sexta-feira, 16 de março de 2012

A segunda vista






As percepções que ocorrem no estado sonambúlico, sendo de
uma outra natureza do que aquelas do estado de vigília, não
podem ser transmitidas pelos mesmos órgãos. É constante
que, neste caso, a visão não se efetue pelos olhos que, aliás,
estão geralmente fechados, e que se pode mesmo pôr ao
abrigo dos raios luminosos de maneira a afastar toda suspeita.
A visão à distância, e através de corpos opacos, exclui, além
disso, a possibilidade do uso dos órgãos ordinários da visão. É
preciso, pois, de toda necessidade, admitir no estado de
sonambulismo, o desenvolvimento de um sentido novo, sede
de faculdades e de percepções novas que nos são
desconhecidas, e das quais não podemos nos dar conta senão
por analogia e pelo raciocínio. Para isso, se concebe, nada de
impossível; mas qual é a sede desse sentido? É o que não é
fácil de determinar com exatidão. Os próprios sonâmbulos
não dão, a esse respeito, nenhuma indicação precisa. Ocorre
que, para melhor verem, aplicam os objetos sobre o epigastro,
outro sobre a fronte, outro sobre o occipital. Esse sentido não
parece, pois, circunscrito num lugar determinado; é certo,
contudo, que a sua maior atividade reside nos centros
nervosos. O que é positivo é que o sonâmbulo vê. Por onde e
como? É o que ele mesmo não pode definir.
Notemos, no entanto, que, no estado sonambúlico, os
fenômenos da visão e as sensações que o acompanham, são
essencialmente diferentes daquele que ocorre no estado
ordinário; também não nos serviremos da palavra ver senão
por comparação, e na falta de um termo que, naturalmente,
não temos para uma coisa desconhecida. Um povo de cegos
de nascença, de nenhum modo, teria palavra para exprimir a
luz, e relacionaria as sensações que ela faz sentir a alguma
daquelas que compreende porque a ela está submetido.
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Procurou-se explicar a um cego a impressão viva e brilhante
da luz sobre os olhos. Eu compreendo, disse ele, é como o
som da trombeta. Um outro, um pouco mais prosaico, sem
dúvida, a quem se quis fazer compreender a emissão dos
raios em feixes ou cones luminosos, respondeu: Ah! sim; é
como um objeto de forma cônica. Estamos nas mesmas
condições com respeito à lucidez sonambúlica; somos
verdadeiros cegos, e, como estes últimos para a luz, nós a
comparamos àquilo que, para nós, tem mais analogia com a
faculdade visual; mas se quisermos estabelecer uma analogia
absoluta entre essas duas faculdades e julgar uma pela outra,
necessariamente, nos enganaremos como os dois cegos que
acabamos de citar. Está aí o erro de quase todos aqueles que
procuram, supostamente, se convencer pela experiência;
querem submeter a clarividência sonambúlica às mesmas
provas que da visão comum, sem sonhar que não há relações
entre elas a não ser o nome que lhes damos, e como os
resultados não respondem sempre à expectativa, acham mais
simples negar.
Se procedermos por analogia, diremos que o fluido magnético,
espalhado por toda a Natureza, e do qual os corpos animados
parecem ser os principais focos, é o veículo da clarividência
mediúnica, como o fluido luminoso é o veículo das imagens
percebidas pela nossa faculdade visual. Ora, do mesmo modo
que o fluido luminoso torna transparente os corpos que
atravessa livremente, o fluido magnético, penetrando todos
os corpos sem exceção, não há, de nenhum modo, corpos
opacos para os sonâmbulos. Tal é a explicação, a mais
simples e a mais natural, da lucidez, falando do nosso ponto
de vista. Nós a cremos justa, porque o fluido magnético,
incontestavelmente, desempenha um papel importante nesse
fenômeno; ela, entretanto, não poderia dar conta de todos os
fatos. Há uma outra que os abarca a todos, mas à qual
algumas explicações preliminares são indispensáveis.
Na visão a distância, o sonâmbulo não distingue um objeto ao
longe como poderíamos fazê-lo através de um binóculo. Não é,
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de nenhum modo, esse objeto que se aproxima dele por uma
ilusão óptica, É ELE MESMO QUE SE APROXIMA DO OBJETO.
Ele o vê precisamente como se estivesse ao lado dele; ele
mesmo se vê no lugar que observa; em uma palavra, ele se
transporta. Seu corpo, nesse momento, parece aniquilado,
sua palavra é mais abafada, o som de sua voz tem alguma
coisa de estranha; a vida animal parece se extinguir nele; a
vida espiritual está toda inteira no lugar onde o seu
pensamento o transporta; só a matéria fica no mesmo lugar.
Há, pois, uma porção de nosso ser que se separa de nosso
corpo para se transportar, instantaneamente, através do
espaço, conduzida pelo pensamento e a vontade. Essa porção,
evidentemente, é imaterial; de outro modo, ela produziria
alguns efeitos da matéria; é a essa parte de nós mesmos que
chamamos a alma.
Sim, é a alma que dá ao sonâmbulo as faculdades
maravilhosas das quais goza; a alma que, em circunstâncias
dadas, se manifesta se isolando em parte e
momentaneamente de seu envoltório corporal. Para quem
observou atentamente os fenômenos do sonambulismo em
toda a sua pureza, a existência da alma é um fato patente, e
a idéia de que tudo se acaba em nós com a vida animal é,
para ele, uma insensatez demonstrada até à evidência;
também se pode dizer, com alguma razão, que o magnetismo
e o materialismo são incompatíveis; se há alguns
magnetizadores que parecem se afastar dessa regra, e que
professam doutrinas materialistas, é que não fizeram, sem
dúvida, senão um estudo muito superficial dos fenômenos
físicos do magnetismo, e que não procuraram seriamente a
solução do problema da visão a distância. Qualquer que ele
seja, jamais vimos um único sonâmbulo que não estivesse
penetrado de um profundo sentimento religioso, quaisquer
que possam ser as suas opiniões no estado de vigília.
Retornemos à teoria da lucidez. A alma, sendo o princípio das
faculdades do sonâmbulo, é nela que reside, necessariamente,
a clarividência, e não em tal ou tal parte circunscrita de nosso
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corpo. É porque o sonâmbulo não pode designar o órgão
dessa faculdade como designaria o olho para a visão exterior:
ele vê por todo o seu ser moral, quer dizer, por toda a sua
alma, porque a clarividência é um dos atributos de todas as
partes da alma, como a luz é um dos atributos de todas as
partes do fósforo. Por toda a parte, pois, onde a alma pode
penetrar, há clarividência; daí a causa da lucidez através de
todos os corpos, sob os envoltórios mais espessos e em todas
as distâncias.
Uma objeção se apresenta, naturalmente, a esse sistema, e
devemos nos apressar em responder a ela. Se as faculdades
sonambúlicas são as mesmas da alma liberta de sua matéria,
por que essas faculdades não são constantes? Por que certos
sujeitos são mais lúcidos do que outros? Por que a lucidez é
variável no mesmo sujeito? Concebe-se a imperfeição física
de um órgão; não se concebe a da alma.
A alma se liga ao corpo por laços misteriosos, que não nos
fora dado a conhecer antes que o Espiritismo nos tivesse
demonstrado a existência e o papel do perispírito. Tendo essa
questão sido tratada de maneira especial na Revista e nas
obras fundamentais da Doutrina, não nos deteremos mais
aqui; limitamo-nos a dizer que é pelos nossos órgãos
materiais que a alma se manifesta ao exterior. Em nosso
estado normal, essas manifestações estão naturalmente
subordinadas à imperfeição do instrumento, do mesmo modo
que o melhor operário não pode fazer uma obra perfeita com
más ferramentas. Por admirável que seja, pois, a estrutura de
nosso corpo, que ele haja tido a previdência da Natureza em
relação ao nosso organismo para o cumprimento de suas
funções vitais, há distância desses órgãos, submetidos a
todas as perturbações da matéria, à sutileza de nossa alma.
Por muito tempo, pois, que a alma se prenda ao corpo, sofre lhe
os entraves e as vicissitudes.
O fluido magnético não é a alma, é um laço, um intermediário
entre a alma e o corpo; é pela sua maior ou menor ação
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sobre a matéria que torna a alma mais ou menos livre; daí a
diversidade das faculdades sonambúlicas. O sonâmbulo é o
homem que não está desembaraçado senão de uma parte de
suas vestes, e cujos movimentos são ainda constrangidos por
aquelas que lhe restam.
A alma não terá sua plenitude e inteira liberdade de suas
faculdades, senão quando houver sacudido os últimos cueiros
terrestres, como a borboleta sai de sua crisálida. Se um
magnetizador fosse tão potente para dar à alma uma
liberdade absoluta, o laço terrestre seria rompido e a morte
disso seria a conseqüência imediata. O sonambulismo nos faz,
pois, colocar um pé na vida futura; ele afasta um lado do véu
sob o qual se escondem as verdades que o Espiritismo nos faz
entrever hoje; mas não a conheceremos, em sua essência,
senão quando estivermos inteiramente desembaraçados do
véu material que a obscurece neste mundo.
Obras Póstumas: Alan Kardec
Fonte: www.autoresespiritasclassicos.com

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