Capítulo V ...
Após ter lançado um rápido olhar sobre essas duas faces
da questão do progresso: o problema político e o problema social, resta-nos
examinar uma terceira face do assunto, que não é nem a menos delicada, nem a
menos perigosa, isto é, a questão religiosa.
Aqui, mais do que nunca, devo esforçar-me para permanecer
numa esfera elevada dos princípios, evitando descer para a arena onde se agitam
as paixões furiosas e onde se entrechocam os interesses espezinhados.
O que é a religião? E é preciso uma religião? A palavra
religião vem do latim religare, que
significa religar, unir.
Tomada no sentido exato da palavra, a religião deveria
ser uma força, um elo que unisse os homens entre si e que os unisse também a um
princípio superior das coisas.
Na alma humana existe um sentimento natural que a eleva
acima de si mesma para um ideal de perfeição no qual se resumem essas potências
morais denominadas o bem, a verdade e a justiça. Esse sentimento, quando está
esclarecido pela ciência, quando é fortificado pela razão, quando tem por base
essencial a liberdade de consciência, da consciência autônoma e responsável, é
o mais nobre de quantos possamos conhecer.
Ele pode tornar-se um motor das maiores ações e é também
uma das manifestações da lei sublime de progresso. Todavia, senhores, não é o
que acontece entre as religiões que cobrem a superfície do mundo. E quando eu
digo as religiões, pretendo falar das religiões sacerdotais.
O sentimento religioso, mantido e desenvolvido por
elas, é baseado na liberdade de consciência, é motivo de progresso, é um liame
para a humanidade?
Não! Vós sabeis que essas religiões se excluem mutuamente,
combatendo-se e perseguindo-se quanto podem. Cada uma delas pretende ser a
única verdadeira, a única legítima, e cada uma delas acusa as outras de erro ou
impostura e as outras, por sua vez, lhe devolvem suas acusações e seus
anátemas.
Entretanto essas religiões, tão hostis entre si, entendem-se
todas num ponto: é quando se trata de oprimir o pensamento, de paralisar sua
evolução secular, de combater o pensamento em suas aspirações, em seus esforços
para o progresso. Todavia foram homens de progresso que as fundaram, espíritos
sequiosos de justiça e apaixonados pelo bem que as estabeleceram. Eles se chamaram
Cristo, Buda, Confúcio. Eles trabalharam e sofreram pela humanidade, porém,
quando partiram, seus sucessores se apoderaram de suas idéias e as modificaram
ao bel-prazer, fazendo delas um instrumento de servidão, de domínio; o culto e
a fé ficaram como uma pedra sepulcral que as castas sacerdotais quiseram
colocar sobre o pensamento e a liberdade. Porém, após séculos de silêncio e de
morte, o pensamento, que não pôde morrer, despertou. Saiu do túmulo onde
acreditaram tê-lo sepultado para sempre e eis que ele se ergue na luz, diante
de velhas fórmulas, de dogmas obscuros, e chamando para si a humanidade
inteira, ele lhe diz: Julga e sentencia entre nós.
Em matéria religiosa, o problema se coloca, em nosso
país, entre o Catolicismo e o livre pensamento. O Cristianismo primitivo, saído
do meio do povo e que combatia a aristocracia e o sacerdócio judeu, tinha
começado pelo Comunismo, pela eleição dos padres, dos padres casados.
O Catolicismo, continuador do Cristianismo, apresentou
a infalibilidade papal e no Syllabus
a declaração de princípios, cujo último artigo é este: “Anátema contra aqueles
que pretendem que o pontífice romano deve se reconciliar com o progresso, o
liberalismo e a civilização moderna.”
Não me limitarei a examinar os dogmas e os ensinos do
Catolicismo e cada um de vós pode dedicar-se a esse exame. Limitar-me-ei a
fazer um paralelo no que nos ensina, de um lado, a religião católica e, de
outro, a ciência apoiada na razão, a propósito de duas concepções essenciais
que dominam toda a existência humana e toda a organização social, isto é, sobre
a concepção do universo e da finalidade da vida.
As idéias que fazemos sobre a organização do universo,
sobre o papel que cada um de nós deve desempenhar nesse vasto teatro do mundo,
tais idéias, vós compreendeis, senhores, são de uma importância capital, porque
é após elas que nós devemos dirigir todos os nossos atos. É consultando-as que
assinalamos uma finalidade para a vida e marchamos para esse fim. É aí que está
a base de toda a civilização; é essa concepção do mundo e da vida que inspira
toda a organização e fornece ao corpo social sua direção e sua forma de
governo.
Portanto daí resulta que, se tal idéia está de acordo
com a verdade, as leis sociais estarão calcadas em leis naturais e a harmonia
reinará no mundo; se essas idéias estiverem erradas e contrárias às leis do
universo, daí decorrerão o caos, a esterilidade, a decrepitude.
Examinemos, então, a concepção do mundo como o Catolicismo
nos revela e sobre a qual está estabelecida a sociedade monárquica, feudal e
autoritária. O mundo, o universo, diz a Igreja, foi criado em seis dias e há
sete ou oito mil anos, pela única vontade de Deus, que fez todas as coisas do
nada.
Deus, diz o catecismo do Concílio de Trento, formou os
céus. Enfeitou-os com o Sol, a Lua e outros astros, para servirem de sinais,
distinguindo as estações e os dias, depois segue a enumeração da obra de cada
um dos seis dias da criação, durante os quais Deus fez sair da terra, num momento
espontâneo, os homens, as plantas e os animais. Assim, agradou um dia a Deus
criar o mundo, porém Deus fica fora de sua obra como a obra está fora do
obreiro.
Esse universo, tirado do nada, pode ser destruído, aniquilado
e Deus o mantém e governa através do milagre.
O homem, pelo pecado original, está condenado ao sofrimento,
ele não se pode salvar por si mesmo, nem merecer o céu sem o socorro da graça,
isto é, do bel-prazer, e sempre diante dele, como uma ameaça terrível, aparece
a perspectiva dos braseiros eternos. Assim, não há nenhuma idéia de lei, de
ordem e de solidariedade. Nada além da vontade de Deus e do capricho do
Todo-Poderoso.
É sobre essas noções que o mundo viveu durante vinte
séculos e é sobre esses fundamentos que se edificou a sociedade da Idade Média.
No que concerne à estrutura do universo, são Tomás de Aquino acrescenta que a
Terra, centro do universo, está imóvel, recoberta por uma abóbada sólida, firmamentum, dividida em várias camadas,
que se engastam umas nas outras, e que os astros são como centelhas, cravos de
ouro colocados nessa abóbada como ornamentos.
Vejamos, agora o que nos diz a ciência sobre esse mundo,
sobre esse universo. A Terra é um globo de três mil léguas de diâmetro que gira
sobre si mesma e gravita em torno do Sol. Em sua corrida rápida ela percorre
trinta mil léguas por segundo. Estamos longe da imobilidade e esse globo não é
o único nas profundezas do céu.
De todos os lados há legiões de esferas, sóis
incontáveis se movimentam nos abismos do espaço. Perto deles a Terra é um grão
de areia, como um corpo mesquinho na família dos corpos celestes.
Entre os planetas que circulam em torno do Sol, um é
setecentas vezes maior que a Terra (Saturno) e outro mil e quatrocentas vezes
maior (Júpiter). Na superfície desses mundos o telescópio observa as mesmas
aparências de vida existentes na Terra, havendo atmosferas carregadas de nuvens,
continentes e mares. Distinguem-se cadeias de montanhas e acúmulos de neve e de
gelo que cercam os pólos desses globos. Entretanto o olhar da ciência não pára
por aí; ele sonda as regiões mais recuadas do céu e em nenhuma parte descobre
os limites do universo ou uma abóbada sólida. Os limites recuam na medida em
que a ciência avança, marcha, e o espaço se abre sempre mais prodigioso, mais
insondável.
Todavia, por mais longe que a ciência lance seus olhares,
por toda parte, por sobre todos os pontos dos céus, ela vê astros em quantidade
infinita, isto é, mundos e mais mundos, terras, sóis, esferas dispersas aos
milhões e formando grupos, famílias estelares, perto das quais a Terra e suas
irmãs e nosso próprio Sol, apesar de suas mil e duzentas léguas de diâmetro,
são como átomos, grãos de poeira perdidos na imensidade dos céus. No lugar de
serem destinados a uma imobilidade eterna, todos esses mundos se agitam, se
movem no seio das profundidades, gravitando uns em volta de outros e
percorrendo milhares de léguas em sua corrida assustadora. Assim, por toda
parte, o movimento, a vida se manifestando no espetáculo grandioso de uma
criação que não começou, que jamais acabará, mas que prossegue numa
transformação incessante, eterna, no seio de um espaço sem limites.
Se, do espetáculo desses mundos, lançarmos nossos olhares
para a Terra, quantas coisas ela nos dirá. Embora pequeno, nosso planeta tem
sua vida própria, sua função na imensa harmonia das esferas. Nas camadas superpostas
que formam sua crosta, lemos sua história como nas folhas de um livro;
seguimos, passo a passo, as fases de um desenvolvimento que durou, não seis
dias, porém milhões de séculos, e vemos, não a marca de uma criação espontânea,
mas de uma formação lenta, progressiva, submetida a leis imutáveis. Segundo
essas leis, os mundos, como os seres, possuem seus períodos de juventude, de
maturidade, de decrepitude, após os quais se dissolvem e desaparecem para dar
lugar a novos astros. Quanto aos seres que os povoam, cada um deles, em vidas
sucessivas e sempre renascentes, se eleva, de degrau em degrau, na escalada
magnífica dos mundos, desde as formas mais rudimentares da vida até a plenitude
da existência intelectual e moral.
Dessa forma o trabalho e o progresso se tornam a lei suprema
do mundo; o arbitrário e o milagre desaparecem. A criação se faz através do
tempo, tempo de esforços contínuos, pelo trabalho de todos os seres, solidários
uns com os outros e no proveito de cada um.
É assim que, no lugar de um universo criado do nada,
governado pela fantasia e pela graça, no lugar de uma monarquia absoluta, a
ciência nos apresenta, no infinito dos espaços e dos tempos, a imensa república
dos mundos, governada por leis imutáveis, acima das quais plana essa Razão
consciente, que se conhece, que se possui e que é Deus.
E agora eu vos pergunto: após ter visto, no espetáculo
do mundo iluminado pela ciência, manifestarem-se por toda parte esses grandes
princípios universais de ordem, solidariedade, trabalho e progresso, a
sociedade moderna pode ainda aceitar esses conceitos do passado, esses sistemas
ultrapassados que nos apresentam o milagre e a graça planando sem cessar acima
de tudo?
Podemos acreditar ainda em Josué parando o Sol, numa
palavra, em todas as lendas e superstições que alimentaram nossa infância? Não,
o ideal se transforma e cresce, e diante da luz de um novo dia as sombras e os
fantasmas do passado vão desaparecer. O sentimento religioso não morrerá por
isso, ele se tornará apenas mais racional e mais esclarecido. O próprio Cristo
disse: “Um dia chegará em que o Pai não será mais adorado nem nos templos nem
na montanha.”
É uma alusão à hora em que o pensamento humano, livre
dos liames que o prendem, se elevará mais rápido em direção à verdade e à luz,
para criar a religião do futuro, isto é, a religião natural, laica, que não
terá necessidade de templos nem altares, na qual cada pai de família será o
padre e no seio da qual se fundirão, como rios num oceano imenso, as crenças,
as seitas que dividem e separam a humanidade.
Dirão, todavia, como será a moral, onde estará sua
fonte, se não está mais nas religiões reveladas. A moral, responderei, está
eternamente escrita na razão e na consciência do homem e não há necessidade dos
ensinamentos dogmáticos para conhecer seu dever.
Escutai a voz interior que fala a cada um de nós, aos
mais ignorantes como aos mais esclarecidos, dizendo-nos: Eleva-te pelo
trabalho, pelo estudo e pela prática do bem. Eis aí a revelação por excelência
e, bem melhor que os ensinos do dogma, é ela quem nos faz saber que nosso papel
no mundo é trabalhar pelo nosso aperfeiçoamento e pelo da humanidade.
Desenvolver nossas faculdades intelectuais e nossas qualidades morais;
trabalhar para colocar na Terra o reino da justiça, da paz e da fraternidade,
marchando juntos para esse fim distante, para esse ideal: a perfeição.
Eis a verdadeira religião e a única de acordo com as
leis universais, a religião do progresso, a religião da humanidade!
Léon Denis: Livro: O Progresso
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