pretenderá
subordinar a Força à cegueira constitucional da Matéria e afirmar, à maneira
retrógrada dos peripatéticos, que ela não passa de atributo oculto, reduzindo-a
ao papel de escrava, quando ela se impõe de tal arte e reivindica credenciais
de absoluta suserania? Que Deus tal nunca permita. Que sucederia se ela, a
Força, deixasse de agir e abdicasse o seu cetro? A só imaginação desta hipótese
dissolve a harmonia do mundo e o faz esboroar-se num caos informe, digno resultado,
aliás, de tão insensata tentativa.
Leis universalmente demonstradas proclamam a unidade do
Cosmos e evidenciam que o mesmo pensamento que regula as nossas marés oceânicas
preside às revoluções siderais das estrelas duplas, nos latifúndios do céu.
Tais duplos, triplos, quádruplos sóis giram em conjunto, ao redor do centro
comum de gravidade, obedecendo às mesmas leis que regem o nosso sistema
planetário. Nada mais próprio do que esses sistemas para nos dar uma idéia da
escala da construção dos mundos – diz John Herschel.
Quando vemos esses corpos imensos, encasalados,
descreverem órbitas enormes, cujo percurso lhes demanda séculos, somos levados
a admitir simultaneamente que eles preenchem, na Criação, uma finalidade que
nos escapa e que atingimos os limites da humana inteligência para confessar a
nossa inópia e reconhecer que a mais fecunda imaginação não pode ter do mundo
uma concepção aproximativa sequer, da grandeza do assunto.
Os astrônomos que humildemente remontam ao princípio ignoto
das causas não podem eximir-se de considerar nas mãos de um ser inteligente
essa atração universal, que rege inteligentemente o Cosmos. “A lei de
gravitação – dizia o saudoso diretor do Observatório de Toulouse[ii]
– enfeixa implicitamente as grandes leis que regem os movimentos celestes e,
por uma dessas coincidências notáveis que são o mais seguro índice da verdade –
longe de temer as exceções aparentes, as perturbações dos movimentos normais,
antes delas extrai as mais brilhantes confirmações. Assim é que vemos os geômetras
modernos explicarem a precessão dos equinócios pela combinação da força
centrífuga, oriunda da rotação da Terra, com a ação do Sol sobre o nosso
menisco equatorial. Assim é que vemos, ainda, explicar-se a nutação por uma
influência análoga, da Lua, sobre a luminescência mesma da Terra e, mais: – as
atrações planetárias, a oscilação da eclíptica e do movimento do apogeu solar;
do retardamento de Júpiter quando Saturno se acelera, e vice-versa, quando a
aceleração se dá em Júpiter, etc. Finalmente, é assim que sabemos por que, sob
a influência solar, a média do nosso movimento terráqueo se vai acelerando de
século em século e deverá diminuir mais tarde, por que a linha dos nós da Lua
perfaz a sua revolução em movimento retrógrado dentro de dezoito anos e por que
o perigeu lunar se completa em pouco menos de nove anos, etc.[iii]
Não somente, em resumo, esse princípio notável explica
todos os fenômenos conhecidos, como permite, muitas vezes, descobrir efeitos
que a observação não indica, de modo que se poderia estabelecer a priori, pela
análise, a constituição do mundo e não nos socorrermos da observação senão em
alguns pontos de referência, de que se utilizam os geômetras sob a denominação
de constantes, nos seus cálculos. – Tudo pois, no Universo, marcha por efeito
de uma organização admirável de simplicidade, visto que os movimentos,
aparentemente mais complicados, resultam da combinação de impulsos primitivos
com uma força única agindo sobre cada molécula material; força única, com a
qual, e conseqüentemente, haja de ocupar-se, por assim dizer, o Criador. Mas,
também, que desenvolvimento de poder não requer a produção incessante dessas
forças, cuja existência não é essencialmente inerente à matéria! Oh! como deve
ser vigilante a mão eterna que sabe, a cada momento, renovar tais forças, até
nos mais impalpáveis átomos dos inumeráveis astros destinados a povoar as
regiões de infinita imensidade. Não será o caso de dizer com o rei-profeta,
inclinando-se perante tanta grandeza: Coeli
enarrant gloriam Dei?
A partir de Newton e Képler, sabemos que o Universo é
um dinamismo imenso, cujos elementos em sua totalidade não cessam de agir e
reagir na infinidade do tempo e do espaço, com atividade indefectível. Esta a
grande verdade que a Astronomia, a Física e a Química nos revelam nas imponentes
maravilhas da Criação.
Tal o sublime espetáculo do mundo, tais as leis constitutivas
da sua harmonia. Ora, qual a perfídia de linguagem, ou de raciocínio, que os
materialistas utilizam para traduzir pró-domo
sua esses fatos e concluírem pela ausência de todo e qualquer pensamento
divino?
Eis aqui os argumentos inscritos em letras berrantes
num catecismo materialista que, por seu colorido de Ciência, se tem imposto a
muita gente:[iv]
“Todos os corpos celestes, pequenos ou grandes, se
conformam, sem relutância, sem exceções nem desvios, com esta lei inerente a
toda a matéria e a toda partícula de matéria, como podemos experimentar a cada
momento. É com uma precisão e certeza matemáticas que todos esses movimentos se
fazem reconhecer, determinar e predizer. Os espiritualistas vêem nestes fatos o
pensamento de um Deus eterno, que impôs à Criação as leis imutáveis de sua
perpetuidade. Os materialistas, porém, ao contrário, não vêem nisso senão a
prova de que a idéia de Deus não passa de uma pilhéria. Outro fora o caso, se
existissem corpos celestes caprichosos ou rebeldes, se a grande lei que os rege
não fosse soberana. É fácil (diz Büchner) conciliar o nascimento, a constelação
(?) e o movimento dos orbes com os processos mais simples que a matéria de si
mesma nos possibilita. A hipótese de uma força pessoal criadora é inadmissível.
Por que? Ninguém, jamais, pôde sabê-lo. Os espiritualistas admiram o movimento
dos astros, a ordem e harmonia que a eles preside. Ingênuos! No Universo não há
ordem nem harmonia e sim, pelo contrário, a irregularidade, os acidentes, a
desordem, que excluem a hipótese de uma ação pessoal regida pelas leis da
inteligência, mesmo humana.”
Ponderemos: Copérnico publicou Revoluções Celestes, após trinta anos de árduos labores; Galileu só
depois de vinte anos fecundou a lei do pêndulo; Képler não levou menos de
dezessete para formular suas leis e Newton, já octogenário, dizia não ter ainda
chegado a compreender o mecanismo dos céus; e, depois disso, vêm propor-nos
acreditar que essas leis sublimes e que tudo quanto esses gênios possantes mal
puderam encontrar e formular não revelam no ascendente que as impôs à matéria,
uma inteligência sequer igual à do homem!
E o Sr. Renan escreve então esta frase: “Por mim, penso
não haver no Universo inteligência superior à humana.” E ousam compadrinhar-se
com acidentes que propriamente o não são, para afirmarem que não existe
harmonia na construção do mundo.
Que seria, então, preciso para vos satisfazer, senhores
criticistas de Deus?
Vamos dizê-lo: primeiro, que não houvesse espaço (!) ou
que esse espaço fosse menos vasto, visto haver, decididamente, muito espaço no
infinito: “se houvéramos de atribuir a uma força criadora individual – diz
Büchner – a origem dos mundos para habitação de homens e animais, importaria
saber para que serve esse espaço imenso, deserto, vazio, inútil, no qual
flutuam planetas e sóis? Porque os outros planetas do sistema não se tornaram
habitáveis para o homem?” Na verdade, formulais uma pergunta bem simples. E aí
temos como esses senhores se dão à fantasia de declarar inútil o espaço, a
querer que todos os globos se comuniquem entre si. O caricaturista Granville já
tivera a mesma idéia, quando representou num dos seus encantadores desenhos os
jupterianos em excursão a Saturno, atravessando uma ponte, de charuto à boca. E
o anel de Saturno lá está como um grande alpendre, onde os saturninos vão à
noite refrescar-se. Se esse é o desejado universo, cujo primeiro resultado
seria imobilizar o sistema planetário, mais avisados andariam os inventores
dirigindo-se seriamente à Escola de Pontes e Calçadas, antes que à Filosofia.
Que esta, na verdade, nada tem com isso.
Se houvesse um Deus – ajuntam –, para que serviriam as
irregularidades e desproporções enormes de volume e distância entre os planetas
e o nosso sistema solar? Porque essa completa ausência de ordem, de simetria,
de beleza? Havemos de convir que é preciso ser um tanto pretensioso para
admirar cenografias de bastidores teatrais e recusar ao mesmo tempo a beleza e a
simetria às obras da Natureza. Parece-nos mesmo que é a primeira increpação que
se faz neste sentido.
De resto, esses senhores não nos oferecem senão
negações. Negação de Deus, da alma, do raciocínio e seus poderes, sempre, e em
tudo, negação. Isso é o que propriamente lhes concerne, e nada mais. Sua
pretensa consciência científica é simples burla. Nossos espirituosos
adversários não raro resvalam no plano raso das puerilidades. Um dentre eles
adverte que a luz caminha com a velocidade de 75.000 léguas por segundo, achando
que é pouco e que é ridículo para um Criador o não poder acelerá-la. Outro acha
que a Lua também não gira suficientemente célere. “A Lua – diz o americano
Hudson Tuttle – não gira senão uma vez sobre si mesma, enquanto completa a sua
revolução em torno da Terra, de sorte que lhe apresenta sempre a mesma face.
Assiste-nos legítimo direito de perguntar porque, pois se houvesse nisso um
intuito qualquer, a sua execução deveria ser assinalada.” Na verdade, o Criador
foi assaz negligente deixando de admitir esses senhores na intimidade da sua
técnica. Já se viu uma coisa assim? Deixá-los em completa ignorância dos fins
que se propôs ao fazer rodar tão lerdamente a nossa amável Luazinha!
Mas, de fato: será que Deus não poderia ter tido melhor
conduta a benefício de nossa instrução pessoal? Nós! “Por que, perguntamo-nos
ainda[v],
a força criadora não gravou em linhas de fogo (certo em alemão) o seu nome no
céu? Porque não deu aos sistemas siderais uma ordem que nos desse a conhecer,
de maneira evidente, sua intenção e desígnios?” Que estúpida divindade!
Com efeito, senhores, sois admiráveis e a vossa maneira
de raciocinar iguala à vossa ciência, o que aliás não é pouco.
Que pena não terdes vós mesmos construído o Universo!
Sim, porque então teríeis prevenido todos estes inconvenientes...
Mas, dizei-me: estais bem certos de conhecer
integralmente a matéria para afirmar que ela substitui Deus, com vantagem?
Será que ela vos explica completamente o estado do
Universo?
Que respondeis? – Bem duvida, atada não nos é dado
saber ao certo porque a matéria tomou tal movimento em tal momento, mas, a
Ciência atada não dispõe a última palavra e não é impossível que ela nos revele
um dia a época em que nasceram os mundos.” Tal a definitiva resposta desses
senhores. Por ela, ainda se confessam um tanto ignorantes.
Que sucederá, então, quando se compenetrarem de que
conhecem tudo, em absoluto? Ó Ciência! senão estes os frutos da tua árvore?
Aqui, é bem o caso de confessar, com o próprio Büchner,
que a comumente invocada profundeza do espírito alemão é antes perturbação que
profundeza de espírito. “O que os alemães chamam filosofia – acrescenta o mesmo
escritor – não é mais que mania de jogar com idéias e palavras, e com o que se
atribuem o direito de olhar outros povos por cima dos ombros.”
Não há sabedoria, inteligência, ordem, harmonia no Universo.
Semelhante acusação será mesmo feita a sério?
Por nós, temos que é lícito duvidar.
Em Outubro de 1604, magnífica estrela surgiu de
improviso na constelação da Serpente.
Os astrônomos ficaram assaz surpresos, por isso que uma
tal aparição parecia contrária à harmonia dos céus. As estrelas variáveis ainda
não eram conhecidas. Como, pois, nascera aquela? Fortuitamente? Engendrada ao
acaso? Estas as interrogações de Képler, quando sobreveio um pequeno
acidente...
“Ontem – disse-o ele –, no curso das minhas
elucubrações, fui chamado para o jantar. Minha mulher trousse à mesa uma
salada. – Pensas, disse-lhe eu, que, se desde os primórdios da Criação flutuassem
no ar, sem ordem nem direção, pratos de estanho, folhas de alface, grãos de
sal, azeite e vinagre e pedaços de ovo cozido, o acaso os juntaria hoje para
fazer uma salada? – Não tão boa como esta, seguramente – respondeu-me a bela
esposa.”
Ninguém ousou considerar a nova estrela como produto do
acaso e hoje sabemos que o acaso não tem guarida no mecanismo dos astros.
Képler viveu adorando a harmonia do mundo e só como extravagância admitia
dúvidas a respeito. Os fundadores da Astronomia – Copérnico, Galileu,
Tieha-Brahé, Newton, todos se acordam no mesmo culto de Képler.[vi]
Não são, portanto, os astrônomos que increpam o céu de
falta de harmonia.
Ó mundos esplendorosos! sóis do infinito, e vós, terras
habitadas que gravitais em torno desses focos brilhantes, cessai o vosso
movimento harmonioso, sustai vosso curso. A vida vos irradia da fronte, a
inteligência mora em vossas tendas e os vossos campos recebem, dos multifários
sóis que os iluminam, a seiva fecunda das existências. Sois levados, no
infinito, pela mesma soberana mão que sustenta o nosso globo, mercê da suprema
lei que inclina o gênio à adoração da grande causa. Daqui, seguimos os vossos movimentos,
mau grado às inomináveis distâncias que nos separam, e observamos que esses
movimentos são regulados, qual os nossos, pelas três regras que a genialidade
de Képler vingou formular. Do fundo abismal dos céus, vós nos ensinais que uma
ordem soberana e universal rege os mundos. Vós nos contais a glória de Deus em
termos que deixam a perder de vista os com que a proclamava o rei-profeta, escreveis
no céu o nome desse ente desconhecido, que nenhuma criatura pode sequer
pressentir. Astros de movimentação maravilhosa, gigantescos focos da vida
universal, esplendores do céu! – vós nos fazeis genufletir, como crianças, à
vontade divina e os vossos berços balançam confiantes na imensidade, sob o
olhar do Onipotente. Percorreis humildemente a rota a cada qual traçada, ó
viajores celestes! E desde os mais remotos séculos, desde as idades
inacessíveis em que saístes do primitivo caos, eis-vos manifestando a
previdente sabedoria da lei que vos conduz... Insensatos! massas inertes,
globos cegos, brutos notívagos, que fazeis? Parai, cessai com esse eterno
testemunho...
Detende o turbilhão colossal dos vossos cursos
múltiplos. Protestai contra a força que vos avassala. Que significa essa
obediência servil? Então, filhos da matéria, não será ela a soberana do espaço?
Dar-se-á que haja leis inteligentes? Forças diretoras? Nunca, jamais. Laborais
num erro insigne, ó estrelas do infinito! sois vítimas do mais ridículo ilusionismo...
Escutai, pois: no fundo dos vastos desertos siderais,
dormita obscuro um pequenino globo desconhecido. Não tendes acaso percebido,
uma que outra vez, entre as miríades de estrelas que branqueiam a Via-Láctea,
uma estrelinha de ínfima grandeza?
Pois bem, essa estrelinha, como vós, é também um sol e
em torno dele rolam algumas miniaturas de mundos tão pequeninos que rolariam
quais grãos de areia, na superfície de um de vós. Ora, sobre um dos mais
microscópicos planos desses microscópicos mundículos, há uma raça de racionalistas
e, no seio da raça, um núcleo de filósofos que acabam de declarar
positivamente, ó magnificências! – que o vosso Deus não existe.
Soberbos pigmeus levantaram-se na ponta dos pés, pensando
ver-vos assim de mais perto. Eles vos acenaram para que vos detivésseis e
proclamaram, em seguida, que os ouvísseis e que toda a Natureza estava com
eles. Em alto e bom som, proclamam-se os intérpretes únicos dessa Natureza
imensa. A lhes darmos crédito, pertence-lhes, doravante, o cetro da razão e o
futuro do pensamento humano está em suas mãos. Firmemente convencidos estão
eles, não só da verdade, mas, sobretudo, da utilidade de sua descoberta e da
benéfica influência resultante para o progresso desta pequena humanidade. Ao
demais fizeram constar que todos quantos lhes não compartilhassem a opinião
estavam em contradita com a ciência natural e que a melhor qualificação cabível
a esses dissidentes retardatários é de ignorantes obcecados. Não vos exponhais,
portanto, a serdes tão desfavoravelmente julgadas por esses senhores, ó portentosas
estrelas!
Procedei de maneira a distinguir o nosso imperceptível
sol, o nosso átomo terrestre, a nossa vermínea racionalidade e, aderindo a esta
declaração capital, paralisai o mecanismo do Universo e com ele a dimensão e
harmonia; substituí o movimento pelo repouso, a luz pela treva, a vida pela
morte e, depois, quando toda a capacidade intelectual for aniquilada, todo o
idealismo banido da Natureza, suprimida toda a lei, atrofiada toda a força, o
Universo se pulverizará, vós vos dispersareis em pó no bojo da noite infinita,
e se o átomo terrestre ainda subsistir, os senhores filósofos, últimos viventes,
estarão satisfeitos. Não mais se poderá dizer que haja inteligência na
Natureza.
Camille Flammarion
Deus na Natureza
Traduzido do Francês
Camille
Flammarion - Dieu dans la nature
(1866)
www.autoresespiritasclassicos.com
[i] Assim se denomina a linha ideal que liga um
planeta ao Sol.
[ii] F.
Petit – Traité d’Astronomie, 24º et
dernlère leçon.
[iii] Curioso é que Clairaut, tendo encontrado em
seus cálculos um período de dezoito em vez de nove anos, declarasse
insuficiente, para este caso, a gravitação inversa ao quadrado da distância e
que fosse precisamente um naturalista, Buffon, que, persuadido de que a
Natureza não podia ter duas leis diferentes, insistisse com o geômetra para que
revisse os seus cálculos. Clairaut, após um novo exame, reconheceu que a
primeira assertiva estava errada, pois que havia negligenciado, nas séries,
termos indispensáveis.
[iv] Büchner – Força
e matéria.
[v] Kraft
und Steft; 8º.
[vi] Quanto mais profunda o homem os segredos da
Natureza, mais se lhe desvenda a universalidade do plano eternal. “Si stelles,
fixae – diz Newton (Phil. nat Principia
math, Scholgen) –, sint centra similium systematum, hoec omnia simili
consilio constructa suberunt uniuns dominio”. – Cf. também Képler, Harmonices Mundi.
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