quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Os crédulos

 

II
Os crédulos

Ide lavar-vos e comer erva.
Palavras da “Imaculada
Conceição
”, em Londres.

Nosso primeiro capítulo, “Os incrédulos”, nos mostrou quanto o espírito humano é, em geral, pouco inclinado a aceitar os fatos inexplicados e as idéias novas, e quanto essa inércia tem sido nociva ao avanço dos nossos conhecimentos sobre a natureza e sobre o homem. Mas, por imensa felicidade nossa, há os Copérnico, os Galileu, os Képler, os Newton, os Herschel, os Papin, os Fulton, os Galvâni, os Volta, os Palissy, os Ampère, os Arago, os Niepce, os Daguerre, os Fraunhofer, os Kirchoff, os Fresnel, os Le Verrier, os pesquisadores e os independentes. A Ciência é chamada, pela eterna lei da honra, a olhar de frente e sem temor todo problema que se lhe pode apresentar francamente, dizia recentemente sir William Thomson, um dos mais eminentes físicos de nossa época: eis aí uma proposição que poderíamos inscrever como epígrafe a este livro.
Mas, nas questões difíceis, obscuras, incertas, um novo dever impõe-se-nos, qual seja o de examinar, de analisar as coisas com a mais severa circunspecção e não admitir, nisto como em tudo, aliás, senão o que é certo. Não conviria, a pretexto de progresso, substituir uma incredulidade sistemática por uma credulidade desprovida de todo senso crítico, e talvez não seja inútil, antes de entrar no âmago do nosso estudo, mostrar igualmente, por alguns exemplos, quanto é necessário mantermo-nos em guarda contra esse excesso contrário, não menos censurável, não menos perigoso que o primeiro.
A espécie humana forma, aliás, uma ordem composta, de uma diversidade realmente digna de nota. Do mesmo modo que há criaturas que não crêem em nada, encontram-se outras, não menos numerosas, que em tudo acreditam. A credulidade dos homens e das mulheres é verdadeiramente sem limites. As mais fantasiosas asneiras têm sido acolhidas aceitas, defendidas. E, observação assaz singular, são quase sempre os espíritos mais cépticos os que têm sido vítimas das mentiras mais audaciosas e que têm sustentado as maiores sandices. Um olhar de investigação, lançado sobre a humanidade, mostra-nos que tanto os crédulos como os incrédulos têm sido vítimas de sua maneira de pensar.
Ainda aqui o que temos não é senão o embaraço da escolha, e tão inumeráveis são os exemplos, que o nosso trabalho consiste apenas em abaixar-nos para apanhá-los.
Não vos recordais da história do dente de ouro, de que fala Fontenelle em sua História dos Oráculos? Nem por ser antiga deixa ela de ser menos típica. Em 1593 correu o rumor de que haviam caído os dentes de uma criança de sete anos, na Silésia, e que lhe nascera um dente de ouro em lugar de um dos seus grossos molares. Hortius, professor de Medicina da Universidade de Helmstoedt, escrevendo em 1595 a história desse dente, assegurou que ela era em parte natural e em parte miraculosa e que esse dente fora por Deus enviado àquela criança para consolar os cristãos atormentados pelos turcos. Não se percebia bem a relação que poderia existir entre esse dente e os turcos, mas a explicação foi tomada, do mesmo modo, a sério. No mesmo ano, Rullandus escrevia a propósito uma segunda história e, dois anos após, Ingoslsterus, outro sábio, publicou uma terceira memória em contradição às duas primeiras. “Um outro grande homem, chamado Libávius – acrescenta Fontenelle –, reuniu tudo o que tinha sido dito a respeito do dente e juntou-lhe seu modo de ver particular. Nada mais faltava a tantas obras preciosas do que demonstrar que o dente era, de fato, de ouro. Chamado um ourives para examiná-lo, constatou-se que tudo se resumia em uma folha de ouro aplicada ao dente com bastante arte. Tinham-se, porém, escrito livros sobre o caso, antes de consultar o ourives.”
Há mais de um dente de ouro na história da credulidade antiga e moderna.
Não vos lembrais também dos ratos de tromba de que foi vítima, há meio século, um sapientíssimo naturalista?
Certo zuavo, para dar utilidade aos lazeres que o governo fazia-o ter na África, distraía-se em praticar o enxerto animal nos ratos. Inseria ele uma ponta de cauda no focinho e a junção operava-se tão bem como a reconstituição do nariz com um fragmento de pele. Um sábio do Muséum de Paris pagou muito caro pelo primeiro rato, que lhe foi enviado como espécime de uma espécie de roedores até então desconhecida. Levaram-lhe outros, que ele igualmente comprou com grande generosidade. Parece-me que somente com o cruzamento foi ele desenganado, pois as uniões entre ratos e ratas de tromba não produziram senão camundongos da mais vulgar espécie.
Assinalemos, a esse propósito, que sendo o homem de ciência, por sua própria natureza, profundamente honesto (por isso que não haveria ciência sem honestidade) e não estando acostumado a desconfiar dos objetos com os quais trabalha, é mais fácil de ser enganado que muitos outros. Em astronomia, em química, em física, em geologia, em história natural não há mentiras. Para um matemático, para um geômetra, 2 e 2 são 4 e os três ângulos de um triângulo são iguais a dois ângulos retos. Esse testemunho de retidão e de natural franqueza não parece desgraçadamente aplicável nem aos negócios, nem à política, nem às ocupações habituais dos seres humanos em geral.
Conheci um eminente geômetra, um dos nossos mais sábios professores da Escola Politécnica, membro do Instituto, dos mais distintos e dos mais acatados, homem de altas qualidades intelectuais e morais. Não foi ele vítima do embuste mais audacioso que se possa imaginar e não se apresenta ele à nossa lembrança como o tipo mais consumado do homem crédulo – e de uma credulidade sem limites? Um hábil falsário, Vrain-Lucas, lisonjeando seu gosto imoderado pelos autógrafos, não lhe vendeu, a preço de ouro, falsos autógrafos de Pascal, de Newton, de Galileu, de Henrique IV, de Francisco I? E em seguida cartas de Carlos Magno, depois de Vercingétorix!... de Pitágoras!... de Arquimedes... de Cleópatra!... e, melhor ainda, de Lázaro, o ressuscitado! de Maria Madalena! e, creio mesmo que de Jesus Cristo! O Sr. Michel Charles comprou, em sete anos (1862-1869), 27.000 desses autógrafos pela soma redondinha de 140.000 francos! Não obstante a habilidade do falsário, podia-se entretanto assinalar, desde a origem, certas nuances suscetíveis de fazer suspeitar a autenticidade das peças em questão. Recordo-me, entre outras, de uma carta de Galileu, na qual ele dizia que se poderia encontrar um planeta longínquo fazendo observações nas circunvizinhanças de Saturno. O mistificador tivera a audácia de fazer predizer por Galileu, em 1640, a descoberta de Urano, realizada por Herschel em 1781, e, confundindo a órbita com o corpo celeste que a percorre, fazia dizer ao astrônomo italiano que o planeta estava por detrás de Saturno. Perdi meu tempo a calcular a posição de Urano pela época da suposta carta: o planeta não se encontrava absolutamente na região do céu em que brilhava Saturno. Tracei o respectivo diagrama (Vide Astronomia Popular, livro IV, cap. I) e fui mostrar ao sábio geômetra que tolice estava sendo atribuída a Galileu.
Com estupefação da minha parte, M. Charles respondeu-me que “isso não queria dizer nada” e que estava seguro da autenticidade da carta. Mostrou-ma. Estava escrita com uma letra semelhante à de Galileu, em antiga folha de papel filigrana amarelecido, dobrada e revestida dos carimbos postais da época. A ilusão era verdadeiramente completa. Mas dizer que se pode encontrar Urano por detrás de Saturno é uma frase de menino de escola.
Tão cego, porém, já se achava o amador de autógrafos que, poucos meses depois, estava totalmente disposto a aceitar, com incrível facilidade, um salvo-conduto escrito por Vercingétorix em francês (!) para o “imperador Júlio César”.
Não sei se haverá exemplos de credulidade mais fortes do que esse!
Confessemos que se trata, em todos esses casos, de rudes lições de que todos nós devemos recordar.
Estou ouvindo daqui espíritos menos sábios, que se julgam muito mais fortes, dizerem com seguridade: “Não seria a mim que tal coisa sucederia!”
Parece difícil, sem dúvida, descer inteiramente por semelhante declive. Mas tenho-me apercebido, mais de uma vez, de que mesmo aqueles que se julgavam superiores tinham certas fraquezas assaz curiosas: jantavam mal, por exemplo, se estavam treze à mesa, batiam em qualquer metal ao terem conhecimento de uma desgraça, receavam ficar doentes se quebravam um espelho, tremiam diante de um saleiro virado ou de duas facas colocadas em cruz, etc.
Cidadãos muito sérios afirmavam-me ontem que as fases da Lua têm influência sobre os ovos, as mulheres, o vinho em garrafas, o crescimento dos cabelos e o corte das árvores.
Não sejamos demasiado altivos!
Quantas pessoas ainda há que hesitam em encetar viagem em sexta-feira ou em dias 13? Consultai as estatísticas da arrecadação dos caminhos de ferro, dos tramways e dos ônibus e ficareis estupefatos com as diferenças observadas. Visitai Paris e perdei vosso tempo em verificar os números 13 das avenidas, dos bulevares e das ruas; vereis com os vossos próprios olhos quanto eles fazem falta nesses lugares, substituídos por 12 bis!
Isso nos lembra a origem dos anos bissextos: tendo os Romanos dobrado um dia, intercalaram-no sub-repticiamente no fim de fevereiro, sem designação alguma, porque os deuses não queriam. E porventura nunca encontrastes pessoas que consultam algumas vezes os sonâmbulos “extralúcidos” das feiras de porcos?
Nossos antepassados, da idade da pedra e do bronze, tremendo diante de todas as forças da natureza, que tinham a combater, divisaram essas forças e povoaram os campos, os bosques, as fontes, os vales, as cavernas, as cabanas, de seres imaginários cuja lembrança não desapareceu totalmente, conservada como herança do passado pelas atuais gerações. As superstições populares estão por toda parte espalhadas e os mais estranhos prejuízos acham-se ainda associados às ações de uma parte da humanidade.
Há pessoas que continuam a crer, como no tempo dos Romanos, que se podem conjurar os furacões e as tempestades. A esse propósito existia, pelo ano de 1870, em uma aldeia das cercanias de Issoire (Puy-de-Dôme), um padre que gozava da reputação de garantir a sua paróquia mediante o poder de que dispunha de deslocar para as regiões vizinhas o vento e o granizo prestes a desabarem sobre a dita paróquia. Havia mesmo quem o visse, à janela do campanário, fazer esconjuros. Por sua morte, foi ele substituído por um pároco que teve a pouca sorte de assistir a uma violenta tempestade pouco depois de haver entrado em suas funções. Tinham ido os camponeses pedir-lhe que os garantisse, mas ele não o conseguiu e a partir desse momento o epíteto de saraivoso (grêleroux) foi-lhe aplicado e a população lhe votou uma tal antipatia que o bispo se viu obrigado a transferi-lo.
Um velho marujo, morador de Toulon, gozava da reputação, pelo ano de 1885, de fazer sobrevir a tempestade justamente no dia das peregrinações a Nossa Senhora de Maio, na montanha de Sicié. Acreditava-se nessa crendice tão sinceramente, que se lhe ocultavam, com o maior cuidado, todos os projetos da aludida peregrinação.
Poderíamos citar outros exemplos análogos. Santo Eutrópio, patrono de Vieux-Beausset, perto de Toulon, passa por ter a faculdade de provocar a chuva, quando ele o queira. Há alguns anos, em um dia de maio, o guarda da ermida em que se acha a velha imagem do santo, desceu-a de seu pedestal, levou-a para a porta e se pôs a moê-la a pancadas. Um transeunte, admirado de semelhante tratamento, perguntou-lhe a razão daquilo: “Oh, meu caro senhor, replicou o sacristão, se eu não a tratasse deste modo, nada poderia fazer!”.[i] Pouco depois a chuva começou a cair e as colheitas foram salvas.
A 13 de julho de 1899, perto de Albertville (Sabóia), o cura de Thénésol benzeu uma nova cruz, “a cruz da Bela-Estrela”, erigida com grande cerimonial a uma altitude de 1836 metros, no lugar da antiga, queimada pelos habitantes da comuna de Scythenex, sob o pretexto de que ela preservava das chuvas de pedra, em detrimento seu, a comuna vizinha de Mercury-Gémilly. Trezentas pessoas realizaram, sob uma horrível soalheira, a peregrinação desta reconstituição.
Narra o Sr. Bérenger-Féraud, em sua interessante compilação, Superstições e Sobrevivências, que em certos lugares da Provença as mulheres do povo têm uma receita infalível para curar as crianças da coqueluche: é fazer a criança passar sete vezes em seguida sob o ventre de um jumento, indo da direita para a esquerda, tendo o cuidado de jamais fazê-lo da esquerda para a direita. Há jumentos de maior ou menor reputação, conforme sua virtude curativa. Conhecia-se um excelente, na aldeia de Luc, alguns anos atrás, e sua reputação era tão grande que se lhe levavam as crianças de Draguignan e até de Cannes, isto é, de mais de sessenta quilômetros.
Conta o mesmo autor que, tendo ido, em 1887, a uma casa religiosa de certa cidade importante da Provença, notou um de seus amigos que a imagem de São José, que ornava o parlatório da comunidade, tinha o rosto voltado contra a parede. Supôs, a princípio, que se tratasse de inadvertência de qualquer doméstico; informando-se, porém, veio a saber que o santo fora posto em penitência por não haver atendido às súplicas que lhe tinham sido dirigidas. O inquérito foi levado um pouco mais longe e revelou que se lhe suplicara inspirar a um vizinho muito piedoso a idéia de deixar em testamento à comunidade um pedaço de terreno, de que ela necessitava. Fizera-se mesmo saber a esse vizinho muito piedoso que, “se São José continuasse a permanecer surdo às súplicas, seria posto no porão e talvez até se lhe aplicasse uma surra”. O autor acrescenta: “Eu não queria dar crédito ao que ouvia e, entretanto, forçoso foi render-me à evidência, diante das afirmativas de mais de vinte pessoas que tinham tido conhecimento desta punição. Mais do que isso, vim a saber que em certas cidades das Bocas de Ródano, do Lionês, até em Paris, tal prática está em uso na comunidade a que me refiro. Estas precisas indicações não permitem pôr em dúvida a punição do santo, por mais estapafúrdia que pareça.”
No ano de 1850, em Toulon, tendo certa mãe um filho doente, dirigiu suas súplicas a um soberbo Cristo de marfim que ela possuía e pelo qual tinha particular devoção. Esse Cristo provinha, sem dúvida, da pilhagem de uma casa nobre em 1793, porquanto era de grande valor artístico. Ora, a criança morreu, mau grado às preces, às novenas e aos círios queimados. Em um movimento de desespero, a mulher agarrou o crucifixo e lhe disse: “Patife! é assim que respondes às minhas preces. Pois bem! toma!...” Depois, juntando o gesto à palavra, atirou-o pela janela afora.
Narra Saint-Simon, em suas Memórias, que durante o assédio de Namur, em 1692, estando a chover a cântaros no dia de Saint-Médard, os soldados, furiosos com este acontecimento que lhes pressagiava ainda quarenta dias de chuva, encolerizaram-se contra o santo e quebraram com raiva todas as imagens que caíram em suas mãos.
Por vezes consideram-se as coisas mais alegremente, mesmo quando uma novena – ou mesmo duas – não obtêm a cessação das chuvas.
No tempo em que, em Paris, o relicário de Santa Genoveva tinha certa influência, levaram-no em procissão de Saint-Etienne-du-Mont a Notre Dame. Um dia, apenas a procissão saíra à rua, pôs-se a chuva a cair. “A santa se engana – diz ao seu vizinho o bispo de Castres –; ela supõe que lhe estamos pedindo chuva.”
Relata o barão d’Hausser, em sua Viagem à Itália, a conversação seguinte ouvida por ele em Nápoles:
“– Como passa vosso filho?
– Continua com febre.
– Convém acender uma vela a santa Gertrudes.
– Isso não deu bom resultado.
– Em que capela fostes?
– Da rua de Toledo.
– Ah! pobre mulher! esta santa Gertrudes é a pior de toda Nápoles. Nada se consegue com ela. Ide, portanto, à igreja da praça do Carmo; vereis que a santa Gertrudes de lá é muito mais piedosa para com os pobres.”
Nessa mesma cidade de Nápoles, os que têm assistido ao milagre anual da liquefação do sangue de São Januário sabem quanto os espectadores, os fiéis, ficam nervosos, impacientes, quando ela tarda a produzir-se. Em 1872, tomei um péssimo partido adotando a resolução de olhar de muito perto o famoso relicário exposto à adoração da multidão. – Todo o mundo conhece a história do General Championnet, em 1799 (sucedida, sem dúvida, não a ele próprio, mas a um dos seus lugares-tenentes).
Há alguns anos, visitando a cripta da Virgem negra, em Chartres, entabulei ligeira conversação com um camponês, ao sair da igreja. “Oh! senhor – disse-me ele –, não é ela tão grande dama como Nossa Senhora das vitórias, de Paris, e ela nos entende bem melhor.” Lembrou-me esta opinião a de Luís XI, retirando de seu chapéu a imagem de Nossa Senhora d’Embrun, para substituí-la pela de Nossa Senhora de Cléri, e endereçando-lhe em seguida, com mais confiança, a sua real oração.
Incontestavelmente, as superstições populares acham-se tão espalhadas que por toda parte as encontramos. Atravessava eu recentemente uma velha aldeia da Idade Média, inclinada como um ninho de águia sobre uma montanha escarpada do departamento dos Alpes Marítimos, e, como estivesse em visita à igreja, o médico da localidade, sábio arqueólogo, que me acompanhava, chamou-me a atenção para um tronco no qual os fiéis lançam pequenos bilhetes, acompanhados de uma oferenda, endereçados a Santo Antônio de Pádua, para recuperarem objetos perdidos. A resposta chega, muito freqüentemente, no mesmo bilhete, por um pequeno nicho vizinho.
Reveste a credulidade todas as formas. A dos usos e dos costumes, mais ou menos extravagante, relativos ao casamento, não é das menos admiráveis e não será sem interesse recordar alguns exemplos dessa credulidade.
Na aldeia de Bauduen, na Provença, há um rochedo formando plano inclinado. No dia da festa do padroeiro, as moças desejosas de se casarem vêm, desde tempos imemoriais, escorregar por esse rochedo, o que o tornou polido como mármore.
Na aldeia de Saint-Ours, nos Baixos Alpes, vê-se também uma pedra sobre a qual as moças vão escorregar para encontrar marido e as recém-casadas para se tornarem mães.
Em Loches as mulheres sem filhos vão escorregar sobre uma “mó de Saint-Uurs” como as de Bauduen e dos Baixos Alpes. Esta crença não data de hoje, pois a encontramos já na Grécia antiga. Acha-se ela muito em voga na Tunísia.
A peregrinação a Saint-Baume, entre Marselha e Toulon, passa, desde mais de mil anos, por assegurar o casamento e a progenitura, e é objeto de um culto muito fervoroso da parte dos camponeses da Provença.
Em grande número de regiões da França, as moças pressurosas por se casarem vão jogar folhas de salgueiro ou pedaços de pau nas fontes. Se a folha segue diretamente a corrente, ou se a madeira sobrenada, será a moça pedida em casamento antes do fim do ano.
Perto de Guérande, na Bretanha, as moças vão colocar nas fendas de um dólmen pedaços de lã cor de rosa, a fim de se casarem durante o ano.
Em Saint-Junien-les Courbes, na alta Viena, elas evocam Santo Eutrópio, suspendendo ao mesmo tempo a uma cruz a liga da perna esquerda.
Na povoação de Oisans, no Isère, dirigem-se elas, no mês de junho, à capela da montanha de Brandes, perto da qual se encontra uma pedra vertical em forma de cone, de encontro à qual põem-se elas de joelhos, tocando-a devotamente com suas pernas.
Em Laval, na igreja de Avesmères, há uma grande estátua de São Cristóvão, nas pernas da qual as moças e os rapazes que desejam casar-se durante o ano vão pregar alfinetes.
Perto de Perros (Côtes-du-Nord), as raparigas vão em romaria à capela de Saint-Guiriez, para se casarem, e pregam alfinetes no nariz do santo para que se lhes torne ele particularmente favorável.
No vale de Lumain (Sene e Marne), existe um menir, chamado Pedra frígida, no qual os jovens dispostos ao casamento vão enterrar pregos ou alfinetes.
Perto de Troyes, as moças que querem casar-se vão atirar um alfinete sobre um cômoro chamado Cruz de Beigue.[ii]
Nas cercanias de Verdun, as mulheres que desejam filhos vão sentar-se sobre um rochedo, onde se vê a impressão suscetível de ser deixada por uma mulher que estivesse sentada em um bloco plástico, e que nessa localidade se denomina a cadeira de Santa Lúcia. Acreditam elas que esse ato é favorável a seus desejos e parece que Ana d’Áustria aí se assentou antes do nascimento de Luís XIV. O mesmo acontece em Sampiques (Meuse).
Nas Ardennes é a proteção de Santa Filomena que tem mais eficácia no sentido de impedir que as moças “penteiem Santa Catarina”.[iii]
Via-se em Burgos, não há ainda muito tempo, na rua Chevrière, do arrabalde do Castelo, uma estátua do bom São Greluchon, colocada na parede de uma casa, e que as mulheres desejosas da maternidade raspavam, fazendo com o pó assim obtido uma beberagem fecundante. Em Poligny, no Jura, as jovens desposadas vão, com o mesmo fim, abraçar uma pedra ali erguida que é, diz a lenda, a petrificação de um gigante como castigo de haver querido violentar uma rapariga.
Em Dourges, no Tarn, perto da Capela de Saint Ferreol, vêem-se rochedos partidos, pelos quais vão passar, para obterem cura, os paralíticos e os coxos. Na cripta da igreja de Kimperlé há uma pedra vertical contendo um buraco, pelo qual passam os que sofrem de dor de cabeça. Nas charnecas de Saint-Siméon, no Orne, os doentes atravessam um dólmen que passa por ter a virtude de curar grande número de doenças.
Na Provença, departamento de Berry, há a crença nas fontes miraculosas, nos sortilégios, nos condutores de lobos, nos lobisomens.
Certas regiões desse departamento são objeto dos mais supersticiosos terrores; suas florestas são povoadas de lavadeiras noturnas, seus brejos, de fogos-fátuos. Desde o cair da noite, as profundezas misteriosas dos bosques enchem-se de rumores sinistros; lúgubres fantasmas deslizam ao longo das árvores sacudidas por invisíveis forças. Infeliz daquele que se embrenhasse nesses retiros sombrios! Ele não voltaria jamais.
Os moradores das aldeias e das cabanas de uma parte do Bas-Berry continuam a admitir a existência de gigantes que outrora habitaram o país e que formaram as eminências naturais ou artificiais, tão numerosas nessa região. São esses gigantes personificados por Gargântua, cuja lenda, sempre popular, não somente na parte do Indre, que confina com Creuse, mas em todo o oeste da França, é muito anterior ao herói de Rabelais. Rabelais, segundo todas as probabilidades, foi buscar esse mito às crenças de Saintonge, do Poltou e do Bas-Berry, onde ele residia durante algum tempo.
A tradição alusiva às fadas está ainda vivaz em inúmeras localidades da região de Berry; foram elas que, quase por toda parte, edificaram os dolmens e os menires que transportavam em seus aventais de gaze, não obstante o enorme peso desses materiais. São conhecidas geralmente sob os nomes de fadas, martas e outras denominações; em algumas regiões, entretanto, chamam-nas dames, demoiselles, como no meio-dia.
São vistas de noite, a vagar e a celebrar seus misteriosos ritos, em cada caverna, sobre cada rochedo, em torno de numerosos dolmens e menires, espalhados na região vizinha das margens pitorescas dos pequenos rios Creuse, Bouzanne, Anglin e Portefeuille.
As martas são enormes mulheres medonhas, magras, mal vestidas, de longos cabelos negros e eriçados. Do alto da mesa de um dólmen ou do topo de um menir, elas por vezes chamam, ao cair da noite, os pastores e os lavradores, e se estes não se apressam em responder às suas primeiras perguntas elas os perseguem. Desgraçado daquele que não foge precipitadamente e que elas constrangem a suportar seus beijos impudicos.
As fadas são muito mais meigas e muito menos turbulentas do que as martas; elas geralmente consagram seu tempo aos rebanhos. São as encarregadas de velar pelos numerosos tesouros escondidos em maravilhosos subterrâneos, cuja entrada é fechada pelas enormes pedras dos menires e dos dolmens. Entretanto, o seu poder se extingue, todos os anos, no domingo de Ramos.
Em Vertolaye, no Auvergne, vê-se uma pedra oscilante à qual as mães levam os seus filhos, para que sejam sólidos como a pedra e conservem sempre o uso de seus membros.
Perto de Sait-Valery-en-Caux, sobre os penhascos, avistam-se as ruínas da antiga capela de Saint-Léger, da qual nada mais subsiste do que a torre quadrada. As crianças retardatárias são para aí levadas, fazendo-se-lhes dar cinco voltas às ruínas, a fim de que andem mais depressa.
Santo Huberto protege os caçadores, São Roque cura a raiva, São Cornélio salva o gado, São Cláudio cura os cravos, Santo Anão as infecções cutâneas, etc.
Essas crendices são muito antigas. Conta Pausanias que existia em Hyette, na Beócia, um templo de Hércules com uma pedra bruta que curava os doentes; em Alpenes, uma pedra consagrada a Netuno possuía a mesma propriedade, etc.
Assisti algumas vezes, mesmo nas cercanias de Paris, em Morsang-sur-Orge, pouco distante de Juvisy, nas festas do solstício do verão, à fogueira de São João, outrora pagã, hoje cristianizada, mas conservando sempre o cunho da supersticiosa credulidade antiga. O Sol, deus da vida, acaba de deitar-se no ocidente luminoso, o crepúsculo envolve a natureza; na praça da igreja fora preparada uma fogueira com um belo pinheiro cortado na floresta próxima; sai um padre da igreja, acompanhado pelos meninos do coro e pelos cantores, e vem benzer a fogueira; põe-se fogo à lenha e as chamas crepitam refulgentes. Toda a aldeia está presente; os rapazes e as moças aproximam-se, esperam que fique apenas o braseiro final; as moças devem saltar sem queimar-se e a mais audaciosa é a que fica mais em destaque: ela se casará com toda certeza antes do fim do ano. Depois os tições devem ser retirados antes de serem consumidos: eles preservarão as casas, com a mesma virtude das palmas do domingo de Ramos, contra os incêndios e o raio. Muitos depositam ainda hoje a mais ingênua confiança nesse uso tradicional, que remonta aos galo-romanos de há quinze ou dezoito séculos e sem dúvida a tempos mais remotos. De resto, as fogueiras de São João subsistem ainda em nossos dias, na maior parte da França – ia eu escrever da Gália.
Quem não conhece igualmente os crepes da Candelária? São eles felicidade na agricultura, no comércio, em todos os empreendimentos; é preciso que sejam feitos nesse dia (2 de fevereiro) e sobretudo não perdê-los. Napoleão, antes de partir para a Rússia, fazia alguns desses crepes e dizia rindo: “Se eu virar este, ganharei a primeira batalha! e aquele, a segunda!” Conseguiu ele virar um, dois três, mas o quarto caiu ao fogo, pressagiando – diz um historiador – o incêndio de Moscou.
Em Berry, na Châtelette, o santo Guinholet torna as mulheres fecundas; em Bourges é o santo Greluchon; em Bourg Dieu é são Guerlichon; em Vendres, no Allier, é são Phoutin; em Sampigny, no Meuse, é o santo Foutin; em Auxerre é são Faustino, etc. Não obstante a vigilância dos párocos, as mulheres raspavam certa parte do corpo desses santos e bebiam esse pó em um copo d’água.
Em Gargilesse, no Creuse, tendo o cura feito desaparecer da igreja o santo Greluchon, vão atualmente as mulheres, que sonham com a maternidade, raspar uma estátua de mármore do túmulo de Guilherme de Naillac que, o quanto parece, já está sobremodo gasta.
Em Rocamadour, no Rouergue, as mulheres que não estão satisfeitas com seus maridos vão beijar e dar voltas ao ferrolho da porta da igreja, ou então tocar em uma barra de ferro que se chama o alfange de Rolando.
Em muitas províncias acredita-se ainda em diversos gêneros de feiticeiros. Na Provença, por exemplo, acredita-se nos mandingueiros que impedem a consumação dos casamentos, como se acredita na Itália em maus olhados, na Alsácia em lobisomens. Mas acredita-se também nos meios de anular as feitiçarias. Notadamente em Toulon, as costureiras põem, ainda hoje, um pouco de sal na ourela dos vestidos de noiva, pois o sal tem a propriedade de assegurar a perfeita felicidade das recém-casadas.
Em paris, como em Roma no tempo de Tibério, não desapareceu o hábito de consultar os que tiram horóscopos predizendo o futuro pelas regras astrológicas da posição das estrelas e dos planetas no dia do nascimento. Ainda há astrólogos! Ora, como se pode crer no valor de um horóscopo, quando se sabe que nasce em média uma criança por segundo no conjunto da população do globo, ou sejam, sessenta por minuto, cerca de 3.600 por hora ou 86.400 por dia e que, por conseguinte, se as estrelas e os planetas tivessem uma influência real nos destinos, dez crianças nascidas no mesmo momento deveriam ter o mesmo destino; uma rainha e uma aldeã que se tornam mães no mesmo tempo deveriam dar à luz a dois seres regidos pelas mesmas leis, etc.
A crença nos amuletos, nos talismãs, nas medalhas, nos escapulários é tão vivaz entre os povos civilizados como entre os selvagens; na França, como no Sudão e no Congo. Basta para que fiquemos, a respeito do assunto, bem edificados, ler certas obras, tais como os livros do Sr. de Ségur, de Dom Guéranger ou do abade de Saint-Paul sobre a medalha de São Benedito. Constata-se, por exemplo, de tais leituras, que essa medalha de São Benedito, aprovada pelo papa Benedito XIV, cura todas as moléstias: as dores de dentes, de garganta, de cabeça; purifica a água dos incêndios, protege os cavalos, as vacas, os gatos, as galinhas, as árvores, os vinhedos, os vidros de lampião, etc.
Eu nada invento. Eis aí algumas citações:
“Certa vaca tossia de uma forma violenta – escreve Dom Guérenger (Cruz de São Benedito, pág. 72) –, não comia absolutamente nada e não dava mais leite. O visitador traçou sobre a fronte do animal o sinal da cruz, empregando a fórmula inscrita sobre a medalha; recomendou que mergulhassem esta em um pouco de água e de farelo, que se daria a beber todos os dias à vaca (boa precaução) até perfeita cura, e pendurou uma medalha no estábulo. Algumas semanas mais tarde teve ele a satisfação de constatar que a vaca se achava completamente restabelecida.”
A mesma medalha atua sobre as árvores. “Cortei todos os galhos grandes, deixando apenas o tronco, escreveram ao autor da obra Origem e efeitos admiráveis da cruz de São Benedito, o abade de São Paulo. Demonstrando-me o corte de serra que os ramos estavam realmente mortos, coloquei imediatamente sob a casca uma medalha de São Benedito, suplicando ao grande santo que fizesse reviver aquela árvore tão bela que fazia o encanto da região. Na primavera ela readquiriu sua luxuriante folhagem.”
Durante a Comuna de Paris, “medalhas introduzidas na barricada da rua de Rivoli preservaram o ministério da Marinha, assim como o depósito das cartas e plantas”.[iv]
Quem não se lembra igualmente da história da santa lágrima de Vendôme, derramada por Jesus-Cristo sobre o túmulo de Lázaro, recolhida por um anjo e conservada em um cofrezinho de ouro? Tem sido ela durante séculos, em Vendôme, a fonte de numerosos milagres e de grandes proventos. E os cabelos da Virgem Maria, que nos são mostrados em Nápoles! E a túnica inconsútil de Jesus, oferecida à veneração dos crédulos, na igreja de Argenteuil e em Trèves. E o santo Sudário de Jesus-Cristo, objeto de veneração em Turim e em Cadouin (Dordogne) ainda que esta peça antiga mais ou menos apócrifa tenha sido queimada durante a vida de Rabelais. E as ossadas dos reis magos, que são mostradas em Colônia e em Milão...!
Lê-se no Grande Dicionário Larousse, geralmente bem informado: “O prepúcio de Jesus-Cristo figura brilhantemente entre as relíquias célebres. Contam-se nada menos de sete prepúcios entregues à piedosa e grotesca veneração dos fiéis. Um dos que gozam da maior reputação é o do convento das Ursulinas de Charroux. Teve ele enorme destaque, em 1863, nos jornais em que tiveram lugar, a esse respeito, freqüentes controvérsias, nas quais tomou parte o bispo de Poitiers.” Existe uma confraria especial para esse culto da circuncisão, festa que, muito ilogicamente aliás, abre os nossos calendários cristãos.[v]
A credulidade está por toda parte. Vede, nas igrejas, os círios que são acesos diante das imagens e das estátuas dos santos, para obter do céu a cura de uma doença, o bom êxito de um negócio, de um exame, etc. Estes círios que representam, ardendo, preces elevadas ao céu, não recordam os moinhos de orações que os tibetanos fazem mover, supondo que atraem as bênçãos divinas?
Todo o mundo conhece a história de Nossa Senhora de Loreto, da casa da Virgem Maria, “Santa Casa”, que teria feito uma viagem aérea de Nazaré a Loreto, no ano de 1294, detendo-se na Dalmácia.
Ainda recentemente, não era de bom gosto duvidar da autenticidade dessa casa e do seu transporte miraculoso através dos ares.
Hoje, Nossa Senhora de Loreto está substituída por Nossa Senhora de Lourdes. Os administradores desta exploração, em regra, nem mesmo dão-se ao trabalho de disfarçar o desprezo que professam pela credulidade dos fiéis. Basta ler, para julgá-lo, a inscrição que eles gravaram em letras de ouro sobre uma placa de mármore, na qual faz-se dizer à mãe de Deus, dirigindo-se à pequena Bernadette: “Faze-me a graça de voltar aqui”, ou “Desejo que venha muita gente”, ou ainda “Lavai-vos nesta água e comei desta erva”.[vi]
Não ataco aqui o sentimento religioso em si mesmo (do mesmo modo que não ataquei a Ciência no capítulo precedente), pois o tenho por infinitamente respeitável; mas penso que todos devemos repelir as superstições, as puerilidades, os erros e as mentiras a que ele serve de pretexto.
Não é raro encontrar pessoas que negam imperturbavelmente as questões de que nos ocupamos neste livro e que aceitam decididamente as absurdidades mais colossais, por exemplo, a anedota do dilúvio universal narradas na Bíblia, na qual está escrito que “tendo sido abertas as comportas do reservatório das águas superiores, a água despenhou-se do céu em cataratas durante quarenta dias e quarenta noites, elevou-se quinze polegadas acima das mais altas montanhas em toda a terra e levou durante cento e cinqüenta dias a arca na qual Noé fizera entrar um macho e uma fêmea de todas as espécies de animais existentes sobre o globo.” Nenhum conto das Mil e uma noites chega à primeira cavilha desta arca; mas a credulidade religiosa é tão cega que a aceita sem comentários, do mesmo modo que afirma o milagre de Josué, fazendo parar o Sol! e as palavras da mula de Balaão!
E com relação aos assuntos de que nos deveremos ocupar neste livro – relatos de aparições, de manifestações, de experiências de Hipnotismo e de Espiritismo –, quanto não se tem soltado as rédeas à credulidade? Conheci um oficial de grande valor que não duvidava um só instante da identidade dos nomes dados por sua mesa e que se entretinha com Leibnitz e Spinosa todos os domingos, depois de almoçar. Deste gênero conheci um outro que discutia filosofia social com Jean Valjean, sem ter jamais sonhado sequer com a origem puramente romanesca dessa personagem imaginária. Uma grande e nobre senhora, já de idade madura, muito inteligente, que outrora conhecera muito intimamente lorde Byron, evocava-o todos os sábados à noite, para consultá-lo sobre suas operações financeiras. Certo doutor em medicina da Faculdade de Paris escolhera por amigos do outro mundo o Dante e Beatriz, que vinham regularmente conversar com ele, mas “não juntos”, dizia ele, porque “lhes é defeso aproximarem-se um do outro.” Uma devota do Espiritismo vivia gravemente ocupada em fazer casamentos póstumos no outro mundo. Um médium extravagante, que tivera doze filhos e perdera sete deles, perguntava a estes, todos os meses, pelo seu estado de saúde e por suas ocupações, do que tomava nota regularmente. Um outro chamava “a alma da Terra”, que lhe respondia e que dirigia todas as suas idéias, etc.
O Espiritismo tem sido empregado, como a religião, em proveito de usos que não têm senão vaga relação com ele. Tem servido para fazer casamentos, sérios ou passageiros, para explorar caracteres fracos, para conseguir testamentos. Uma senhora do meu conhecimento tornou-se princesa, fazendo dizer, por uma mesa, àquele a quem ela cobiçava, o nome que sua primeira esposa lhe designava, ela própria, para sucedê-la. Conheci uma viúva cujo filho recém-nascido foi anunciado e aceito como a reencarnação de uma criança ternamente amada e laço providencial perfeitamente indicado para um novo casamento. Também conheço uma outra desta espécie que, a pretexto de Espiritismo, vende anéis cabalísticos, por meio dos quais obtém a cura de todas as moléstias, etc.
Uma boa história, igualmente, é a do Diabo no décimo nono século, da franco-maçonaria luciferiana e de Diana Vaughan, que mistificou uma parte notável do clero francês, vários bispos, dois cardeais e o próprio papa Leão XIII, ainda que fosse forjada, em todas as suas peças, por Léo Taxil, como ele mesmo o confessou cinicamente em 1897. As aparições de diabos e de diabas, nas cerimônias ímpias e obscenas, tinham sido tomadas a sério por graves teólogos.
Pode-se confessar, de resto, que a credulidade política é ainda mais extravagante do que a credulidade religiosa. Quando se pensa que na hora atual os franceses, os alemães, os russos, os ingleses, os italianos, os austríacos, etc., acreditam ainda que devem ser soldados e habitar casernas nauseabundas, fazendo exercícios grotescos, e que todos os cidadãos da Europa despendem, para a glória de pretensas fronteiras traçadas sobre o papel, 22 milhões por dia, empregados em impedir que os homens fiquem em suas casas, cada um cuidando de seu trabalho e de seus deveres, sente-se verdadeiramente que a idade da razão ainda não soou para o nosso pobre pequenino planeta e que a servidão voluntária faz parte do patrimônio da humanidade.
Sim, a nossa espécie é muito imperfeita e a credulidade humana oferece-nos objetos tão dignos de atenção como a incredulidade de parti pris.
Quanto é, por isso, difícil conservar a gente justo meio termo e seguir tranqüilamente os preceitos da razão!
Sim, a credulidade existe sempre, em perpétuo equilíbrio com a incredulidade. Desconfiemos tanto de uma como de outra. Os áugures não morreram, o progresso nem matou os arúspices, nem aboliu os presságios e não avança depressa em inteligência a espécie humana. Acrescentarei, entretanto, com Humboldt, que um presunçoso cepticismo que rejeita os fatos sem exame é, em certos aspectos, mais censurável do que uma credulidade irrefletida.
Seria fácil multiplicar esses exemplos. Quis simplesmente mostrar, neste segundo capítulo, que devemos estar em guarda contra a credulidade, do mesmo modo que contra a incredulidade. Aí estão dois excessos contrários, a igual distância dos quais nos devemos esforçar para nos mantermos, na aceitação e no exame dos fatos extraordinários de que nos vamos ocupar.
Nada negamos; nada afirmamos: observamos imparcialmente. É talvez a posição mais difícil de manter nesta ordem de coisas. Da minha parte, suplico àqueles que fossem tentados a me acusar, seja de credulidade, seja de incredulidade, que não o façam levianamente e que não percam de vista que me conservo constantemente em guarda: Eu investigo.






Camille Flammarion: Livro: O desconhecido e os Problemas Psíquicos...
Fonte: www.autoresespiritasclassicos.com

                                   

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