segunda-feira, 19 de maio de 2014

Deus na Natureza

SUMÁRIO – Papel da Ciência na sociedade moderna. – Sua potência e grandeza. – Seus limites e tendências a ultrapassá-los. – As ciências não podem dar nenhuma definição de Deus. – Processo geral do ateísmo contemporâneo. – Objeções à existência divina, inferidas da imutabilidade das leis e da íntima união entre a força e a matéria. – Ilusão dos que afirmam ou negam. – Erros de raciocínio. – A questão geral resume-se em estabelecer as relações recíprocas da força e da substância.
O século que vivemos está desde já inscrito com caracteres indeléveis nas páginas da História. A partir dos mais remotos tempos, das velhas civilizações, nenhuma época viu, qual a nossa, esse magnífico despertar do espírito humano, para simultaneamente afirmar os seus direitos e a sua força. O mundo já não é o vale de lágrimas medieval, onde a alma vinha expiar a falta do primitivo pai e, confundindo-se no isolamento e na oração, acreditava conquistar um lugar no paraíso, ciliciando o corpo e cobrindo-se de cinzas.
Os frutos da inteligência já não atestam as longas, abstrusas e infindáveis discussões de estéril metafísica, construídas de palitos e escoradas em sutilezas escolásticas, a que se entregaram cegamente poderosos gênios, consagrando-lhes uma preciosa vida de estudos e despercebidos de assim perderem não apenas o seu tempo, mas o de algumas gerações.
Lá, onde em murados claustros se concentravam monges e oratórios, ouve-se agora o ruído das máquinas, o ranger das engrenagens e o silvo do vapor das caldeiras combustas.
Se as instituições monásticas tiveram o seu papel no período das invasões bárbaras, nem por isso deixou de soar a sua hora extrema, como sucede a todas as coisas perecíveis: o trabalho fecundo do operário e do agricultor substitui a decadência senil pela juvenilidade operosa e fecunda.
No anfiteatro das Sorbonnes, onde se discutiam exaustivamente os seis dias da Criação, as línguas de fogo da Pentecoste, o milagre de Josué, a passagem do Mar Vermelho, a forma da graça atual, a consubstancialidade, as indulgências parciais ou plenárias, etc., etc., e mil assuntos outros difíceis de profundar, vemos hoje instalar-se o laboratório químico, no ambiente do qual a Matéria se faz docilmente pesar e mensurar; a mesa do anatomista, sobre cujo mármore se desvendam o mecanismo orgânico e as funções vitais; o microscópio do botânico, que surpreende os primeiros, oscilantes passos da esfinge da vida; o telescópio do astrônomo, que deixa entrever, para além dos céus transparentes, o movimento majestoso dos sóis gigantescos, regulados pelas mesmas leis que acionam a queda de um fruto; a cátedra de ensinamento experimental, à volta da qual as inteligências populares vêm grupar suas filas atentas.
O próprio globo terrestre transformou-se. Circunavegaram-no, mediram-no, e já não haverá Carlos Magnos que pretendam enfeixá-lo na mão. O compasso do geômetra destituiu o cetro imperial.
Oceanos e mares, em todas as latitudes, fendem-se ao impulso das quilhas levadas por velas pandas ou pela rotação das hélices potentes e trepidantes.
Também – dragão flamívomo – a locomotiva percorre célere os continentes e, graças ao telégrafo, podemos falar de um a outro hemisfério. O vapor deu vida nova e inesperada a inúmeros motores; a eletricidade nos permite auscultar, num momento e de conjunto, as pulsações da Humanidade inteira.
Certo, a Humanidade jamais conheceu fase como esta; jamais se repletou em seu seio, de tanta vida e tanta força; jamais seu coração enviou, com tamanha pujança, a luz e o calor às mais longínquas artérias. Nem nunca o seu olhar se iluminou de um tal clarão. Por mais vastos que se deparem os progressos ainda conquistáveis, nossos descendentes serão sempre forçados a reconhecer que a Ciência deve à nossa época o estribo do seu Pégaso e que, embora engrandecendo-se e vendo o Sol ascender ao zênite, brilhante não lhes fora o dia se o não precedera a nossa aurora.
Mas, o que à Ciência outorga força e poder, convém sabê-lo, é ter por base de estudo elementos determinados, que não abstrações e fantasmas. Assim é que, na Química, ela investe com o volume e peso dos corpos, examina-lhes as combinações, determina-lhes as relações; na Física, investiga-lhes as propriedades, observa-lhes as relações e as leis que as regem; na Botânica, aborda o estudo das primeiras condições da vida; na Zoologia, acompanha as formas existenciais e registra as funções orgânicas peculiares, os princípios da circulação da matéria nos seres vivos, sua manutenção e metamorfoses; na Antropologia, constata as leis fisiológicas em atividade no organismo humano e determina o papel dos diversos aparelhos que o compõem; na Astronomia, inscreve o movimento dos corpos celestes e daí deduz a noção de leis diretivas universais; e na Matemática, finalmente, formula essas leis e reconduz à unidade as relações numéricas das coisas.
Essa exata determinação de objetivo dos seus estudos é que dá valor e autoridade à Ciência. Aí temos como e porque a Ciência se engrandece. Mas, esses títulos também lhe acarretam um imperioso dever. Se, deslembrada dessa condição de poderio ela se desvia desses objetivos fundamentais para divagar no vácuo imaginário, perde simultaneamente o seu caráter e a sua razão de ser.
E, desde então, os argumentos que pretende impor, nesses domínios exorbitantes do seu alcance e finalidades, deixam de ter valor científico, e mais ainda do que isso, porque ela se desqualifica e já não pode reivindicar o nome de ciência. Torna-se, por assim dizer, em soberana que acaba de abdicar e não é mais a ela que se ouve, mas aos sábios que peroram, o que nem sempre é a mesma coisa. E estes sábios, seja qual for o seu valor, já não serão mais intérpretes da Ciência, uma vez operando fora da sua esfera.
Ora, esta é, precisamente, a situação dos defensores do Materialismo contemporâneo, aplicando a Astronomia, a Química, a Física, a Fisiologia, a problemas que elas não podem resolver. E note-se que tais sábios não só constrangem essas ciências a responderem a problemas que lhes escapam à alçada, como ainda as torturam, quais pobres servas, para que confessem a seu mau grado, e falsamente, proposições de que jamais cogitaram. São, assim, inquisidores do fato, e não da palavra. Mas, dessarte, não é a Ciência, é um simulacro de ciência que manejam.
Nas seguintes controvérsias, demonstraremos que esses cientistas se encontram absolutamente fora da Ciência, que se enganam e nos enganam, que os seus raciocínios, deduções e consequências são ilegítimos e que no seu louco amor por essa virginal ciência eles a comprometem simplesmente e chegariam a lhe alienar de todo a estima pública, se não houvesse o cuidado de mostrar que, ao invés da realidade, eles não possuem dela mais que uma ilusória sombra.
A circunstância mais penosa e a razão predominante que nos impelem a protestar contra as explorações de um falso rótulo radicam-se ao fato de estarmos vivendo um tempo em que se sente, ou pelo menos se pressente, universalmente, o papel e a finalidade da Ciência. Compreende-se que fora dela é que não há salvação e que a Humanidade, tanto tempo balouçada no oceano do ignorantismo, só tem um porto a proejar – o da terra firme do saber. Também por isso, o espírito público se volta, convicto e esperançoso, para a Ciência. Tantas provas de seu poder e riqueza tem ele recebido, de um século a esta parte, que se predispôs a acatar-lhe, com simpatia e reconhecimento, todos os ensinos e teorias. Mas, nisso está, precisamente uma armadilha para o Espiritualismo. É que um certo número de cultores da Ciência, que a representam ou que se fazem dela intérpretes, ensinam falsas e funestas doutrinas.
Os espíritos sôfregos e despercebidos, que procuram em seus livros os conhecimentos de que necessitam, absorvem neles um tóxico pernicioso e suscetível de lhes destruir no âmago uma parte dos benefícios do saber.
Eis porque se impõe sobrestar um tão deplorável arrastamento, aliás, tendente a universalizar-se.
Eis porque se torna absolutamente indispensável discutir essas doutrinas e demonstrar que longe estão elas de entrosar na Ciência, com tanto rigor e facilidade, quanto pregoam, mas, ao invés, que são o produto grosseiro de pensamentos sistemáticos, que, perpetuamente voltados sobre si mesmos, têm a ilusão de se crerem fecundados pela Ciência, embora do radioso sol que ela simboliza não hajam recebido mais que um tênue raio desviado de sua direção natural.
Há umas tantas questões profundas que, no curso da vida humana, nas horas de silêncio e solitude, se nos apresentam como outros tantos pontos de interrogação, inquietantes e misteriosos.
Tais os problemas da existência da alma, do seu futuro destino, da existência de Deus e das suas relações com a Criação.
Vastos e imponentes problemas, estes nos envolvem e dominam em sua imensidade, pois sentimos que nos aguardam, e na ignorância deles não poderemos razoavelmente alienar um tal ou qual temor do desconhecido.
Assim é que, já o dizia Pascal, um desses problemas – o da mortalidade da alma – é tão importante, que é preciso haver perdido toda a consciência para ficar indiferente ao conhecimento de si mesmo. O mesmo se poderá dizer quanto à existência de Deus. Quando meditamos essas verdades, ou apenas na possibilidade da sua existência, elas nos aparecem sob aspecto tão grandioso que a nós mesmos interrogamos como podem criaturas inteligentes, seres racionais, pensantes, entregar-se uma vida inteira a interesses transitórios, sem se abstraírem uma que outra vez da sua apatia para atender a essas interrogativas preciosas.
Se é verdade, qual o temos observado, que há neste mundo homens absolutamente indiferentes, que jamais sentiram a magnitude desses problemas, menos não é que eles nos inspiram verdadeira piedade. Aqueles que, no entanto, mais agravam a bruteza da indiferença e, de caso pensado, desdenham alçar-se ao nível destes assuntos importantes, preferindo-lhes os doces gozos da vida material, esses, – declaramo-lo em alto e bom som – nós os deixamos sem pesar, entregues à sua inércia, para considerá-los fora da esfera intelectual.
O problema da existência de Deus é primacial a todos. Nem por outro motivo é que, contra ele, se assestam as principais, as mais possantes baterias do Materialismo que nos propomos combater. Pretende-se provar, com a ciência positiva, a inexistência de Deus e que uma tal hipótese não passa de aberração da inteligência humana. Um grande número de homens sérios, convencidos do valor desses pretensos raciocínios científicos, enfileiraram-se ao redor desses inovadores recidivos, engrossando desmesuradamente as hostes materialistas, primeiro na Alemanha e depois na França, na Inglaterra, na Suíça e na própria Itália.
Ora, nós não tememos dizer que, mestres ou discípulos, quantos se apoiam em testemunhos da ciência experimental para concluir que Deus não existe, cometem a mais grave inconsequência.
Acusando-os dessa erronia, haveremos de justificar-nos, ainda que os incriminados possam, sob outro prisma, ser considerados homens eminentes e respeitáveis. De resto, é mesmo em nome da ciência experimental que vimos combatê-los.
Deixamos de lado toda a ciência especulativa e colocamo-nos, exclusivamente, no mesmo terreno dos adversários.
Não pensamos com Demócrito que, vazar os olhos, para evitar as seduções do mundo exterior, seja o melhor meio de cultivar frutuosamente a Filosofia e, muito pelo contrário, permanecemos firmes na esfera da observação e da experiência.
Nessa posição, declaramos que, por um lado, não se prende imediatamente à existência de Deus, mas, por outro lado, desde que venhamos aplicar ao problema os atuais conhecimentos científicos, longe de conduzirem à negativa, afirmam eles a inteligência e sabedoria das leis da Natureza.
A elevação para Deus, mediante o estudo científico da Natureza, nos mantém em situação equidistante dos dois extremos, isto é: – dos que negam e dos que se permitem definir, simploriamente, a causa suprema como se houveram sido admitidos ao seu concelho. Assim, com as mesmas armas, combatemos duas potências opostas: – o materialismo e a ilusão religiosa.
Pensamos que é igualmente falso e perigoso crer num Deus infantil, quanto negar uma causa primária.
Em vão se nos objetará não podermos afirmar a existência de uma entidade que não conhecemos. Precatemo-nos de presunções que tais. Certo, não conhecemos Deus, mas, sem embargo, sabemos que existe. Também não conhecemos a luz e sabemos que ela irradia das alturas celestes. Tampouco, conhecemos a vida e sabemos que ela se desdobra em esplendores na superfície da Terra.
“Longe estou de crer – dizia Goethe a Eckermann – que tenha uma exata noção do Ser supremo. Minhas opiniões, faladas ou escritas, resumem-se nisto: Deus é incompreensível e o homem não tem a seu respeito mais que uma noção vaga e aproximativa. De resto, toda a Natureza, e nós com ela, somos de tal modo penetrados pela Divindade que dela nos sustentamos, nela vivemos, respiramos, existimos. Sofremos ou gozamos em conformidade de leis eternas, perante as quais representamos um papel ativo e passivo ao mesmo tempo, quer o reconheçamos, quer não. A criança regala-se com o bolo, sem cogitar de quem o fez, o pássaro belisca a cereja, sem imaginar como a mesma se formou. Que sabemos de Deus? E que significa, em suma, essa íntima intuição que temos de um Ser supremo? Ainda mesmo que, a exemplo dos turcos, eu lhe desse cem nomes, ficaria infinitamente abaixo da verdade, tantos são os seus inumeráveis atributos... Como o Ente supremo, a que chamamos Deus, manifesta-se não só no homem como no âmbito de uma Natureza rica e potente quanto nos grandes acontecimentos mundiais, a ideia que dele se faz é, evidentemente, exígua.”
A ideia que os antepassados formavam de Deus, em todas as épocas, sempre esteve de acordo com o grau de ciência sucessivamente adquirido pela Humanidade. Tal como o saber humano, essa ideia é variável e deve, necessariamente, progredir, pois, seja como for, cada uma das noções que constituem o patrimônio da inteligência deve seguir a par com o progresso geral, sob pena de ficar distanciada.
No conjunto de um sistema em movimento, toda a peça que se obstinasse em estacionar recuaria realmente. Em nossos dias, já não é admissível dizer-se, dogmaticamente, que tal ou tal noção é perfeita e deve guardar o ataque da infalibilidade: ou se faz, ou se não faz parte da marcha progressiva do espírito. No primeiro caso, importa acompanhá-lo integralmente e, no segundo, há que confessar-se em atraso. Eis o que precisa ficar bem claro.
Digamo-lo francamente: em ciência experimental, Deus não pode ser admitido a priori e muito menos a destinação, ou finalidade, que presumimos apreender nas obras da Natureza.
As doutrinas apriorísticas caducaram, já se não admitem.
Confessemo-nos com os materialistas e perguntemos se os que tomaram Deus e não a Natureza como ponto de partida explicaram, algum dia, as propriedades da matéria ou as leis que governam o mundo. Puderam eles dizer-nos da mobilidade ou imobilidade do Sol? – se a Terra era plana ou esférica? – quais os desígnios de Deus, etc.? Absolutamente. Mesmo porque, seria impossível. Partir de Deus para investigação e exame da Criação é processo baldo de nexo e de sentido. Esse precário método para estudar a Natureza e inferir consequências filosóficas, no pressuposto de poder, com uma simples teoria, construir o Universo e fixar as verdades naturais, desacreditou-se, felizmente, há muito tempo.
Mas, pelo fato de havermos substituído a hipótese precedente pelos resultados do exame a posteriori, segue-se que devamos fechar os olhos e negar a inteligência, a sabedoria, a harmonia reveladas pela própria observação? Haverá motivo para repudiar toda e qualquer conclusão filosófica e ficar a meio caminho, temerosos de atingir o fim? E deveremos, por isso, rendermo-nos aos cépticos contemporâneos que, sem embargo de evidência, rejeitam toda luz e toda conclusão?
Pensamos que não. Muito ao contrário, pelo método que preconizam, constatamos as suas recusas e inconsequências.
Antes de qualquer controvérsia, importa determinar as posições recíprocas, por evitar mal-entendidos, esperando nós que as declarações precedentes bastem para esclarecer categoricamente a nossa atitude.
Combateremos francamente o materialismo, não com as armas da fé religiosa, não com os argumentos da fraseologia escolástica, não com as autoridades tradicionais, mas pelos raciocínios que a contemplação científica do Universo inspira e fecunda.
Examinemos preliminarmente, num lanço-de-olhos, de conjunto, o processo geral do ateísmo hodierno.
Esse processo assemelha-se sensivelmente ao de que se utilizou o barão de Holbach, nos fins do século passado, para fundamentar o seu famoso Sistema da Natureza, obra de um materialismo vulgar, para a qual achava Goethe não haver suficiente desprezo e costumava averbar de – “legítima quintessência da senectude, inepta e insulsa”. O novo processo, mais exclusivamente científico, todavia, consiste principalmente em declarar que as forças que dirigem, não dirigem o mundo, isto é: que em vez de governarem a matéria, antes se lhe escravizam e que é a matéria (inerte, cega, desprovida de inteligência) que, movendo-se de si mesma, se governa mediante leis, cujo alcance ela não pode, todavia, apreciar.
Pretendem os nossos materialistas atuais que a matéria existe de toda a eternidade, revestida de umas tantas propriedades, de certos atributos e que essas propriedades qualificativas da matéria bastam para explicar a existência, estado e conservação do mundo.
Dessarte, substituem um Deus-espírito por um Deus-matéria.
Ensinam que a matéria governa o mundo e que as forças químicas, físicas, mecânicas, não passam de qualidades.
Para refutar um tal sistema, há que tomar, por conseguinte, o partido contrário e demonstrar um Deus-espírito, antes que um Deus-matéria, incompreensível, a reger a matéria; estabelecer que a substância é escrava antes que proprietária da força; provar que a direção do mundo não cabe às moléculas cegas que o constituem, mas a forças sob cuja ação transparecem as leis supremas.
Fundamentalmente, o problema se resume nesta demonstração e nós esperamos que ela ressaltará brilhante dos estudos objetivados neste nosso trabalho.
E de vez que os adversários se apoiam em legítimos fatos científicos para estabelecer o erro, cumpre-nos contrabatê-los com esses mesmos fatos.
A bem dizer, ainda que se demonstrasse que o Universo não é mais que um mecanismo material, cujas forças não se conjugam a um motor, mas remontam a matéria, subindo e descendo incessantes num sistema de motilidade perpétua, nem por isso a causa divina estaria perdida.
Contudo, desde os primórdios da Filosofia, a partir de Heráclito e Demócrito, o sistema mecânico do mundo constituiu-se o refúgio e o argumento dos ateus, enquanto o sistema dinâmico albergava e escorava os espiritualistas.
Nós, por princípio, filiamo-nos à concepção dinâmica e combatemos o sistema incompleto de um mecanismo sem construtor. Muito judiciosamente, diz Caro:[i] – por um lado o mecanismo tudo explica, mediante combinações e agrupamentos de átomos eternos. Todas as variedades de fenômenos, o nascimento, a vida, a morte, mais não são que o resultado mecânico de composições e decomposições, a manifestação de sistemas atômicos que se reúnem e se separam.
O dinamismo, ao contrário, subordina todos os fenômenos e todos os seres à ideia de força.
O mundo é a expressão, seja de forças opostas e harmoniosas entre si, seja de uma força única, cuja metamorfose perpétua engendra a universalidade dos seres.
Pode-se constatar que, não obstante ser a explicação secundária das coisas, até certo ponto, independente da primária, ou metafísica, a História atesta o fato constante de uma afinidade natural: de um lado, entre a explicação mecânica e a hipótese supressiva de Deus; e de outro lado, entre a teoria dinâmica e a hipótese que diviniza o mundo em seu princípio.
A teoria mecânica, estabelecendo a pura necessidade matemática nas ações e reações que formam a vida do mundo, é incompleta, por isso que suprime a causa e dissipa em névoa o mundo moral. A teoria de uma força única, universal, sempre atual e formando a variedade dos seres pelas suas metamorfoses, ajusta essa misteriosa universalidade a uma força primordial.
Poder-se-ia, portanto, acusar simplesmente o processo geral dos nossos contraditores de um erro gramatical, atribuindo à matéria um poder só cabível à força e pretendendo não passar está de mero adjetivo qualificativo, quando lhe cabem os mesmos direitos daquela, na classe dos substantivos.
Examinemos agora, nesta mesma visada de conjunto, quais os grandes erros que marcham de paralelo e sustentam essa conduta e que havemos de encontrar sob várias formas, no curso das nossas contraditas.
O primeiro erro geral de que abusam os materialistas é imaginarem que, pelo fato de existir Deus, importa atribuir-lhe uma vontade caprichosa e não constante e imutável, em sua perfeição.
Ersted, por exemplo, sábio escrutador do mundo físico, exprimiu sensatamente as relações de Deus com a Natureza, dizendo que “o mundo é governado por uma razão eterna, cujos efeitos se manifestam nas leis da Natureza”.
O Dr. Büchner opõe a esse conceito a seguinte especiosa objeção: – “Ninguém poderia compreender como uma razão eterna, que governa, se conforme com leis imutáveis. Ou são as leis naturais que governam, ou é a razão eterna. Que umas ao lado de outras entrariam, a cada instante, em colisão. Se a razão eterna governasse, supérfluas se tornariam as leis naturais e se, ao revés, governam as leis imutáveis da Natureza, elas excluem toda intervenção divina.” – “Se uma personalidade governa a matéria num determinado sentido – opina Moleschott – desaparece da Natureza a lei da necessidade. Cada fenômeno se torna partilha de jogo do acaso e de uma arbitrariedade sem pelas.”
Havemos de convir que esta grave objeção é singularíssima.
É um raciocínio extravagante que cai pela base. A nós nos parece, pelo contrário, que a inteligência notória nas leis da Natureza demonstra, no mínimo, a inteligência da causa a que se devem essas leis, que são, elas mesmas, precisamente a expressão imutável dessa inteligência eterna.
E não será algo ridículo pretender que essa causa deixe de existir, pelo motivo do íntimo acordo com essas mesmas leis?
Vejamos, por exemplo, um excelente harpista: a sua virtuosidade é tão perfeita que os acordes frementes parecem-nos identificados com a poesia da sua alma! Diremos, então, que essa alma não existe, visto que para lhe admitir existência fora preciso que ela estivesse eventual e arbitrariamente em desacordo com as leis da Harmonia! Essa maneira de raciocinar é tão falsa que os próprios autores que a utilizam são os primeiros a reconhecê-lo implicitamente. Assim é que Büchner, referindo-se a milagres e ao fato de haver o clero inglês solicitado a decretação de um dia de jejum e de preces para conjurar a cólera, elogia Palmaraton por haver respondido que o surto epidêmico dependia mais de fatores naturais, em parte conhecidos, e poderia melhor jugular-se com providências sanitárias, antes que com preces.
Muito bem! O autor, melhor ainda, acrescenta: “Essa resposta lhe acarretou a pecha de ateísmo e o clero declarou pecado mortal não crer pudesse a Providência transgredir, a qualquer tempo, as leis da Natureza.”
Mas, que singular ideia faz essa gente de Deus que por si criou! Um legislador supremo a deixar-se comover por preces e soluços, a subverter a ordem imutável que ele mesmo instituiu, a violar por suas próprias mãos a atividade das forças naturais! – “Todo o milagre, se existisse – diz também Cotta – provaria que a Criação não merece o respeito que lhe tributamos e os místicos deveriam deduzir, da imperfeição do criado, a imperfeição do Criador.”
Aí temos os adversários em contradição consigo mesmos, quando, por um lado, não querem admitir uma razão eterna em concordância de leis imutáveis, e por outro pensam conosco, que a ideia de imutabilidade ou, pelo menos, a regularidade, identifica-se muito melhor com a perfeição ideal do ser desconhecido que denominamos Deus, do que a ideia de mutabilidade e arbitrariedade, que umas tantas crenças pretendem impor-lhe.
Um segundo erro geral, não menos funesto que o precedente e que por igual ilude nossos contraditores, é o de acreditarem que, para existir Deus, importa colocá-lo fora do mundo.
Não vemos pretexto algum racional que possa justificar uma tal necessidade. E antes do mais, que significa essa ideia de uma causa soberana extramundo? Onde os limites do mundo? Pois o mundo, isto é, o espaço no qual se movem estrelas e terras, não é infinito por sua mesma essência?
Imaginais um limite a esse mesmo espaço e supondes que ele se não renova além? Será, então, possível traçar limites à extensão? Onde, pois, imaginar Deus fora do mundo? Será fora da matéria, o que se quer dizer? Mas, que é a matéria em si? – agrupamentos de moléculas intangíveis. Portanto, impossível determinar uma semelhante posição. Deus não pode estar fora do mundo, mas no mesmo lugar do mundo, do qual é o sustentáculo e a vida.
Não fosse temer a pecha de panteísta e ajuntaríamos que Deus é – a alma do mundo. O Universo vive por Deus, assim como o corpo obedece à alma. Em vão pretendem os teólogos que o espaço não pode ser infinito, em vão se apegam os materialistas a um Deus fora do mundo, enquanto sustentamos que Deus, infinito, está com o mundo, em cada átomo do Universo – adoramos Deus na Natureza.
Entretanto, nossos adversários combatem insensatamente o seu fantasma. “Não há considerar o Universo – diz Strauss – como ordenação regrada por um Espírito fora do mundo, mas, como razão imanente às forças cósmicas e às suas relações.”
A essa razão, chamamo-la Deus, enquanto os modernos ateístas aproveitam essa declaração para sentenciar que, em não existindo fora do mundo, é que Deus não existe.
“Tudo, – diz H. Tuttle – desde a tinha (perdoem a expressão) que baila aos raios do Sol, à inteligência humana, que verte das massas medulosas do cérebro, está submetido a princípios fixos. Logo, não existe Deus.” Logo, existe – dizemos nós – “Livre é cada qual de franquear os limites do mundo visível – pondera Büchner – e de procurar fora dele uma razão que governa, uma potência absoluta, uma alma mundial, um Deus pessoal”, etc. Mas, que é o que vos fala disso? “Nunca, em parte alguma – diz o mesmo literato – nos mais longínquos espaços revelados pelo telescópio, pôde observar-se um fato que fizesse exceção e pudesse justificar a necessidade de uma força absoluta, operando fora das coisas.”
“A força não impelida por um Deus, não é uma essência das coisas isoladas do princípio material” – adverte Moleschott.
Ninguém terá visão tão limitada – afirma ele alhures – para enxergar nas ações da Natureza forças outras não ligadas a um substrato material. Uma força que planasse livremente acima da matéria seria uma concepção absolutamente balda de sentido.
Positivamente, ainda hoje existem cavaleiros errantes, à guisa dos que outrora manobravam em torno dos castelos do Reno, e de bom grado arremetem moinhos de vento. Lídimos heróis de Cervantes, visto que, no fim de contas, qual o filósofo que hoje propugna um Deus ou forças quaisquer fora da Natureza?
Vemos em Deus a essência virtual que sustenta o mundo em cada uma de suas partes microscópicas, daí resultando ser o mundo como que por ele banhado, embebido em todas as suas partes e que Deus está presente na composição mesma de cada corpo.
Dessarte, a primeira trincheira cavada pelos adversários para bloquear o Espiritualismo foi por eles mesmos entulhada; e a segunda nem sequer objetiva a cidadela, e os nossos soldados alemães não fazem mais que bater o campo.
Um terceiro erro, capital e imperdoável em cientistas de certa idade, é imaginarem-se com direito de afirmar sem provas, a embalarem-se com a doce ilusão de serem os outros obrigados a acreditar sob palavra. Coisas que a verdadeira Ciência profundamente silencia, afirmam-nas eles, categóricos. Afirmam, como se houvessem assistido aos concelhos da Criação, ou como se fossem os próprios autores dela.
Eis alguns espécimes de raciocínios, cuja infalibilidade é tão ciosamente proclamada.
Que os espíritos um tanto afeitos à prática científica se deem ao trabalho de analisar as seguintes afirmações:
Moleschott diz que a força não é um deus que impele, não é um ser separado da substância material das coisas (quer dizer separado ou distinto?). É a propriedade inseparável da matéria, a ela inerente de toda a eternidade. Uma força, não ligada à matéria, seria um absurdo. O azoto, o carbono, o oxigênio, o enxofre e o fósforo têm propriedades que lhes são inerentes de toda a eternidade... Logo, a matéria governa o homem.”
Cada uma destas afirmativas, ou negativas, é uma petição de princípios, a depender do sentido que dermos aos termos discutíveis utilizados; mas, em suma, o que elas resumem é que a força vale como propriedade da matéria. Ora, essa é, precisamente, a questão. Os campeões da Ciência, que pretendem representá-la e falar com e por ela, não se dignam de seguir o método científico, que é o de nada afirmar sem provas. Nas dobras do seu estandarte, com letras douradas, estereotiparam uma legenda fulgurante, a saber: – toda proposição não demonstrada experimentalmente só merece repúdio – e, no entanto, logo de início, esquecem a legenda. São pregadores de uma nova espécie: façam o que digo e não o que eu faço.
Veremos, com efeito, que, quantos afirmam que a força não impulsiona a matéria, exprimem um conceito imaginativo, nada científico.
Ouçamos, ainda, outras afirmativas gerais: “A matéria – diz Dubois-Reymond – não é um veículo ao qual, à guisa de cavalos, se atrelassem ou desatrelassem alternativamente as forças. Suas propriedades são inalienáveis, intransmissíveis de toda a eternidade.”
Quanto ao destino humano, eis como se exprime Moleschott: “Quanto mais nos convencemos de trabalhar para o mais alto desenvolvimento da Humanidade, por uma judiciosa associação de ácido carbônico, de amoníaco e de outros sais, de ácido húmico e de água, mais se nobilitam a luta e o trabalho”, etc.
E também em nosso país: “Uma ideia – diz a Revista Médica – é uma combinação análoga à do ácido fórmico; o pensamento depende do fósforo; a virtude, o devotamento, a coragem, são correntes de eletricidade orgânica”, etc.
Quem vos disse tal coisa, senhores redatores? Olhem que os leitores hão de pensar que os vossos mestres ensinam esses gracejos, quando tal se não dá, absolutamente. Mesmo porque, do ponto de vista científico, esses raciocínios são totalmente nulos. De fato, não se sabe o que mais admirar em tais expoentes da Ciência: se a singular audácia, se a ingenuidade de suas presunções.
Newton não se cansava de repetir: “parece-nos...”, e Képler dizia: “submeto-vos estas hipóteses...”. Aqueles outros, porém dizem: afirmo, nego, isto é, aquilo não é, a Ciência julgou, decido, condenou, posto que no que dizem não haja sombra de argumento científico.
Um tal método pode ter o merecimento da clareza, mas ninguém o inquinará de modesto, nem de verdadeiramente científico.
É que tais senhores têm a ousadia de imputar à Ciência a carga pesada das suas próprias heresias. Se a Ciência vos ouvisse, senhores (mas deve ouvir, porque sois seus filhos) – se a Ciência vos ouve, não pode deixar de sorrir das vossas ilusões.
A Ciência, dizeis, afirma, nega, ordena, proíbe... Pobre Ciência, em cujos lábios pondes grandes frases, atribuindo-lhe ao coração um descomunal orgulho.
Não, meus senhores, e vós bem o sabeis (cá entre nós) que, nestes domínios, a Ciência nada afirma, nem nega, porque apenas procura.
Refleti, pois, que a armadura das vossas parlandas ilude os ignorantes e pode induzir em erro quantos não tiveram a faculdade de perlustrar os vossos estudos, e considerai que, quando nos arrogamos o título de intérpretes da Ciência, ficamos na obrigação de não falsear o título, de permanecer-lhe fiel e, por consequência, modestos tradutores de uma causa que tem na modéstia o seu primacial merecimento.
Se, da questão da força, em geral, passarmos à da alma, observaremos que, na esfera da vida animal, ou humana, os adversários não vacilam em afirmar, igualmente sem provas, que não existe personalidade no ser vivente e pensante; que o espírito, como a vida, mais não é que o resultado físico de certos grupamentos atômicos e que a matéria governa o homem tão exclusivamente quanto, a seu ver, governa os astros e os cristais. O fenômeno mais curioso é o de imaginarem que aclaram o problema com as suas explicações obscuras:
– “O espírito, diz o Dr. Hermann Scheffler[ii], outra coisa não é senão uma força da matéria, imediatamente resultante da atividade nervosa” ...
Mas... de onde provém essa atividade nervosa?
– Do éter (?) em movimento nos nervos. De sorte que, os atos do espírito são o produto imediato do movimento nervoso, determinado pelo éter, ou do movimento deste nos nervos – ao qual importa ajuntar uma variação mecânica, física ou química, da substância imponderável dos nervos e de outros elementos orgânicos...
– Eis aí, suponho, bem esclarecida a questão. Virchow diz que “a vida não é mais que modalidade particular da mecânica”; e Büchner afirma que “o homem não passa de produto material; que não pode ser o que os moralistas pintam; que não tem faculdade alguma privilegiada”.
– Que há em todos os nervos uma corrente elétrica – predica Dubois-Reymond – e que o pensamento mais não é que movimento da matéria. Para Vogt, as faculdades da alma valem como funções da substância cerebral e estão para o cérebro como a urina para os rins[iii]. E Moleschott assegura que a consciência, a noção de si mesmo, mais não é que movimentos materiais, ligada a correntes neuro-elétricas e percebidas pelo cérebro.
Teremos ensejo de assinalar, mais adiante, um ditirambo deste mesmo autor sobre o fósforo, o peso do cérebro, as ervilhas e lentilhas. Por agora, limitemo-nos a estes edificantes testemunhos.
Admiremos, sobretudo, a conclusão fundamental: “E aí temos nós porque os sábios definem a força uma simples propriedade da matéria. Qual a conseqüência geral e filosófica desta noção tão simples quanto natural? É que aqueles que falam de uma força criadora, tendo de si mesma originado o mundo, ignoram o primeiro e mais simples princípio do estudo da Natureza, baseados na Filosofia e no empirismo.”
E, acrescentam – “qual o homem instruído, com um conhecimento mesmo superficial das ciências naturais, capaz de duvidar não seja o mundo governado como geralmente se afirma, e sim que os movimentos da matéria estão submetidos a uma necessidade absoluta e inerente à própria matéria?“
Assim, pela só autoridade de alguns alemães, que vêm ingenuamente declarar não admitirem, seja como for, a existência de Deus e da alma, agarrando-se embora a uma sombra de noção científica por justificar as suas fantasias, teríamos nós, ao seu ver, de abjurar a Ciência, ou deixar de crer em Deus.
Tivessem tido apenas a precaução de aplicar as regras do silogismo ao seu método; tivessem tido o cuidado de propor, primeiramente, as premissas irrefutáveis e não tirar delas senão uma conclusão legítima, e poderíamos acompanhá-los no raciocínio e conferir-lhes um prêmio de retórica. Mas, vede em que consiste o seu processo:
Maior – A força é uma propriedade da matéria.
Menor – Portanto, uma propriedade da matéria não pode ser considerada superior, criadora ou organizadora dessa matéria.
Conclusão – Logo, a idéia de Deus é uma concepção absurda.
É assim que arvoram, antes de tudo, em princípio a tese a discutir.
Combatendo cerradamente os métodos do Cristianismo, essa gente muito se assemelha aos que, no intuito de provarem aos Romanos a divindade de Jesus, assim começavam: – Jesus é Deus, e desse princípio não provado extraiam todas as deduções.
Convicto estamos de honrar grandemente esses escritores, aplicando aos seus postulados as regras do raciocínio, que eles talvez nunca sonharam seguir.
Também poderíamos submeter-lhes as pretensões a uma outra forma mais ingênua, assim:
Antecedente – Matéria e força encontram-se sempre associadas.
Conseqüente – Logo, a força é uma qualidade da matéria.
Aí temos, penso, um entimema de novo gênero e de conseqüências bem evidentes, pois não? Mas, é assim que os senhores Alemães raciocinam, bem como os seus clarividentes imitadores, positivistas da nossa moderna França.
No primeiro caso, o raciocínio peca pela base; e, no segundo, nem mesmo faz jus a esse reproche, porque é uma infantilidade.
Certo, pesa dizê-lo, mas é a essa puerilidade, ou melhor – perversão da faculdade de raciocinar – que se reduz o movimento materialista dos nossos tempos. E nunca, como aqui, vem a pêlo a frase do misantropo que dizia não ser o homem um animal pensador, mas, falador.
Todo o fundamento desta grande querela, toda a base deste edifício heterogêneo, cujo desmoronamento pode esmagar muitos cérebros sob os escombros; toda a força deste sistema que pretende dominar o mundo, presente e futuro; todo o seu valor e potência, repousam nessa assertiva fantasiosa, arbitrária e jamais demonstrada, de ser a força uma propriedade da matéria.
E é fingindo acompanhar a rigor as demonstrações científicas e só se apoiar em verdades reconhecidas; é confungindo-se ao estandarte da Ciência, apropriando-se de suas fórmulas e atitudes; é, enfim, com ela mascarando-se, que os pontífices do ateísmo e do niilismo proclamam as suas belas e edificantes doutrinas.
Mas a Ciência não é uma mascarada. A Ciência fala de viseira erguida, não reivindica falsas manobras, nem luzes de falso brilho. Serena e pura na sua majestade, ela se pronuncia simples, modestamente, como entidade consciente do seu valor intrínseco. Nem procura impor-se e, sobretudo, não aventa coisas de que não possa estar segura. Em vez de afirmar ou negar, investiga e prossegue, laboriosamente, no seu mister.
A exposição precedente já deixou adivinhar, sem dúvida, a tática do ateísmo contemporâneo.
Ele não é fruto direto do estudo científico, mas procura insinuar-se com essa aparência.
Evidente a ilusão, nesses filósofos, pois sabemos que há entre eles uns tantos conceitos sinceros. É à força de quererem conjugar à Ciência as suas teorias, que acabaram por embutir no cérebro essa união clandestina. Essas teorias não podem invocar a seu favor qualquer das grandes provas científicas da nossa época e, sem embargo, dão-se como resultantes de todo o moderno trabalho científico.
Isso repetem, e é com essa hermenêutica que abusam dos ignorantes e da juventude desprecavida e entusiasta, tendendo a lhes fazer crer que as ciências, à força de progredirem, acabaram por descobrir e demonstrar que não há Deus nem alma. São eles que fazem a Ciência.
                                                 * * *
No rostro desta obra inscrevemos, por conseguinte, esta pergunta:
A força rege ou é regida pela matéria? Este o dilema que os fatos de si mesmos devem resolver.
O panorama geral do Universo vai oferecer-nos uma primeira demonstração de soberania da força e da ilusão dos materialistas.
Da matéria, nos elevamos às forças que a dirigem; destas, às leis que as governam, e destas, ainda, ao seu misterioso autor.
A harmonia repleta o mundo dos seus acordes e o ouvido de alguns ínfimos seres humanos recusam-se a escutá-los. A mecânica celeste lança, ousadamente, no espaço, o arco das órbitas e o olho de um parasita desses orbes desdenha a grandeza da sua arquitetura.
A luz, o calor, a eletricidade, pontos invisíveis projetados de uma a outra esfera, fazem circular nos espaços infinitos o movimento, a atividade, a vida, a radiação do esplendor e da beleza, e as imbeles criaturas, apenas desabrochadas à superfície de um parasita desses orbes desdenha a grandeza a confessar a fulgurância celeste! É loucura ou é tolice? É orgulho, ou ignorância? Qual a origem e a finalidade de tão estranha aberração? Porque a força vital, álacre e fecunda, palpita no Sol como na borboleta que morre com a manhã; no carvalho anoso das florestas como na primaveril violeta? – porque a vida magnificante doura as messes de Julho e os cabelos anelados da juventude petulante e freme no seio virginal das noivas? – porque negar a beleza, mascarar a verdade e desprezar a inteligência? Porque envenenar as virtudes eternas que sustentam a estrutura do mundo e eclipsar, tristemente, a luz imácula que desce dos céus?
Antes de penetrar os mistérios do reino tão rico e interessante da vida, devemos considerar o esboço material do Universo, começando por demonstrar a soberania da força no tracejar desse mesmo esboço. Dividiremos esta primeira em duas partes: o Céu e a Terra, para estabelecer em primeiro lugar, por leis astronômicas e depois pelas terrestres, que, onde quer que exista a matéria, esta jamais deixou de ser escrava servil, universalmente dominada pela energia que a rege. Esta divisão não deve sugerir, de modo algum, a velha comparação do céu com a Terra, que bem sabemos serem termos incomparáveis. Considerado como valor absoluto, o céu é tudo e a Terra nada é. A Terra é átomo imperceptível, perdido no seio do infinito; o céu a envolve no ilimitado e a integra na população astral, sem exceção nem privilégio particular.
Reunir os dois vocábulos, é como dizer: os Alpes são uma pedrinha, o Oceano é uma gota d’água e o Saara um grão de areia. É comparar o todo a um mínimo do mesmo todo.
Importa, portanto, não interpretar literalmente a nossa divisão, que só se justifica por colimar maior clareza do assunto. Para nós, terrícolas, este globo é alguma coisa, assim como para a minúscula lagarta, que aflora numa folha, esta folha algo vale, mau grado à sua insignificância no conjunto da pradaria.
Nossa esfera de observação divide-se também, naturalmente, em duas partes: o que pertence e o que não pertence ao nosso mundo.
Ora, vamos estabelecer que, fora do nosso mundo, assim como nele, a matéria está em tudo e por toda a parte e não passa de coisa inerte, cega, morta, composta de elementos incapazes de se dirigirem por si mesmos; que não agem nem pensam por impulso próprio e que, nos sendais invisíveis do espaço, tanto como nos canais da seiva ou do sangue, o que aglutina em átomos, dirige as moléculas e conduz os mundos, é uma Força na qual transparece o plano, a vontade, a inteligência, a sabedoria e o poder do seu amor.

Dir-se-ia, em os ouvindo, nada haver além deles. Os grandes homens da antiguidade e da Idade Média, tanto como os modernos, são fantasmas, e toda a Filosofia deve desaparecer diante do ateísmo pretensamente científico.
Preciso se faz que a imaginação popular não se deixe iludir por simples jogo de palavras, que mais valem, às vezes, por verdadeira comédia. Importa que as criaturas pensem por si mesmas, julguem com conhecimento de causa e adquiram a certeza de que os fatos científicos, perquiridos sem prevenção, não comportam as conclusões dogmáticas que lhes querem impor.
Vista de perto, a pedra angular a grande custo lançada pelo materialismo contemporâneo deixa entrever que ela não passa de velho e carcomido tronco de madeira podre e, no fundo, os partidários do sistema não estão mais seguros do seu cepticismo do que o estariam os calvos discípulos de Heráclito ou de Epícuro.
Ainda que queiram convencer-nos do contrário, todo o seu sistema não passa de hipótese, mais vazia e menos fundamentada que muitos romances científicos.
E uma vez que são eles próprios a declarar que toda hipótese deve ser banida da Ciência, não há como deixarmos de começar por esse banimento.
Realmente, com que direito fazem da força atributo da matéria?
Com que direito afirmam que a força está submetida à matéria, que lhe obedece passivamente aos caprichos, escrava absoluta de elementos inertes, mortos, indiferentes, cegos? Maior e mais fundado é o nosso direito de inverter-lhes a proposição, derrubando-lhes o edifício pela base.
Terminemos assim esta exposição do problema, decidindo que o discrime se coloca nestes termos fundamentais: é a matéria que domina a força, ou antes esta que domina aquela?
Trata-se de discutir e escolher uma ou outra, ou, para falar com mais exatidão – trata-se de observar a Natureza e optar depois.
E, pois que os honrados campeões da matéria afirmam, com tanta segurança, o primeiro enunciado, começamos revocando-o em dúvida e propondo a alegação contrária


[i]               La Philosophie de Goethe, capítulo 6º.
[ii]              Körper und Gelst, etc.
[iii]             Physiologische Briefe.


Camille Flammarion

Deus na Natureza

Traduzido do Francês
Camille Flammarion - Dieu dans la nature
(1866)
Repassando…



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